no aeroporto, meu medo mais primal e talvez o de todos se fez real, olhava a esteira de bagagens circular lentamente, vazia, como se as lâminas de borracha que a compusessem fossem algum tipo de oráculo e eu fosse o único ali para lhes ouvir os vaticínios o que era verdade, todos que habitaram por intermináveis horas o avião comigo já haviam ido e somente eu estava ali, enamorado da esteira que, ciumenta de certo, não cuspiu minha mala.
conformado, procurei pela placa de bagagens extraviadas e me dirigi ao balcão onde um home que não era de meia idade mas não era jovem, não era tão jovem mas não chegara a maturidade, não era tão maduro para ser adulto mas talvez fosse jovem demais para ser novo, enfim, uma dessas pessoas que não parece ter nascido mas simplesmente fabricada, somos isso, não, linhas de montagem, enfim, estava lá o homem e me dirigi a ele mas, ou não quis ou não percebeu a mim ali em pé, seguia com ar absorto no monitor do que eu achava ser um terminal, poderia ser um celular, poderia ser nada, enfim, insisti, tossi, tossi de novo, tossi como se fosse expelir os pulmões.
pois não?
bom dia.
bom sia.
minha bagagem.
sim?
não veio.
no voo?
como?
sua bagagem.
sim, essa mesmo que não veio.
no voo?
bem, não sei dizer, creio que sim, a despachei pelo menos.
então ela veio com o senhor?
bem, não comigo, no avião mas não comigo.
entendo.
ela não veio.
com o senhor?
veio comigo, acho que me expressei mal, ela veio comigo sim mas não aparecei aqui na esteira.
qual esteira?
aquela ali.
a 8?
sim, deve ser.
preciso saber exatamente.
sim, a 8, essa mesma.
deixe-me consultar, um momento por favor.
olhava para ele e para a esteira, tímido, ressentido, talvez com raiva mas raiva não era algo que eu sentia com frequência, ou fosse, ou era, ou fosse talvez por causa do avião, ou da mala, ou do homem, aquele de meia idade adulto.
aqui está.
minha bagagem?
como?
você disse aqui está.
ah, não, digo, as informações sobre seu voo.
ah.
ele pousou.
sim, eu sei.
todas as bagagens foram retiradas já.
menos a minha.
a que veio com o senhor, certo?
essa mesma.
não está aqui.
isso eu também sei.
não precisa se alterar.
não estou alterado.
ok, sua bagagem não chegou na esteira?
não, já lhe disse.
o senhor chegou a olhar nas outras esteiras?
não, deveria?
às vezes...
mas não vejo quaisquer malas por perto.
sim, é verdade, as malas que não são retiradas ficam ao lado da esteira e depois são trazidas para cá.
eu acabei de chegar, não creio que haveria tempo.
também não dei entrada em nenhuma bagagem perdida ou não retirada.
então?
alguém poderia ter pego a sua mala por engano, o senhor sabe, as malas costumam ser parecidas.
não acho que tenha sido o caso.
entendo.
e o que fazemos, então?
damos entrada no sistema com seus dados e aguardamos.
mas quanto tempo?
o tempo que for necessário para rastrear sua mala.
e se não a encontrarem?
o senhor será reembolsado, conforme as regras de seu bilhete.
e há algo mais a ser feito?
não, o senhor precisa dar entrada e aguardar.
façamos isso então.
dei entrada no sistema, fui guardado com todo o amor e carinho num canto de uma sala localizada atrás do balcão onde ficava o homem de meia idade, quase adulto mas não tão jovem aquele mesmo, enfim, fiquei num tipo de escaninho e aguardei, quieto, calado, por horas, dias, meses até que um dia, o homem rapaz, meia idade adulta, enfim, veio me buscar trazendo minha mala.
encontramos sua mala.
fico feliz.
o senhor pode assinar aqui este protocolo e em seguida está tudo ok, liberado.
agradeço.
assinei o protocolo, peguei minha mala e voltei, mudo, para meu escaninho.
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