e vem o rosnado pelas costas, arrepio que sobe do calcanhar pelas pernas, quadris, ventre, peito onde vive um órgão inútil, pescoço que uma tosse sem fim aflige dia e noite, boca sempre seca porque nunca teve outros gostos, nariz que sente aromas imaginários, olhos que há tempos não enxergam quase nada mas veem tudo e cabeça que lateja direto mesmo tomando comprimidos que seriam suficientes para anestesiar um país.
não vou olhar, não deve ser nada, não seria a primeira vez que me prego peças, assim mesmo, peças, peço que seja mais uma e meio que já me acostumei com elas fazendo parte do meu cotidiano, sem elas o que já não tem graça alguma ficaria totalmente apático então melhor deixar que elas me peguem pelo menos emprestam algum sentido ao que não já não tem nenhum.
ele rosna mais forte, vou olhar, se ele ainda estivesse aqui ele diria que era coisa de minha cabeça fervente, igual aqueles chás que ele bebia toda santa noite e que empestavam a casa com um cheiro de mato queimado, incenso que me dava enjoo, eu ia ao banheiro vomitar dizendo que comera algo fora e ele dizia que eu precisava cuidar melhor da alimentação, como se alimentar fosse dar cabo de tanta fome desnutrida.
ele rosna alto, sinto que deve estar arreganhando os dentes, pronto para cravar em minha carne sem sal, se é sangue que deseja melhor bater noutra porta porque neste aqui o sangue virou farinha faz tempo. outro dia me cortei ao fazer a barba e não saiu nem um filete, fiquei olhando no espelho, esperando o vermelho aparecer mas nada, nem um pontinho, nada e então, cortei mais fundo com a gilete e mesmo assim nada, nem um jorro, olhei para meu reflexo e passei a lâmina no espelho, ele com certeza sangrou.
latiu agora, não aquele latido de cachorro feliz porque o dono chegou em casa, domesticado, feito a gente quando acostuma a ter outra pessoa em casa e abanar o rabo quando ela chega, ele abanava o dele, eu punha o meu no meio das pernas e a vida seguia assim entre rabos. não aquele latido, era de bicho feroz, selvagem, do mato, astuto, atento, que persegue a presa até que ela se canse e ele possa lhe devorar as entranhas.
senti algo roçar minha perna, umidade de vapor canino, me cheirava como a sentir se valia a pena comer ou passar fome mais uns dias ante carne tão decrépita. eu rijo feito um graveto exposto numa geada, não, não iria olhar porque dizem que animal assim se você olha nos olhos ele avança, entende que é desafio, igual a gente quando vivia aqui, não tinha olho no olho, um encarava e outro baixava os olhos, sem desafio, sem discussão, sem coragem, se era sua ou minha tanto faz agora que não tem mais onde por os olhos salvo no espelho, aquele que eu cortei e que até hoje estou esperando sangrar.
e ele deve ter sangrado porque o bicho sentiu o cheiro e cravou os dentes na minha perna, não sangrei porque a gente quando sangra sente o líquido quente escorrer e o corpo vai perdendo um calor igual aquele que a gente foi perdendo aos poucos até viver de invernos. também não doeu porque a dor, para ser sentida, precisa de alguém vivo e eu não era isso fazia tempo, estava vivendo mas não vivo, algum tipo de golem ou mortovivo que estava apenas procurando sua cova, quando achasse, deitaria solene em meu buraco.
e o animal foi devorando, me comendo todo e eu sem sentir qualquer tipo de dor, pânico ou desconforto. era tempo já, ele deveria ter chegado antes mas essas coisas demoram, eu sei, você sabe mesmo não estando mais aqui e fico pensando se não vai encontrar também um bicho desses atrás da porta e ser devorado junto comigo e virar repasto, seria bom, ser digerido contigo, algum tipo de bolo fecal seria feito de nós.
e o bicho me comeu todo, não deixou nem ossos para atestar que eu fora alguém porque ossos são isso, atestado cabal de que fomos, estivemos aqui, sem osso não somos ninguém, melhor que identidade, ossos são nossos ofícios, registro, evidência mesmo quando já carcomidos pelo tempo ou pelo desamor.
devorado, eu agora lobo fiquei ali esperando atrás da porta. quieto. calmo. reticente. sempre chega alguém para ser devorado.
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