10 de ago. de 2020

reinaldo rocha melo

 


seu reinaldo nasceu em 1929, ano fatídico, ele veio ao mundo e o mundo estava acabando. não acabou e ele também não, ainda bem, senão quem tinha acabado antes de ser era eu.

seu reinaldo era de itapeva, interior de são paulo, família toda tem história lá, parece que até escola com nome de alguém tinha. nunca fui atrás, tenho vontade mas nunca fui, talvez depois da doença eu vá, buscar algum fio de história, vamos envelhecendo e pensando menos no futuro e mais em reconstruir o passado, meio que para lembrar dele quando chegar a hora ruim e poder fazer passar aquele filme que dizem passar.

seu reinaldo veio para a capital ainda novo pelo que sei, família era grande, ele ajudava a mãe na cozinha, tem até livro de receita que ela escreveu com 'ph' e outras grafias mortas e que ele herdou e que eu herdei mas não sei onde está porque a gente é assim, tratamos nossas memórias feito pó, varremos para todos os cantos até elas sumirem. ele me ensinou a cozinhar, era chato com as panelas, aprendi com ele a ser chato também não só com as panelas mas com um monte de coisa. ele cozinhava em casa, a mãe não se atrevia a por as mãos porque se o fizesse ele reclamava e ela também não era lá muito amiga da cozinha.

seu reinaldo gostava de aviões e me fez gostar deles também. enquanto as crianças tinham foto em parquinho, eu tinha foto em aeroclubes e aeroportos. enquanto as crianças tiravam fotos com bichinhos e outros, eu tirava foto com aviões. ele me ensinava os nomes e modelos, e me ajudava a montar aeromodelos, a paixão pelos aviões segue até hoje, avião pra mim é casa, dele não tenho medo algum, muito pelo contrário.

seu reinaldo tinha jeito com as palavras, acho que foi daí e somado ao hábito compulsivo da mãe por livros que virei escritor. ele adorava fazer jogos de palavras, aliterações e neologismos, sempre estava com alguma palavra cruzada, jornal ou algo assim nas mãos. adorava um tal de almanaque bertrand que era tipo um seleções português que ele e o pai dele liam com voracidade e eu acabei lendo também. o almanaque tinha textos que eu mal entendia mas tinha sempre vários enigmas pictográficos chamados rébus que eu adorava tentar decifrar.

seu reinaldo gostava de música, muito. ray conniff, paul mauriat, big bands, elis mas o que mais me lembra dele é um coral alemão chamado fischer-chöre, eu não entendia nada do que eles cantavam mas amava assim mesmo. ele também arranhava um violino e piano, a família dele toda era meio artista, tinha irmão organista, pintor e fotógrafo, a mãe dele pintava e o pai esculpia modelos e tinha por passatempo resolver problemas de matemática complexos. exceto pela matemática, o resto foi impregnado nos meu genes.

seu reinaldo não era santo também como todos os santos não o são por completo, ninguém nasce santo, chega a essa posição depois de ter falhado miseravelmente como gente. das falhas dele como gente não vou falar porque isso é lá entre ele e quem lhe fez os apontamentos delas e dos acertos quando ele foi ter com os juízes do além, veredito que jamais saberemos, podemos apenas adivinhar e torcer para que, em nosso momento, tenhamos juízes razoáveis e que se compadeçam de nossa condição mortal. talvez algum juiz que tenha processado nossos antepassados e possa fazer algum tipo de argumentação que pese a nosso favor, ou talvez seja melhor sermos julgados apenas pelos nossos pecados e não pelos dos nossos ancestrais.

seu reinaldo era um homem de histórias. muitas. eu lembro de uma ou outra, deveria colocar num livro, merece. a que mais lembro é a de zé brás, um galináceo comprado pela família dele ainda imberbe com o intuito de servir de ceia. o bicho chegou sem nome que nome a gente só põe em coisa que colocamos os olhos por um tempo, o que passa rápido segue pagão. uma vez nomeado, vira gente e o bicho cresceu e pegou afeto a todos e aí, quem tinha coragem de degolar para por na panela? nada. virou de casa e ele dizia que era brabo, partia para cima de qualquer desavisado que se atrevesse a entrar na casa.

seu reinaldo não está mais aqui. foi lá conversar com os anjos e quaisquer entidades que estejam para além de nosso entender.

seu reinaldo foi, é e será sempre meu pai e eu acho que nunca saberei ao certo como ser seu filho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

one is the loniest number...

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10 Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu nam...