Este final de semana, assisti a um documentário que faz um trabalho de resgate da história de Alice Guy Blaché, comumente considerada como a primeira mulher cineasta além de ter sido roteirista, atriz e responsável por inúmeras inovações muito a frente de seu tempo.
O documentário deixou um sabor agridoce em mim pois eu sinceramente nunca tinha ouvido falar dessa mulher incrível. Fiquei feliz por tomar conhecimento de sua história e trajetória mas, com raiva de mim mesmo por nunca ter sabido de sua existência e com um misto de tristeza e revolta pelo apagamento histórico de sua figura conduzido pela sociedade machista, misógina e patriarcal.
Quantas outras 'Alice Guy' não existiram e não existem? Mesmo com o advento da internet que deveria, em tese, facilitar o acesso e conhecimento de artistas como ela, seguimos consumindo e reconhecendo apenas uma pequena parcela ainda restrita ao clã branco-cis-normativo. Romper as barreiras mesmo com a tecnologia de nosso lado parece missão quase impossível mas, sei que estamos lutando e conheço pessoas que diariamente estão parindo iniciativas de valorizar e reconhecer as produções de artistas, cultura e arte de minorias.
A história de Alice Guy me faz lembrar do enrosco da live da Parada LGBTQIA+ que ocorreu domingo passado. Nessa live, uma iniciativa louvável dos organizadores já que não haveria parada em si devido ao quadro de pandemia que ainda nos assola, desfilaram formadores de opinião, youtubers, ativistas, militantes e outros ligados ao movimento pelos direitos LGBTQIA+ mas, o evento foi seriamente criticado por ter deixado de lado nomes importantes dessa luta em detrimento da abertura de um canal de diálogo com as gerações mais novas.
Ate aí, nada demais afinal, a Parada é uma entidade vivente e que precisa estar inserida no seu tempo sob o risco de esvaziar-se então, nada mais justo que chamar para uma live os ativistas, militantes e pessoas que falam diretamente para esse público jovem e que necessita sim se reconhecer no evento.
Mas, e digo MAS, não adianta jogar essa roupagem moderna no evento e esquecer de quem tornou possível que tomássemos a cidade não apenas em um dia mas em um mês dedicado ao Orgulho LGBTQIA+. Podemos estar ainda distantes do ideal no tocante e visibilidade, representatividade, direitos e tudo mais para pessoas LGBTQIA+ mas, se hoje temos conquistas importantes, foi porque pessoas como Kaká Di Polly, Silvetty Montilla, Salete Campari, Miss Biá e tantes outres nos abriram esse caminho dando, muitas vezes, a cara a tapa e sofrendo as consequências na pele.
Então, quando um evento desses que deveria valorizar não apenas o presente e discutir o futuro mas principalmente, valorizar nosso passado e história, falha (exceto um pequeno quadro dedicado ao histórico do movimento e citando alguns nomes como João Silvério Trevisan) em trazer esse passado para que as gerações mais novas conheçam as figuras emblemáticas e essenciais dessa nossa história, não posso deixar de fazer um paralelo com o apagamento que Alice Guy sofreu.
E me vem outro apagamento: o de João Silvério Trevisan. Sexta passada, eu e Roberto Muniz Dias fizemos uma live (disponível no meu insta @ale_willer) para debater o livro A Idade de Ouro do Brasil, mais recente da carreira extensa e prolífica de Trevisan e, para nossa grata surpresa, ele não apenas assistiu nossa live como dela participou dando, como sempre, uma aula de literatura, vida e consciência.
Já havia escrito sobre ele aqui no blog, sobre como é revoltante que uma pessoa como Trevisan, com seu currículo, obra, estudo e bagagem, ainda seja forçado a brigar por espaço, por lugar de fala, por ter sua voz reconhecida e, pior, sua obra que compreende quinze livros entre tantas outras coisas como filmes, peças e por aí vai, estar praticamente fora de catálogo e há tempos sem qualquer atenção de resgate e reedição.
Não bastasse isso, inúmeras vezes me deparei com pessoas LGBTQIA+ que, ao ouvir o nome de Trevisan, simplesmente desconheciam por completo sua existência, obra e relevância. Obviamente que ninguém é obrigado a saber de tudo ou conhecer tudo mas, se você tem um minimo de curiosidade e interesse por sua história, não custa ir atrás e conhecer a obra, o trabalho e trajetória de quem fez o caminho que você trilha hoje.
O que temos hoje, essas poucas mas preciosas e importantes conquistas, não caíram do céu hétero em nossos colos, foram o resultado da luta de pessoas que vieram antes de nós como as que citei aqui e não apenas precisam mas merecem seu respeito, admiração e reconhecimento, sem essas pessoas, eu, você e todos nós ainda viveríamos de esmolas da sociedade heteronormativa.
Num país que figura entre os que mais mata pessoas LGBTQIA+, não basta lutar dia e noite por nossas vidas e direito de existir e ser, é preciso beber dessa fonte inesgotável de conhecimento, inspiração e força que Salete, Kaká, Silvetty, Biá e Trevisan entre tantos outros nos oferecem sem pedir nada em troca a não ser um muito obrigado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
one is the loniest number...