já faz algum tempo que vivo aqui, no estômago desse homem. não sei dizer ao certo quanto tempo, podem ser dias mas acho que são semanas, podem ser semanas mas acho que são meses, podem ser meses mas acho que anos, podem ser anos mas acho que são décadas, podem ser décadas mas acho que não sei.
lembro de quando ele me engoliu. eu nadava tranquila no oceano que é onde as baleias nadam, tem baleia que nada em outros lugares mas não as chamamos baleias porque só podem ser baleias as que nadam no mar, salgado, frio e quente, sujo, de plástico, migrando conforme a necessidade. enfim. nadava, estava lá subindo e descendo, esguichando, comendo krill quando ele me viu, perseguiu, fisgou e engoliu.
não sabia que um homem poderia engolir uma baleia mas aquele engoliu. achei que iria me matar, tirar as carnes de meus ossos, fazer óleo de minhas vísceras, vender os ossos mas não, ele abriu uma bocarra e me vi assustado ante dentes brancos de um branco que já vira dias mais brancos. não sabia que homens tinham dentes, eu não tenho então acho estranho quem tem, não confio em criaturas com dentes, os usam para ferir, morder, veja só os tubarões, homens são tubarões eu acho, só que vivem fora d'água.
mas o homem não mordeu, passei pelos dentes e ele fechou a boca enquanto punha a cabeça para trás para facilitar me engolir. não é fácil engolir uma baleia, somos grandes, temos cracas na pele, barbatanas espessas mas, ele me engoliu, fiz com que engasgasse, ele tossiu quando eu entalei em sua garganta mas ainda assim me engoliu e fui parar direto no seu estômago
nunca tinha visto o estômago de um homem, só conhecia os das baleias. o dele era pequeno e custei a me encaixar ali, ele arrotava enquanto eu me debatia buscando alguma posição ali dentro até que finalmente me acomodei e ele parou de arrotar. fedia ali dentro, será que o estômago de todos os homens fede assim? nós baleias não temos estômagos tão fedidos ou talvez sim e tenhamos nos acostumado ao cheiro.
olhei ao redor, nada demais, havia alguns restos do que supus serem alimentos e achei muito estranho porque nós baleias não comemos comida de homem, não sabia dizer o que era digerido ali mas, comecei a ficar com medo de fosse digerida também só que não sentia nada, estava acomodada e não parecia que o estômago do homem fosse capaz ou estivesse interessado em digerir uma baleia.
fiquei ali e a fome começou a apertar. como fazer? será que o homem saberia que baleias também precisam de alimento? que temos fome e sede? mexi um pouco e ele arrotou forte e qual não foi minha surpresa quando senti que algo descia pela garganta do homem e, de repente, caiu sobre mim algum tipo de pasta estranha acompanhada de um líquido de cheiro forte. consegui me mexer e comer um pouco daquela pasta e beber um pouco do líquido, quase vomitei mas fiz força para não fazer isso porque tinha muita fome e sede.
o tempo foi passando e comecei a perceber que a intervalos regulares, o homem entregava alimentos, pensaria na baleia que carregava dentro de si? talvez. ou talvez apenas tivesse fome também e precisasse comer, igual a uma baleia e, sinceramente, aquele homem comia muito. acabei me acostumando com a dieta estranha humana e sabia meio de cor o que cada dia da semana traria de refeição.
ficava ali, pensando coisas de baleia mas começava a pensar coisas de homem, talvez por estar dentro de um, por estar me alimentando como se alimenta um, dizem que somos o que comemos. às vezes, acho que conseguia sentir o que o homem pensava só pelo tipo de comida que ingeria ou pela ausência dela, talvez ele também conseguisse sentir o que eu pensava ali dentro de seu estômago, talvez pensássemos juntos a mesma coisa, eu pelo estômago e ele pela boca.
então um dia, o homem começou a tossir muito, sem parar, eu já vivia nele há algum tempo e aquela tosse não era normal. já ouvira muitas coisas, ele vomitar, cagar, mijar, roncar, arrotar, cuspir mas, aquela tosse parecia algo vindo de outro lugar do corpo humano que eu não conhecia e como poderia? vivia no estômago, esse era o máximo de conhecimento da anatomia humana que possuía. para mim, o ser humano era feito de boca, dentes e estômago, se havia mais eu desconhecia.
a tosse foi aumentando e eu, ali no estômago do homem, comecei a sentir convulsões estranhas, achei que finalmente ele iria me vomitar e me veria livre daquela prisão estomacal mas não, ele ameaçava mas eu não saía, ficava ali, presa.
até que ele parou de tossir. e não apenas de tossir mas de fazer qualquer coisa. nada. sem comida, sem água, sem bebida, sem ar, sem tosse, sem nada, absolutamente nada. é o fim, pensei, ninguém jamais saberá dessa baleia que foi engolida por um homem, não haverá histórias a respeito, não será lenda ou mito, não será repassada como anedota, fim, frio e estomacal fim, as coisas começam pela boca mas morrem no estômago.
e então, senti uma lufada de ar fresco e uma fina lâmina de luz que se abria pelo ventre do homem que tinha engolido uma baleia. me assustei, sobrevivera aquele tempo todo dentro do homem, vivera com ele, comera de sua comida, bebera de sua bebida, trocamos fluídos e pensamentos, fomos gastronomia um do outro e agora, o fim seria besta, outro homem abriria meu homem e acharia uma baleia, de certo que a comeria ou engoliria e eu passaria o resto da vida assim, entrando e saindo dos estômagos humanos.
mas não. barbatanas delicadas separaram as carnes humanas e me tiraram de dentro do homem, lavaram minha pele suja de homem, minhas feridas gástricas, e massagearam meu peito para que buscasse o ar puro, livre dos cheiros internos do homem.
olhei ao redor e só via baleias que, juntas, choravam e se prostravam diante mim. confusa, perguntei do que se tratava tudo aquilo e foi quando elas me disseram que eu era o deus-baleia, gestado na carne humana como provação e, tendo sobrevivido, estava apta a ser a divindade.
então fez-se uma luz, cetácea, azul do oceano e, num esguicho abençoado, ascendemos todas ao céu, onde as baleias nadam sem medo, sem rumo e sem serem engolidas por ninguém.
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