Havia muito a fazer e assim, passou rápido um café, cortou uma fatia fina de pão no qual passou um pouco de manteiga que já ia meio desandando e depois, ficou ali uns momentos observando a manteiga penetrar nos pequenos furinhos do pão. Sempre passava a manteiga de forma que a fatia de pão ficasse uniformemente coberta, mas hoje, de forma acidental ou não, havia deixado um pequeno pedaço dela em uma das beiradas da fatia e agora, ela vagarosamente escorria por aquela parede de trigo.
Ficou ali observando aquele movimento moroso, a xícara de café soltando um vapor leve, o aroma era de café ou algo que parecia com isso, ela lembrava do cheiro do café e principalmente do gosto ou era do gosto e depois do cheiro, não sabia, só sabia que lembrava café. A manteiga finalmente percorreu toda a lateral da fatia de pão e se esparramou no pequeno prato que a acolhia, ela queria ser a manteiga mas a vida era uma fatia muito grande de pão.
Desjejum feito, lavou a pouca louça que usara e já com os primeiros indícios de trabalho solar foi-se para a sala onde o tear a aguardava em silêncio. Abriu as janelas, a claridade já começava a inundar o cômodo o que lhe permitiria trabalhar, essa época era boa, havia muita luz, diferente das outras, ela não lembrava os nomes, sabia apenas que numas fazia frio e noutras, muito calor, agora era algo no meio, ela queria ser uma estação mas a vida havia cancelado sua parada.
Olhou para o tear, o trabalho já ia adiantado, questão de mais o que? Um dia, pouco mais? Era uma encomenda boa, lhe traria alguns dividendos, o suficiente para alguns meses até pingar outro trabalho, não eram muitos, teares eram antigos, poucas pessoas sabiam manejar um, acabariam por desaparecer, ela queria desaparecer mas sempre acabava aparecendo de volta.
Esfregou as mãos no avental já carcomido por um sem fim de esfregadas, arfou de leve e sentou-se no banco em frente ao tear quando o sol finalmente despontava no horizonte. Ela queria ser um sol, se contentaria com uma lua, mas o universo era muito grande para ela.
Começou a tecer, era bom começar cedo, fazia o trabalho render, ela rendia muito, lembrava de um tempo em que tecia quase sem parar, o tear chegava a pedir arrego, ela chegou a vara noites tecendo mas não sabia ao certo quando fora isso, podia ser um sonho, talvez fosse, ela tecia há tanto tempo que até o tempo era apenas um fio a mais a ser tecido, ela queria ser o tempo mas ele era um fio muito grande para tecer em seu tear.
A manhã já ia alta, o trabalho rendia bem e ela resolveu fazer uma pausa para tomar um café e comer mais uma fatia de pão, almoçaria mais à tarde. Dessa vez não passou manteiga, apenas comeu o pão e bebeu meia xícara de café. Ficou alguns minutos olhando pela janela da cozinha, o tempo estava bom lá fora, talvez valesse uma caminhada para esticar as pernas, ela antes fazia isso mas não lembrava quando o fizera a última vez, tinha de acabar aquela peça o quanto antes, havia pressa na entrega mas o sol estava tão convidativo, ela queria caminhar mas os caminhos já não eram os mesmos há tempos.
Voltando ao tear, sentou-se e foi quando deu fé, pela primeira vez ao olhar para a barra do vestido que roçava gentilmente o chão, um pequeno fio que dela se desprendia. Mirou o fio por longos minutos, não com surpresa mas com interrogação, era de se esperar que houvesse já que o vestido vivera dias mais ilustres. Pensou em puxá-lo mas isso poderia desfazer toda a costura e sua era a responsabilidade de tecer e não o oposto, resolveu então deixar o fio quieto e voltou ao tear.
A tarde avançou rapidamente, a luz já ia fugindo quando ela parou seu trabalho, sim não tardaria a acabar e enquanto admirava seu trabalho lembrou-se do pequeno fio solto em sua saia. Olhou para baixo e talvez pela pouca luz ou cansaço das vistas, ela queria ver mas a visão era demais para tanto, o fio lhe parecia maior. Certamente que seus movimentos tecendo o haviam soltado mais, levou a mão até o fujão e fez menção de puxá-lo, mas, anos de tecelã lhe impediram de cometer crime tão hediondo e cansada, resolveu ir deitar-se.
No dia seguinte repetiu lá seu mesmo ritual e, quando sentou ante ao tear olhou para baixo, de certo que o fio deveria ter sumido já, impossível que ainda estivesse lá mas estava e agora, à luz do dia, não havia falha ou truque das vistas, estava mesmo maior. Abaixou-se e o pegou com uma das mãos, já formava um pequeno bolo, ela deveria cortá-lo ou mesmo tentar costurá-lo de volta mas para isso precisaria parar o trabalho e a data da entrega se aproximava além do mais, ela sentia-se cansada, mais do que ontem e do que antes, ela pouco se cansava, ela não queria descansar mas o cansaço era uma fatia de pão com manteiga demais sobre ela.
Deixou o fio para lá e voltou a tecer, nem mesmo fez pausa para café ou almoço, queria terminar logo, a entrega, era preciso respeitar os prazos, seu cansaço não importava, ela jamais havia atrasado uma entrega, seu tear era mais preciso que muitos relógios e seria possível acertar as datas do ano por suas entregas.
Quando o dia bateu seu ponto transferindo o turno para a noite, ela parou de tecer e, meio ressabiada, olhou para o chão, lá estava um pequeno monte de fios, já um pequeno novelo saindo de si, ela ensimesmada pensou em como poderia estar se desfazendo assim uma fazenda tão boa mas, ainda que fosse de qualidade, não há tal coisa que peite o tempo que acaba por desfazer tudo que é do bom e do melhor afinal, para ele isso não existe. Exausta, levantou-se e foi para a cama arrastando atrás de si aquele pequeno filhote de tecido, incapaz de lhe cortar o cordão umbilical por uma questão de princípios mais do que praticidade.
Acordou no dia seguinte com a luz do sol a lhe tocar as faces emprestando um calor há muito esquecido, chegou a pensar que sonhava com calores há tanto enterrados e olvidados mas a surpresa lhe pegou no pé pois se o sol lhe fazia carícias, o trabalho já estava então atrasado. Pulou da cama e sem café, pão ou manteiga foi-se ao tear mas sentia-se pesada, mais do que o peso do vestido, corpo ou alma que já fora tecida e costurada tantas vezes, olhou para trás e lá estava o novelo agora maior, já se poderia tecer um pequeno tapete dele, pegou-o nas mãos e indecisa e em susto, largou-o como se houvesse tocado algum leproso.
O dia corria já, era fazer repor o tempo perdido, ilusão pura mesmo que houvesse às mãos todo o tecido do mundo. Sentia as forças lhe faltarem mas era preciso tecer, cumprir a entrega, a clientela não podia esperar, ela sim.
No tear, o trabalho ia bem, pensava mesmo que era seu melhor trabalho em tempos, talvez o melhor de sua vida, se fosse seu legado, poderia ir-se em paz e ouviria do lado de lá os elogios e faces de espanto antes tamanha peça de arte, quem sabe gerações futuras não estudariam seu trabalho, não fosse usado como referência e padrão de qualidade para tecelões futuros se é que tal coisa existira no futuro mas, sempre haveria necessidade de tecelões fosse para tecer roupas, tapetes ou mesmo a delicada fábrica que unia em finos fios a trama da vida e, se não fosse para tecer, que fosse para remendar, tudo se rasga com o tempo e apenas mãos firmes e experientes sabiam como por de volta o que as intempéries cotidianas haviam rasgado.
Esses pensamentos lhe fizeram escorrer um fiozinho de suor frio pela testa e pelas faces, faltava tão pouco agora, era um tear bom aquele, estava ali desde sempre ou desde quando ela entendia o que era o sempre, brotou em sua mente uma lembrança meio embaçada de menina vendo mulher tecer, a vida era um tear, tecemos com nossas lágrimas o pano que nos servirá de mortalha, alguém lhe falara isso ou era um lembrança solta.
Olhou para o chão, o novelo que se soltava de sua saia já estava grande, se lhe faltasse fio poderia usá-lo para acabar a entrega mas fio havia, fio havia, ela tinha um bom estoque, estava segura mas, como a segurança é por si insegura, para apaziguar seu medo e satisfazer sua certeza, levantou-se e foi até onde guardava os fios arrastando atrás de si aquele pequenos animal de estimação felpudo.
Ao abrir o armário onde acomodava seus fios, quase foi ao chão, empalideceu de tal forma que a cera de velas tinham mais coloração que sua face, o armário estava vazio e a entrega seria no dia seguinte. Voltou ao tear arrastando dois pesos, o de sua decepção por não ter-se antecipado ao fato e o pequeno novelo que ia onde ela fosse.
Sentou-se em frente o tear, lá fora a tarde se espalhava por todo lado de forma preguiçosa, ela inspirou profundamente e desejou que a tarde ficasse ali mais tempo mas já ao longe as cores da noite começavam a comer em pequenos pedaços aquele resto de dia.
Desolada, não poderia cumprir com a entrega e lhe faltava tão pouco, um novelo bastaria, não mais. Como pudera ser tão descuidada? Uma vida dedicada assim ir ao fim, nunca lhe havia passado isso, agora deixaria como legado não elogios mas um nome que seria eternamente associado à inconstância e incompetência, seu tear seria vendido como bugiganga e não preservado como item histórico.
Suspirando levemente olhou para o chão, o novelo ainda estava lá, maior ainda ela pensou, como se não bastasse a desgraça de agora ainda tinha aquele atestado de sua incapacidade a lhe lamber as saias e então, em algum tipo de iluminação divina ou desespero, é difícil diferenciar ambos pois confunde-se muito, quando se pensa num é outro e vice-versa, teve ali a resposta de suas preces ou angústias.
Sacou o novelo do chão e o desfiou encaixando sua meada no tear. Com o olho, mediu a quantidade, haveria de ser o suficiente, não tinha também outra alternativa que não essa, preparada e determinada, começou a tecer pois a noite já se mudava e o dia seguinte iniciara sua jornada trazendo consigo a entrega.
E teceu a noite toda, horas a fio, com fio, fiando-se no tecido que dela saía, seu nome seria intocado, seu tear imaculado, seu trabalho reconhecido e sua técnica reverenciada. Ela seria alguém, não apenas um fio no tear mas o tear, nunca fizera outra coisa exceto tecer, tecera de tudo de tapetes a tapeçarias, a finas tramas que jamais entendera a serventia, de panos raros e caros, padronagens simples e das mais intricadas, seguira tecendo fosse na chuva, sol, neve ou seca, tecia de olhos fechados, muitas vezes com amor outras tantas com um sentimento menor mas tecia, a vida tecia junto mas ela não reconhecia a padronagem, tentava se encaixar na trama mas a vida sempre mudava o padrão, ela teve padrão mas não lembrava qual era, achava ter tecido fios com outros mas há tanto tempo que não sabia quais eram os fios usados, não lembrava bem deles apenas de seguir tecendo, dias, noites e sempre no prazo, isso era o mais importante, tecer é vida, tecer com arte de no prazo é arte em vida e se a arte imita a vida que dizer de sua tecelagens, não eram arte e vida? Não eram sua vida, não tecia sua vida para outros deixando que eles usassem sua vida tecida como proteção aos fios tortos que não sabiam tecer por si?
O dia chegou de mansinho, veio junto uma névoa suave que cobriu tudo dando às paragens aparência de algo imerso em líquido. Quando a névoa subiu e a luz morna finalmente tocou a terra, as pessoas começaram a sair para suas tarefas diárias, havia muito a entregar e o prazo é muito importante, o leite deve estar às portas cedo, os jornais idem, o comércio deve abrir suas portas e a vida deve ter seus prazos atendidos.
A entrega da encomenda foi respeitada, a peça de tecelagem era realmente única, foi um espanto geral ante tamanha qualidade e fineza do trabalho executado, uns diziam que não era algo terreno, que apenas os divinos poderiam ter concebido algo tão perfeito e belo, outros sussurravam que forças menos nobres pudessem estar envolvidas, uns tantos lhe achavam defeitos por motivos de inveja e amargura apenas, outros não deram atenção e a pessoa a quem era destinada a peça rompeu em prantos ante tamanha beleza, disse sentir uma injustiça que peça tão rara e única fosse de sua propriedade e decidiu por doá-la a comunidade, houve quem duvidasse de seus motivos mas a doação foi aceita mesmo assim.
O único consenso foi a dúvida sobre o paradeiro da artesã autora de tão magnífica peça.
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