7 de nov. de 2019

O cinema tem sete vidas

Creio que todos estejam por dentro da polêmica gerada por Scorsese ao dizer que os filmes da Marvel não poderiam ser considerados cinema. No link acima ele dá uma boa explicação sobre suas declarações, fato é que o cinema não vai morrer nem deixar de existir mas, que está passando por mudanças profundas não há como negar.

Poderíamos dizer que Scorcese e outros de seu quilate se ressentem de não terem mais os grandes estúdios a lhes lamber as botas e dispostos a abrir a burra para bancar seus projetos autorais mas, creio que a problemática esteja bem explicada nesse artigo recente do mestre.

Oras, cinema é antes de tudo diversão, pagar para fugir da realidade por algumas horas, fantasia e, assim sendo, os filmes de heróis fazem tal papel de forma magistral, eu mesmo gosto deles e quem não gosta? São filmes extremamente bem feitos, tecnicamente impecáveis e sem grandes segredos, são maniqueístas e previsíveis o que não é ruim já que nos permitem a dita fuga e não pensar,a diversão pura e simples.

O problema começa quando temos apenas filmes de heróis e franquias como disse Scorsese e outros diretores, quando os grandes estúdios passam a priorizar esse tipo de filme em detrimento do cinema mais autoral ou, se preferir, de arte e isso é um ciclo vicioso pois se os estúdios apenas refletem o desejo do público, este por sua vez vai consumir o que o estúdio entrega, entende? Um vai alimentando ao outro num moto perpétuo e com isso, o cinema mais 'sério' vai ficando para trás.

E quando digo cinema 'sério' ou de arte, o digo porque o cinema não tem apenas a função de divertir mas de fazer pensar, de tocar as pessoas de forma que elas nem podiam imaginar, de trazer  e fazer reflexões pertinentes à época em que está inserido, as maiores obras primas do cinema foram, a grosso modo, filmes que teciam uma crítica ou promoviam algum tipo de discussão sobre temas complexos, delicados ou espinhosos fazendo com que a sociedade como um todo viesse a discuti-los de forma mais aberta e necessária.

Esse é o perigo de termos apenas filmes de franquias e blockbusters porque as discussões que eles promovem são simplistas e binárias, nos tempos em que vivemos pode ser importante podermos entrar numa sala de cinema e esquecer tudo que está do lado fora por um tempo mas, ainda mais importante é vermos um filme que nos faça pensar e encarar a realidade dura que vivemos ou estaremos fadados ao marasmo e escapismo confortável e isso é extremamente perigoso.

Não acho que o streaming seja um vilão, muito pelo contrário, Netflix e afins estão investindo pesado em produções cada vez maiores e melhores e aceitando projetos que os grandes estúdios estão declinando por medo ou porque ainda estão caminhando para seus próprios serviços de streaming para então fazer algo parecido. O streaming mudou a forma como assistimos filmes e séries mas não vai mudar o fato de que ainda existem pessoas interessadas em cinema seja ele para diversão ou reflexão.

Recentemente tivemos a 43 Mostra Internacional de Cinema de SP e pude ver salas de cinema cheias, sessões esgotadas, filas e muita gente interessada em ver filmes que, em sua grande maioria, não eram franquias ou escapistas se bem que escapismo é um termo um tanto estranho, não seria fato que tanto um filme de herói como um mais autoral não promovem o escapismo mas de formas diferentes?

O que está acabando com o cinema, pessoalmente acho eu, não são todas essas coisas mas outra coisa. Sou de uma geração que cresceu indo ao cinema, não existia internet, não havia streaming, não tinha celular, não tinha rede social, não tinha nada disso e não o digo como alguma forma de saudosismo ou anacronismo, apenas era diferente e o cinema era um evento, uma antecipação, algo aguardado e que beirava o ritualístico e de uma época em que os cinemas eram salas e não complexos de mega corporações que tentam lhe vender combos e experiência gourmet por um preço que beira o indecente ou pornográfico.

As pessoas estão acabando com o cinema, estão fazendo isso quando chegam depois do filme e ficam tentando encontrar lugar com a lanterna do celular acessa isso já passados dez minutos ou mais de filme. Estão acabando com o cinema quando atendem ou usam o celular durante o filme sem qualquer medo ou pudor, quando falam durante a sessão como se estivessem no conforte de suas salas ou no bar, quando levam para a sala todo tipo de lanche e comida e comem como se estivessem num refeitório, quando vão ao cinema sem saber o que irão ver, apenas para dizer que foram e isso aconteceu muito na mostra, eu fui testemunha.

O que deveria ser uma experiência de imersão e catarse coletiva virou uma festa onde calhou de passar um filme, as pessoas perderam a reverência pelo sacro espaço escuro da sala de cinema e pelo filme que foram lá para ver, esqueceram umas das outras e passaram a tratar o cinema como streaming e isso está matando o cinema

Quem está matando o cinema somos nós mesmos com nossa falta de respeito uns para com os outros.


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