e o sol veio manso devorando as frestas das venezianas, fazendo furos de luz que aos poucos iam caleidoscopando as paredes, mordendo a penumbra do quarto, lutando e vencendo cada pequena partícula de escuridão que guardava em suas moléculas o cheiro da noite passada.
aos pouco divisei sua forma, o ar se desprendia de sua pele soltando microscópicas porções de você que eu, de olhos fechados, sorvia feito incenso monástico. queria seu aroma mas só vinha em cada narina um odor diferente como se cada uma dela captasse o cheiro de cada um de nós e não o nosso.
senti um aroma de relva úmida, achei que fosse teu mas era de fora, trazido pela manhã que vencia fácil a guerra contra o breu do quarto. parecia que sua pele se desprendia cada vez mais dissolvendo-se na luz que ganhava mais espaço a cada ressonar seu, temi que sua mortalidade estivesse condicionada a ausência de luz, quis puxar as cortinas, fazer dali nosso mausoléu mas sua decomposição era tão doce e cálida que nada fiz ou poderia fazer.
e quando resolvi tocar, ainda no medo de desfazer em pó tudo aquilo que você era ou estava, vi que eu também me desfazia lentamente em meio à luz do quarto, por isso minhas narinas sentiam cada uma um aroma diferente, lá dentro, na mente, o aroma se juntava em nós e eu entendia isso perfeitamente.
por fim, a luz deu o golpe final e o quarto ficou claro como uma estrela nova, estamos dissolvidos já, misturados entre as partículas de poeira, pele e ar que flutuavam livres pelo quarto e começavam a sair pelas frestas das venezianas.
aspergidos pela cidade, amamos, nas cinzas de nós.
28 de jul. de 2020
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