6 de jan. de 2020
pai, pai
pai, afasta de mim e se cale porque a voz do pai é a voz que me mantém longe de mim e acerca de mim mesmo em tudo que eu pensei saber sobre a vida que me foi dada sem pedir ou questionar.
o pai me parece um estranho, há esse tanto de vida que existiu antes de mim e que parece insistir em caber na que tenho pela frente, num exercício psicotécnico que me força a encaixar a bola no triângulo e o quadrado no hexágono, a vida que me pertence não foi feita por mim mas feita para mim e há esse peso imenso que devo somar ao que já carrego, sina, herança, espelho de mil faces que me olha de soslaio quando menos espero.
ser filho de um pai é tarefa não benção, conforme os anos passam vou notando em mim nuances e detalhes que não são meus mas de meu pai mesmo tendo ele já morrido e seu espaço ocupado por um vazio de filho que não sabe como honrar uma conta que não fiz mas que, pelo jeito, terei de pagar um dia.
vivemos então algum tipo de vida genética de nossos pais? herdamos tanto assim deles e por uma questão somática fadados e replicar o paterno no que pomos a mão? e ser pai, que é? sou eu o pai de mim mesmo? se parte do que sou veio dele mas outra parte eu mesmo fiz para mim, não posso ser progenitor de mim mesmo e assim, abrir mão do pai que me fez ser rompendo um laço que pode ser mais convenção que afeto real ou biologia pura?
pai, pai não é um livro fácil, não espere respostas ou bordas recheadas de dramas familiares comezinhos, há apenas o cru, o concreto firme de uma vida em pedaços e de uma paternidade emprestada de evidências soltas por uma trilha de sentimentos quebrados e remendados como possível.
é um parto paterno, gravidez macha de sensações estranhas, eu me senti mal e péssimo filho, aliviado e filho exemplar, magoado e filho pródigo, exaltado e filho reparador de uma vida que precisava entender. por diversas vezes me pego a questionar essa pessoa que acho que sou se meu pai, vivo fosse, teria orgulho de mim, sentiria prazer em reconhecer que esse naco de carne que lhe saiu do escroto valeu o esforço e o gozo, por no mundo, vingar e vicejar, se fiz, faço e ainda farei honra a sua memória ou qualquer concepção que ele pudesse ter disso.
não sei.
e não saberei eu já que abri mão da paternidade por escolha e sem qualquer arrependimento, paterno é um termo que me foge enquanto sê-lo e não sei se cheguei a entender que é enquanto filho. ser pai é para quem tem coragem, culhões, peito, bunda, pernas e braços, não sou pai porque mal acabei de aprender o que era ser filho, sem terminar esse aprendizado não me encaro capaz de assinar o contrato de paternidade mas, como diz no livro, não acabamos assumindo o papel de pai uns dos outros quando a ausência de um se faz?
somos pais de nossos amantes, de nossos amores, de nossos amigos, de nossos inimigos, de nossos pecados e de nossos prazeres. somos pais de nossos erros e acertos e somos pais de tudo mais que temos pela frente quando a vida é mãe bandida e resolve fazer birra com seus filhos, não se enganem a vida só tem mães, pais a vida desconhece e põe para escanteio porque pais carregam nada além de um nome e um gene meia-boca para chamar de seu.
eu sou meu pai, sou ele porque foi dele que saí e dele absorvi parte do amálgama que faz de mim o que sou, os genes falam alto demais em mim, os dele, estão aqui e eu os ouço gritar diariamente mas, também sou meu pai porque eu sou quem sou por uma invenção minha, aprendizado meu, vida que fiz para mim, coisas que aprendi e sei, murros em facas e açucares de confeiteiro, doce e amargo, pai e patrão, pai, eu afastei de mim vários cálices mas nunca me calei e jamais calei a ti porque sem nossa voz eu seria quase mudo e pregaria minha paternidade em vão.
talvez que comece a ter algum orgulho de quem sou, se não é a melhor versão de mim, também não é das piores, sou humano, pai, sou pai de um ser falho e de carne, essa carne que tomei emprestada de ti quando teu gene resolveu procriar, prosperar e estar aqui para atestar, de alguma forma, que você também está mesmo que não esteja.
eu acho que tenho algum orgulho de ser meu pai e, se assim for, espero você também tenha de ter sido meu pai.
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