27 de mai. de 2021

como cuidar de uma planta morta

quando comprei, veio verde, florida, bela, pompa vegetal, essência em forma de tronco, galhos e seiva, algo vivo feito um amor que eu queria para mim ou um desafeto que plantei e demorou para vingar. perguntei ao vendedor como cuidar que essas coisas são delicadas demais, sensíveis demais, frágeis demais, quase optei por alguma mais forte e agressiva, que demandasse menos cuidado, atenção e carinho mas, não queria independência que disso minha vida já ia cheia, queria algo que dependesse de mim ou que me ajudasse na dependência de mim que eu sempre tive e assim, de alguma forma, tecer um tipo de relação simbiótica e tóxica onde a dependência mútua alimentasse um amor falido.

em casa tive sérias dúvidas, onde colocar o novo amor verde? pode parecer simples mas escolher o lugar é sim muito importante. o local errado pode matar, secar, levar a falta de ar ou ignorância e esquecimento, essas coisas que matam tudo se não sabemos colocar no lugar correto, já reparou como tudo que falha é porque não foi colocado no lugar devido? é assim, não se presta atenção e deixa em qualquer lugar aí tudo desanda e acaba, as coisas precisam do lugar certo ou morrem, deve ser por isso que a gente morre, porque nunca estamos no lugar certo.

depois de muitas dúvidas, escolhi. perfeito. estava no lugar devido e correto e passei a dar atenção aos cuidados que deveria ter: molhar só três vezes por semana, adubar uma vez ao mês, evitar sol direto, borrifar as folhas com uma solução isotônica, trocar a terra uma vez ao ano. deveria ter anotado, confiei na memória que nunca falhou, o vendedor insistiu mas eu disse não, ele não gostou, disse que eu mataria, respondi que já estávamos todos mortos e apenas prolongando a vida, ele não gostou dessa filosofia disparada a seco, eu não liguei.

deveria ter ligado. de início fiz tudo certo mas depois, com os dias tomando forma e a planta amor nova fazendo parte do cenário cotidiano, fui acostumando e o costume é a porta de entrada do desastre na vida das pessoas, animais e objetos, quando a gente olha para alguma coisa e vê o de sempre ela já está morta. comecei trocando as instruções: sol três vezes ao dia, água uma vez por semana, adubo uma vez por ano, trocar a terra duas vezes por mês, borrifar a folhas com água da torneira.

ela morreu mas eu segui cuidando dela, fazia tudo só que na ordem que eu achava certa ou lembrava na esperança de que ao trocar os passos pudesse de alguma forma ressuscitar o cadáver que habitava a casa junto ao meu. acho que ela cuidava de mim da mesma forma, íamos definhando aos poucos, ela precisava de mais água e eu de mais sol, ela de mais terra e eu de mais céu, ela de menos adubo e eu de mais agrotóxicos, fomos definhando assim cuidando um do outro aos poucos, a casa parecia um tipo de uti onde nada acontece salvo os barulhos de equipamentos que prolongam o que não pode evitar.

estávamos mortos há dias quando finalmente decidi pelo enterro no quintal de casa. sem cerimônia, sem velório, sem ninguém, só eu e ela e um buraco no chão. joguei-a dentro e com os pés cobri o buraco, quis marcar a cova com alguma coisa mas não tinha nada, também não falei nada porque o que se fala para uma planta morta? e o alguém que também está morto pode falar para outro morto? coisas sobre a morte? ou sobre a vida que não é mais? mortos conversam? há diálogo no pós vida?

esqueci essas questões e o tempo consumiu o que restava de memória da planta tornando o calendário algo morto também até que um dia, no quintal brotou uma muda bem no lugar da morta. notei por acaso, agachei e fiquei ali olhando aquela vida que saía da morte, seria um tipo de vida que sairia de mim um dia? corri para pegar um regador e aguei a plantinha infante com gosto, senti que não estava mais morto, algo brotava em mim, não era a plantinha mas uma lembrança morta do que havia sido, eu estava morto ou morrendo, aquela mudinha também iria um dia mas, enquanto eu cuidasse dela e ela de mim, talvez houvesse um pouco de vida que coubesse entre nós e valesse a pena adubar...

para quando for preciso dizer adeus....

Vinicius.

Eu sentei aqui para escrever essa carta mas comecei a escrever e agora não sei bem para quem ou por que ou se essa carta vai ter alguma serventia que não seja ir pro lixo ou fazer você chorar se é que alguma coisa é capaz disso mas, vou tentar mesmo sabendo que escrever carta hoje é algo meio ridículo, quase infantil, quem faz isso? Eu faço, sempre fiz e se você se der ao trabalho e tiver tempo e desejo, há uma caixa de sapatos - nossa, que clichê, cartas em um caixa de sapatos - de tênis melhor, aquele que você usava direto até que eu fiz você tomar vergonha e parar de usar, sabe? Pois, estão lá, devem estar impregnados com aquele cheiro forte dos teus pés, cheiro que eu amava, lembra? Quando nos conhecemos você tirou primeiro o tênis e aquele cheiro forte entrou pelo meu nariz e eu gozei por dentro e me apaixonei por você ali de joelhos cheirando seus pés, você gostou, eu lembro e, na verdade, muitas vezes eu esperava você guardar o tênis para depois ir lá enfiar minha cara nele e gozar porque aquele era o seu cheiro e não aquele cheiro falso de desodorantes e creme de barbear.

Enfim, elas estão lá, com o cheiro do seus pés, com esses pés que eu amava e com os quais você pisou em mim e em tudo que eu sentia, eu deixei, permiti porque pés como os seus não é todo dia que se acha, grosseiros e delicados no limite entre um outro, com suor e cheiro na medida certa, eu me apaixonei pelos seu pés e depois por você e as cartas agora fedendo aquele cheiro bom dos seus pés estão lá, você pode ler, rasgar, pisar - seria uma despedida ideal, ter seus pés sobre elas e sobre cada palavra que escrevi, feito um desprezo contido que você deve ter e nunca me falou - fazer como bem entender, elas são suas, não são minhas, não as escrevi para guardar um diário ou deixar testemunho de algo ou prova de algum tipo de amor que nunca fui disso, você sabe; acho que as escrevi mais como lembranças de um amor que me pegou pelos seus pés, esses pés que eu cheirava escondido enquanto você dormia cansado, suado e sem banho porque eu insistia que você descansasse sem sem lavar e você ia talvez por estar mesmo muito cansado ou porque sabia secretamente de que eu iria, na treva da noite, prestar meu olfato aos seus pés e ficava ali por horas sorvendo aquele aroma de suor e poluição dos seus pés e às vezes os lambia e você se mexia ou fingia se mexer e deixava eu seguir com minha adoração até clarear o dia algumas vezes.

Lembro de uma vez em que você me perguntou de onde saia essa paixão por pés e eu respondi que ela inexistia até que encontrei os seus pés naquele dia, com aquele tênis e com aquele cheiro que despertou em mim algo tão forte que eu roubava suas meias usadas para cheirar durante o dia e misturava minha essência com ela para fazer um cheiro novo que era de nós dois e eu só as jogava fora quando já não era mais possível distinguir qualquer cheiro de tão gastas, acho que o amor faz disso com a gente ou a gente faz disso com o amor que a gente descobre e não tem medo de sentir, no seu caso foram os pés mas poderia ter sido outra coisa, suas mãos, seu joelho, suas coxas, suas bolas, seu cotovelo, já me apaixonei por todas as partes da anatomia humana eu acho mas seus pés foram o amor mais forte que já senti, acho que nunca mais sentirei algo assim por outras partes do corpo de outra pessoa.

O parágrafo acima soou como despedida e é efetivamente uma, não se preocupe, nada errado ou nenhum mal foi feito, seus pés seguem inocentes, se podem ser culpados de algo é de ainda terem o mesmo cheiro de quando nos conhecemos, o mesmo aroma, o mesmo odor forte nos dias quentes e o mesmo odor leve nos dias frios e confesso que levo comigo um par de tênis seus usados - não aquele que você teimava em usar até que eu disse ou ele ou eu, o mesmo que está como guardião das cartas na caixa - e algumas meias para cheirar quando bater a saudade forte; se há algo ou alguém a culpar é o tempo a anatomia humana que mesmo sendo a mesmo a milhões de anos ainda me surpreende e eu me apaixonei por outros pés, acho que estou numa fase de pés, culpa sua, antes de você os pés para mim eram apenas um fetiche, nada mais, depois de você ela viraram um tipo de artigo fino que eu aprendi a apreciar feito um tipo de degustador, sei refinar os aromas e sou capaz de dizer apenas por ele que tipo de calçado usam, quanto tempo estão sem ar, qual tipo de meia, se são cuidados ou desleixados, se merecem ser cheirados ou não, tudo graças aos seus pés que seguirão comigo para sempre como a referência, o padrão, não aceito menos.

Não culpes os pés novos por minha partida, já disse que não são culpados, acho que apenas a rotina tornou seu cheiro dos pés algo comum, mesmo nos dias mais ousados em que você ficava com as mesmas meias, acho que senti isso quando passei a cheirar seus pés não ter mais um frescor suado de desejo, um cheiro de pés que eu precisava por na boca ou cheirar, eles não perderam o gosto mas eu me acostumei e preciso de outros sabores, não quero que você se sinta mal ou traído, deixei aí as cartas para seus pés e acho que é bem provável que algum dia eu precise dos seus pés suados para matar um desejo ou reviver uma lembrança mas, por enquanto, quero viver esse amor novo e sentir esses pés novos em mim, eles não tem o mesmo cheiro que os seus, nem pior ou melhor, apenas diferente e, se fecho os olhos, posso até sentir algumas notas dos seus pés nesses novos, reforço que não é novidade em si mas o cheiro novo, estranho porque é novidade mas não é uma novidade que provoca, apenas que excita e não são feitas para isso as novidades? Acho que o que eu quero dizer é que eu sou uma criatura olfativa e o cheiro, meu amor, o cheiro é o que move a humanidade e, no meu caso, o cheiro dos pés, eles que movem a gente, acho que fascina querer senti-los e de alguma forma fazer parte do avanço da humanidade, algo assim.

Bom, me despeço, deixei algumas meias minhas de alguns dias onde gozei para você, não sei se vai gostar, nunca vi você, muito interessado nisso mas, pode ser um início ou pelo menos uma lembrança minha que você pode deixar pela casa ou cheirar quando e se sentir saudades minhas caso contrário pode jogar no lixo ou vender na internet e faturar uma grana, tem gente que paga e bem por esse tipo de artigo mas, pessoalmente, me sentiria feliz em saber que pelo menos uma vez você as cheirou e pensou em mim... 

25 de mai. de 2021

simpatia


essa comida está sem sal...

olhei para ele, inócuo, incapaz de expressar qualquer resposta ou sentimento. sal. estava sem sal? pois. lhe passei o saleiro de alguma forma entre gentil e decidido, quase afronta.
quis dizer que está sem gosto, não sem sal.

sem gosto? Entendi. Talvez não fosse a comida, eu acho. A essa altura, poderíamos suspeitar de qualquer coisa, uma frente fria vinda de algum lugar, uma chuva repentina, a alta do dólar, o estouro de alguma bolha econômica em algum país distante, o farfalhar das asas de um urubu atento. se houvesse de identificar a causa de sabor das coisas, deveríamos tê-lo feito há anos, quando ainda tínhamos algum gosto ou algo que o valha, quando as papilas gustativas ainda não tinham sumido, quando ainda sabíamos distinguir os gostos um do outro de nós.

faço com mais tempero na próxima. e olhei para o prato mudo, com ar de sobra deixada sobre a mesa, vestígio de alguma refeição ingrata, restos quase mortais de uma vida já não vida mas incapaz de morrer, zumbi, sonâmbula, vagando pela casa na busca de algum tempero, especiaria, condimento.

dia seguinte a mesma coisa mas dessa vez, não houve reclamação do sal ou gosto. apenas um esgar súbito do outro lado da mesa denotando que a comida falhava em cair da boca no esôfago de lá para o estômago, intestinos e excreção, antes fosse excretada ali mesmo, pela cara que fez, esse era o gosto. não houve palavras, não se passou o sal, não se pediu pimenta, não se falou de comprar nenhum condimento, apenas comemos aquela pasta insossa de vida.

e cansei, resolvi mudar. se ele queria gosto, teria gosto. usei a mesma cueca por dias, semanas acho, quase mês. durante esse tempo, ele seguiu calado, reclamando mudo da falta de sal, de gosto, de gostar, cada refeição um banquete de nada, sem sabor, apenas maxilares subindo e descendo, num mastigar lento e resignado, bovino, nada mais.

achei que reclamaria do cheiro da cueca fétida, exalando urina, porra e suor mas disso ele não reclamou, talvez gostasse mas nunca expressou nada, nem sim, nem não, nem nojo, nem prazer, algum tipo de tesão causado pelo cheiro, nada, só reclamava pelos olhos quando comíamos, refeição diária, sina, pecado da gula faminta que nunca fora saciada.

quando senti que não havia mais como seguir vestindo aquela peça de roupa nojenta, tirei-a, quase vomitei, o cheiro que emanava deixaria até um coveiro experiente com engulhos. levei-a até a cozinha, quase vomitando a cortei e piquei em ínfimos pedaços, quase microscópicos e misturei na comida.

naquele dia, ele elogiou meu tempero, a comida, não reclamou do sal, nem de nada, repetiu e lambeu o prato.

24 de mai. de 2021

sem filtro


desliza o dedo abre desliza de novo abre app login e senha reconhecimento facial desliza para baixo procura vai achar atualiza perfil escolhe foto usa filtro usa mais um usa outro usa todos para deixar a foto digna de atenção escolhe fundo faz cara faz bico escolhe o ângulo troca escolhe outro troca escolhe outro decide por um de cada tira foto mais filtros escreve o perfil tem de chamar atenção um diferencial um quê a mais tem de ser diferente escolhe mais fotos aplicar mais filtro coloca umas mais picantes porque tem de atiçar provocar chamar e fazer ter interesse detalhe do perfil sem mostrar muito mas mostrando quase tudo é um balanço difícil um jogo de cintura um decidir que toma tempo mas compensa diz que está ali para quase tudo mas não topa nada se não for real usa emoji usa hashtag usa match usa tudo e coloca mais foto mais filtro ativa o serviço de localização só durante o uso do app e libera as notificações mas depois desliga porque não quer que vejam notificação de app no celular mas aí complica porque tem de ficar olhando toda hora tira o app da área de sugestões e ativa notificação vai chegar algo porque o perfil está bom tem foto tem descrição e tem filtro tem de entrar entre os trendings não aceita menos tem perfil pior que bomba e esse vai bombar porque fez tudo conforme os tutoriais vídeos e guias seguiu tudo direito fez como deve ser feito até instalou um app de filtros profissional porque não dá para upar foto sem que ninguém mais é como na real só com filtro e depois você faz de conta que tudo bem porque sempre dá pra enganar com make e luz e roupa e cinta e mais uns truques mas não tem notificação e já passaram dez minutos deve ter errado no perfil nem visualização tem e já se passaram quinze minutos melhor apagar e fazer outro a foto do perfil está meio estranha mesmo melhor apagar e refazer antes que vejam e queime o filme e perfil queimado vira lixo na rede você se queima para nunca mais então abre o app e procura o botão apagar perfil resiste pensa e hesita melhor esperar vai que mas a foto está mesmo estranha não custa fazer outro tirar fotos melhores e usar mais filtros fez com pressa e perfil em app tem de fazer com calma ou nunca mais dedo em cima do botão aperta apagar o perfil e o celular cai no chão sozinho órfão ligado tela aberta no app e pedindo login e senha e criar novo perfil.

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10 Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu nam...