Da
cidade escorria um suor seco e frio, o sol burlava as nuvens do fim de dia e
sambava seus raios através desses buracos no céu. Irritadas, as nuvens corriam
para preencher essas brechas só para constatar que logo mais a frente outras
tinham sido abertas num gato/cão celeste despercebido pelo mundo cá embaixo.
Salvo
eu aqui, obserbando tudo isso e apostando onde o sol malandro ia forçar a
entrada, abrir as pernas das nuvens vestidas de hábito monástico jogando um
pouco de luz sobre a cidade louca. Parecia que em cada um desses buracos de sol
as pessoas iam, a qualquer momento, sair com mãos ao alto rogando ao astro que
lhes dissesse o caminho a seguir, jogasse para longe as nuvens de suas vidas
nubladas e lhes desse um alento que lhe era muito alem do alcance enquanto
corpo celeste ocupado demais com danças astrais para dar conta de desejos
terrenos e, de certa forma, ciumento de ter sido roubado de seu heliocentrismo,
melhor deixar essa raça ao seu destino, deveria pensar.
Apoiava
o queixo sobre as mãos cruzadas no parapeito da janela, sorvendo essa
brincadeira com gosto, já estava ali há algum tempo, aguardando que um daqueles
buracos-sol caísse sobre mim e, feito interrogatório, me forçasse a confessar
os crimes indizíveis que carregava no peito até mesmo aqueles que não cometi ou
tencionei cometer.
Podia
ver outras janelas ali da minha, outros pecados, outros crimes, outros sexos,
outros amores, como eu, mantinham seus segredos entre paredes e até mesmo
dentro delas haveria segredos dentro de segredos, lugares secretos, anseios não
revelados, coisas não ditas, entaladas e que acabavam por emprestar às paredes
um gosto amargo e cheiro fétido conforme o acumulo de dissabores não
compartilhados ia se tornando uma massa disforme de fel e rancor.
As
paredes têm ouvidos, e nariz, e boca, e braços e pernas, e coração e sangue,
esquecemos disso e pomos por terra esse universo que deveria funcionar como
porto tranquilo e seguro ficando num eterno cá e lá, melhor, nenhum dos dois
vide que o mundo lá fora quer devorar até o tutano e, aqui dentro, nem
devoramos nem o oposto restando uma letargia muda e ácida que vai corroendo
todos os elefantes que pomos dentro de casa.
Um
elefante, sim, incomoda muita gente. Dois então, muito mais. Que dizer de mim
que tinha essa manada a dividir espaço comigo? Olhava a colcha de retalhos
solar se espalhando, pondo para correr as nuvens bestas e então, caiu em mim
uma dessas rodelas de luz e ficou. Talvez com medo dos meus elefantes, não
vieram nuvens tapar o buraco, parecia que minha janela era o palco da cidade,
talvez todos já tivessem, quando vitimados pela luz esclarecedora, purgado seus
erros e coubesse a mim cair, em grande estilo, o pano.
Pois
bem, armado de luz, ergui o queixo de sobre minhas mãos, olhei para trás
mirando cada elefante nos olhos e disse que o safári iria começar, era cada um
por si e o sol era para quase todos. Comecei lembrando de quando nos
conhecemos, aquela pista cheia de luz, som e fúria e nós ali dançando ao redor
daquele fogo fátuo, sedentos de nós mesmos. Foi bom, consumamos tudo ali mesmo
num canto mais escuro e minha língua foi seu sexo e seu sexo foi meu orgasmo e
nosso gozo foi estridente e nossas bocas sem pudor e sem fim salivaram uma na
outra todos os desejos e sonhos que nossas veias tinham guardado.
Os
corações correram garganta acima e se bateram de frente Tum Tum Tum Tum Tum Tum
Tum uníssono e num coro que ia acima da musica na pista. Bailaram as aortas,
quase enfartam os miocárdios mas, segura, voltam eles para suas cavidades
certos de que são um do outro mas a mente prega peças e desce a chibata no
músculo cardíaco eriçado dizendo que está a mandar sangue demais para a cabeça
de baixo deixando a de cima desprovida de poder colocar ordem nesse puteiro.
Corações
aplacados e membros meia-bomba, melados de sexo, passamos ao que deveria ter
sido o inicio e trocamos amenidades já que a intimidade fora sequestrada um do
outro, sem resgate. Do clube ao café mais próximo, brecamos tudo que fosse mais
fast no café da manhã e entre pães, doces e cafés, trocamos recheios de sonhos,
coberturas de desejos, caramelizamos nosso amor, pão de Ló apaixonado, pão/pau
- queijo/beijo.
Satisfeitos
nos dois apetites, nos despedimos e trocamos números de telefone velados com a
promessa de ligar e a incerteza de tal promessa fazer-se ato. Fomos embora,
aguardar os minutos fazerem as horas, as horas dias e os dias nossa fome de
ter-nos de novo mais do que a comida podia suprir. Em casa, mirava o telefone,
os dedos tamborilando, dementes por se fazerem úteis e discar mas punha os
danados a ferros e lhes dizia que você também tinha dedos e assim poderia fazer
o mesmo esforço.
Nesse
balé de tolos ficamos por algum tempo, aposta estúpida, sem ganhadores, premio
que se acumulava agitando as mãos para ser resgatado e nós dois fazendo pouco
dele, como que a deixar para outros que precisassem mais, como se nós mesmos
não o desejássemos mais que o ar a nossa volta. E veio o toque do aparelho,
agora já não sei quem correu para resgatar o premio, só sei que nos falamos e
resolvemos que o melhor a fazer era dividi-lo uma vez que ambos o desejavam na
carne.
Fizemos
assim e fomos gastando essa loteria acumulada a dois, cegos do amor que nos
fora sorteado, incautos, investidores de primeira viagem. De começo, achamos
que aplicáramos nosso amor em investimentos cujo rendimento seria liquido e
certo, nossa felicidade era por conta, tínhamos a nós e isso era uma linha de
credito sem fim, inesgotável e cada vez que parecia a nós que os rendimentos
não eram assim lá o que esperávamos, bastava fazer um empréstimo pessoal de nós
mesmos, com juros de amante para amante e prazo a perder de vista para vermos
renovado o credito amoroso que julgávamos ter.
Mas,
os dias foram caindo da folhinha como folhas outonais e, quando a ultima caiu
e, pelada, a árvore não tinha mais sombra ou frutos para ofertar, tentamos mais
credito no banco afetivo para adubar a árvore seca e, para nossa surpresa,
tivemos o investimento negado. Pasmos, ficamos sem ação, vasculhamos por
economias porém, mais cigarras que formigas, estávamos com os bolsos só nos
forros e a chuva se armando sob nossas cabeças.
Esgotados
os meios, passamos aos fins e como cada um de nós tinha sua parcela de culpa no
malfadado empreendimento só que, ao invés de assumirmos nossas parcelas de infelicidade
e péssima administração, preferimos por os dedos em riste um nas fuças do outro
negando culpa conjunta, pondo a conta apenas na nota de um só. Tentando salvar
algo dessa quebra geral, saqueamos tudo, não deixamos nada ao amor que, na
verdade, ainda tinha seu peso em ouro e podia ser usado como moeda de troca
para reconstruirmos.
Finalmente,
sem ter mais o que raspar do fundo do cofre, raspamos nós mesmos na carne até
sangrar e quando vimos a cor dos ossos e os dentes agressivos se abrindo sobre
eles, julgamos melhor assumir a falência, cerrar as portas e buscar novos
sócios, outros empreendimentos. Nesse litígio, não havia muito que repartir, havia
sobrado apenas culpas, remorsos e acusações suspensas no ar, frases presas no
vácuo, sentimentos soltos no tempo e um vazio imenso que de tão grande não era
mais vazio, tinha consistência e podia ser tocado.
Fomos,
simples assim. E os dias voltaram a contar no calendário, lentamente, um a um e
nossas vidas foram se remendando da melhor forma possível e nossos bolsos foram
se enchendo aos poucos, com trocados de inicio e, algumas vezes, com notas e
até quantias vultosas mas que paravam em nossos bolsos assim como o ar para nos
pulmões.
E
então, dado o tempo certo, nossos nomes já não estavam mais sujos, caducaram
nossos débitos, podíamos amar de novo, as consultas aos órgãos de proteção ao
credito afetivo davam como negativas e, numa dessas, nos redescobrimos com
capital suficiente para amadurecer a ideia e ideal de termos nosso negocio
próprio de forma definitiva, desprovidos e demovidos dos sonhos acelerados do
inicio, das ilusões de destino e cientes de nossos medos e capacidades de
entender um no outro o alimento do desejo comum, cheios agora de sonhos
maduros, tangíveis em seu sonhar duo, retos e certeiros em nosso caminho de
pouquíssimas curvas salvo as de nossos corpos não desconhecidos a nós e assim,
sem grandes surpresas cartografadas mas emprestando às línguas um gosto
conhecido mas retemperado com novo animo e sede de amar, viver e sermos.
Negocio
fechado! No dia em que assinaríamos nosso contrato, selaríamos nosso
compromisso de sermos o banco central um do outro, fiquei com a caneta na mão,
esperando ver no outro lado da linha tracejada seu nome correr para o meu.
Roubado por um destino traíra, saqueado por uma tragédia que de grega não tinha
sequer o nome, assaltado por outros que levaram o cobre e, de quebra, você para
não mais. Dos olhos, correram lagrimas lépidas, escoram face abaixo, deram
voltas no pescoço, empoçaram na espádua, caíram para o braço e em torvelinhos
correram sua extensão, lamberam-me os dedos e abraçaram a caneta até que, em
pequeninas gotas, caíram sobre o espaço em branco onde deveria estar seu nome.
Foi
então que chegaram esses elefantes, todos de uma vez, talvez já estivessem lá,
disfarçados de mobília e não os tivesse notado, não sei. Começaram a abanar suas
trombas para mim e me dizer coisas que só os elefantes dizem. Delicados, porém,
transitavam pelo apartamento sem quebrar nada exceto meu coração e corpo e
então, olhando pela janela, aguardei esses restos de sol para poder municiar-me
e lhes por fim. Espera meio longa, às vezes faltava sol, às vezes os elefantes
se escondiam tão bem que não era possível achá-los, às vezes eu me sentia o
elefante.
Caralho, este podia abrir o Volume II! Ah, meus paquidermes... ainda me fazem companhia, até o dia em que o sol resolver entrar por essa janela!
ResponderExcluirEu amo o meu paquiderme! Fazer o que?
ResponderExcluirfiquei lendo e pesando o tempo todo como paquiderme é uma palavra feia...
ResponderExcluirUau! E tudo isso sentado no sofá?
ResponderExcluirAdoro paquidermes. Aliás... acho que tô virando um... hahaha! Bjz, amore!
ResponderExcluir"Contos fantásticos no Labirinto de" Melo!
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