cheguei em casa e as roupas saíram voando feito folhas fugindo no outono, essas folhas caem de mim mas voltam no dia seguinte não as mesmas mas outras, passadas, novas, frescas, cheirando amaciante e sabão em pó, as velhas vão no cesto cheirando suor, escapamento, descarga, cigarro, morrinha e vida que morre dia a dia entre os prédios famintos. a gente lava tá novo, de novo, mas o cheiro da cidade segue nelas entre as fibras sintéticas, gente sintética, vida sintética, que não amassa e nem precisa passar, passado é coisa inútil, deixa sem passar.
vou pro banho, ligo chuveiro e deixo a água esquentar, nos dias mais frios tem de apertar a registro como se torturasse um preso político ou ele não solta a água quente, ficamos nessa negociação, eu aperto ele solta água, eu afrouxo ele solta água fria, vamos nessa até acertarmos o passo e ele para de reclamar, o ponto entre meu prazer na tortura e o dele em sentir dor.
olho o espelho, só olho porque dizer que tem algo do outro lado me olhando de volta é mentira, mentira é aquilo que a gente fala pros outros pra eles nos deixarem em paz e pra nós pra gente poder dormir em paz, uns comprimidos ajudam, hoje em dia a paz é vendida na farmácia, só comprar.
entro no chuveiro, água está boa, pego o sabonete e começo a me esfregar, o registro calado, isso mesmo, se reclamar aperto mais que sei que gosta. esfrega, aqui e ali, tira do corpo aquele cheiro de cidade, aquele cheiro de gente que não tem gente e conforme vai formando a espuma, ela fica escura, cinza, parece fuligem. esfrego mais, com força, igual a mãe esfregava quando vinha da rua como vindo de alguma guerra, ela sem entender como alguém podia ficar tão imundo, a sujeira é a vida dos santos, quem se limpa é doente, sujos somos mais puros, mais claros, mais gente mas, desde cedo somos feitos pra limpar tudo, alvos, taca sabão, taca xampu, taca cheiro pra tirar o cheiro, gente não cheira gente.
mais espuma, mais cinza, parece piche, começa a grudar, a água não dá conta de remover, esfrego mais forte, tem de sair mas só aumenta, gruda ainda mais e o registro não faz nada, só deixa a água cair. dou risada chorando, ou choro rindo, faz é tempo que não sei mais a diferença ou se faço um ou outro ou os dois juntos. esfrego com vontade, igual aquela vez que gozei e não sabia gozar, me senti sujo e quasse arranquei o pau fora de tanto querer limpar.
tem se sair, tem de limpar, tem de ficar alvo e branco, puro, santificado, esfrega mais que sai, sai mais fuligem e sou agora um borrão cinza dentro do chuveiro, rindo chorando, espuma escura que vai escoando pelo ralo e sigo esfregando, esfregando, esfregando, esfregando, esfregando, mais cinza, piche breu escuro ralo água espuma.
já não sou mais eu. esfreguei até deixar de ser, virei um líquido cinza, uma espuma escura que vazou pelo ralo e foi pelo encanamento junto com outras espumas que gritam pelos canos da cidade, nos esfregamos até deixar de existir, até sermos essa massa líquida de breu que grita, que bufa, que geme e que não sabe de mais nada, pelos canos da cidade desaguamos, vertemos e somos misturados ao caldo primordial que pulsa pelas vias da cidade, basáltico, escuro, grudado no chão e que não sente nada a não ser o passar dos carros.
assentado, sinto o peso da vida urbana passar sobre mim, sobre nós, sobre a gente que se esfregou e está aqui, agora, sentido cócegas com o pneus a passarem por cima de nós, olho pra cima e tem o céu, o céu é um asfalto também só que azul, dos anjos, no céu não tem carro, todos voam então o asfalto celeste olha pra baixo porque não tem utilidade e chamamos de céu. somos o asfalto de deus, a via dos anjos.
deitado, eu asfalto da cidade, olho para o firmamento.
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