10 de set. de 2020

brincando de casinha

 


Larissa menina Larissa moça Larissa mulher Larissa se chamava Larissa não por que o cartório assim o determinou, cartório só faz papel, cópia, copia o que vê na frente, lavra nos autos e certidões um a realidade monocromática, dual, incapaz de compreender e conter tudo que vai além de dois mais dois que raramente dá quatro na vida que se vive fora do papel Larissa é Larissa porque sempre o foi, sempre teve Larissa em si e não seria um papel que diria o oposto Larissa era Larissa porque sim, não porque outros diriam que não Larissa jogou fora aquele papel malcriado que dizia que não e abraçou o sim porque Larissa era Larissa e nada além de Larissa.

Larissa queria brinca de casinha, sonho de menina, de menino, de criança, não precisa ser de um ou de outro, brincadeira se tem hora é a hora que ela tem, que quer, que deseja, brinca é preciso, viver não é preciso, é incerto, inacabado e Larissa foi construindo para si uma casinha igual as que via nas revistas, as da polícia ela já conhecia bem as quatro paredes e grades, não queria porque era feia, bruta, infeliz mas sabia que era uma casinha da qual jamais conseguiria escapar para sempre, de tempos em tempos precisava fazer visita a passar uns dias, fazer agrado e depois voltar a construir a casinha de seus sonhos essa sim de várias paredes que só quatro era muito pouco para conter os sonhos de Larissa, moçamulhermeninagente.

Larissa fez sua casinha, capricho, esmero, é mero fetiche, desejo, colocou tudo do bom e do melhor na casinha, com gosto, gosta de coisa boa porque coisa boa a gente acostuma bem e coisa ruim a gente acostuma também porque tem de acostumar, fazer o que, o que Larissa sabia era que a casinha era sua não importava se era torta, reta, curva ou sei lá, Larissa tinha uma casinha só sua e lá seria feliz, com o amor, porque a casinha sem amor não é casinha, é albergue, hotel barato, alta rotatividade que se não traz amor paga as contas da casinha mas, Larissa queria um amor para pendurar na parede, um amor para sentar no sofá, um amor para ver tv, um amor para abrir a porta, um amor para abrir o corpo, fechado ainda, aberto somente para negócios, um amor para o banho, um amor para secar, um amor para por no varal, para fazer arroz e feijão e batata e bife.

Larissa deixou a casinha pronta mas o amor não vinha, não veio, Larissa esperou, e esperou, e esperou, e esperou, esperou como quem espera, calada, muda, porque esperar é silêncio, esperar requer mudez, esperar não pode ser grito porque grito assusta a espera e espanta o que está para chegar. Larissa muda calada esperou mas nada de amor, nada de completar a casinha linda com móveis simples mas fofos, toalhinhas de renda, bibelôs, enfeites e cheirando a detergente e lavanda, alva, imaculada, virgem porque a casinha era pura como ela, guardada para o amor descobrir e levar, a casinha era dela e do amor que viria mas nunca veio, Larissa esperava mas perdia a esperança.

Larissa esperou, quem espera sempre alcança, algum grau de desespero, de decepção, de desgosto porque a espera é isso, uma derrota anunciada. Larissa cansada, já nem moça nem mulher nem menina, Larissa exausta não queria mais esperar nada, o corpo moído não dava mais para amar, nem por amor nem por moedas, Larissa chorou mas não trista antes resignada, Larissa olhou para a casinha e nela se trancou com suas toalhinhas, enfeites, limpeza e cheiro de ervas mortas.

Nunca mais se viu Larissa.

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