8 de jan. de 2021

memórias de um verde desbotado

 


Lembro daquela festa, arrumamos tudo, idas e vindas levando enfeites, pessoas, bebidas. 


Lembro do posto de gasolina onde enchemos dezenas de bexigas pretas e brancas, o carro cheio delas, algumas fugiam de nós como fugíamos de nós mesmos e corríamos para pegá-las mas a nós, jamais alcançamos.

O carro lotado de bolas parecia algo saído de um circo, nós dois nos bancos da frente os palhaços, clichês de nós mesmos, rindo por fora e apáticos por dentro. Já não éramos fazia um tempo mas a cola que nos unia parecia indissolúvel ante promessas de separação e de mera amizade, esse tipo de lenda urbana que permeia os relacionamentos.

Cordiais, mantínhamos um bom relacionamento sem dar o espaço e o tempo necessários um ao outro para que os laços efetivamente se rompessem e pudéssemos quem sabe num futuro nos olharmos com ternura. Éramos jovens demais, ignorantes desses procedimentos pós-amorosos e de alguma forma cármica, incapazes de abrir mão um do outro ou ser, efetivamente, um do outro. No meio disso, achávamos tempo para sermos o que podíamos ser para nós mesmos e o sexo que brotava disso deixava um gosto amargo na alma depois do gozo.

Festa grande, estávamos animados e nem era nossa, de um amigo mas a tratamos como se fosse nossa. Você estava sozinho ou sem ninguém que representasse algum compromisso, eu estava iniciando algo com alguém que se não era você, o lembrava. Meio que o oposto do que eu (achava então) que queria mas ele tinha um real interesse em mim e eu começava a sentir o mesmo por ele, não tinha parâmetros para comparar, você fora o primeiro e mais marcante, não sabia como escolher algo diferente de você no mercado, o diferente me assustava.

Tudo quase pronto, as pessoas começavam a chegar e eu precisava ir buscar meu moço, ia me acompanhar na festa, estávamos bem e eu achava que ia me libertar daquela simbiose meio nefasta que vivíamos. Fui buscá-lo, de quebra, trouxe o DJ que daria som na festa, conhecido nosso, me perguntou sobre você, no carro, eu já com meu moço e uma amiga deste, disse que estava bem mas que não estávamos mais juntos, clima tenso, o moço sentiu o peso no ar, desconversamos. Eu queria gostar dele apesar das diferenças que, se não eram intransponíveis, eram para mim gritantes mas havia mesmo um afeto brotando e o nutri crente de que faria tremer as barragens, imaginarias ou não, que punha entre nós, sentia um gosto de futuro, promissor, dali podia sair algo bom e isso me animava.

Chegamos, a festa já ia alta, muita gente. Acomodamos o DJ e expliquei ao meu moço que estava ajudando nosso amigo e que por isso, não poderia assim aproveitar a festa com ele como desejava. Vocês já se conheciam pois, no dia em que ele me abordou, estávamos juntos num clube, juntos, mas separados, achávamos que podíamos viver assim próximos mas sem nos amar plenamente, queríamos a companhia um do outro mas não o amor, não fechávamos essa equação, quando tentávamos resolvê-la, nos noves fora, acabava a conta não fechando e o final, apesar de sermos par, era sempre ímpar.

Mas achei que era diferente, abria-se o caminho para a libertação e acreditava mesmo que acharíamos nossos caminhos separados mas ainda juntos. Quisera eu saber naquele tempo que maquiamos essas mentiras tão bem que nos parecem verdades, hoje, já não aceitaria essa imitação barata e poria tudo em pratos limpos pois teria antevisto a dor e sofrimento embutidos, escamoteados em nossas aparências de maturidade e amizade fraterna.

Meu moço dançava, eu e você trabalhávamos. A certa altura, você me acua num canto, eu acho mesmo que estava a lhe evitar a noite toda, receoso do ar faminto que captara em você, confuso por não saber se não me queria feliz com outro ou apenas não me queria feliz salvo na infelicidade que compartilhávamos amiúde.

‘Você está me evitando a noite toda...’ brotou a acusação de sua boca e olhos cabisbaixos.

Emudeci, neguei mas era incapaz de fixar meus olhos nos seus.

‘O que você quer com esse cara?’ soltou você seco.

Não sabia o que responder, olhei o chão.

‘O que você quer com esse cara? Ele não tem nada a ver com você, como você pode?’ veio você mais incisivo.

‘E você que o que de mim?’ bruto ‘Não sei, o que você espera? O que quer? Não estamos mais juntos e ele gosta de mim’

‘Gosta?’ respondeu você ‘Mesmo? E você gosta dele?’

Fiquei mudo, esperava que o chão me ajudasse a responder.

‘E você? Gosta dele? Sério mesmo?’ insistiu você.

‘Sim’ sussurrei.

‘Olha pra mim e repete isso que você falou’ disse você.

Vai chão, me ajuda!

‘Olha pra mim, porra! E repete isso que você falou, diz que não sente mais nada por mim’ e com as ultimas silabas saiu um choro honesto, sentido.

Antes que eu compartilhasse de suas lagrimas, sai esbaforido para encontrar meu moço. A festa seguiu, nos evitamos a noite toda mas de relance vi os copos e você em grande intimidade.

Chegava o fim da festa, pessoas indo embora e resolvo dar carona a você e outros amigos que moravam ali perto. Vamos, digo ao moço que volto logo, coisa de minutos, que me espere, ao sair, uma amiga nos vê e profetiza: ‘Não demora!’ com olhar de que sabia como se fecharia a noite. Saímos e um a um deixo todos em casa, você é a ultima entrega da noite.

Desço do carro, você está meio alto, digo até logo mas você me faz entrar, não queria, ou queria sem querer e dentro de sua garagem você me ataca, me aborda e eu ainda em abstinência de você não resisto e tenho uma recaída homérica, nos amamos com fome, desejo voraz, os beijos parecem tirar nacos de carne de nossos corpos, juramos amor, maldizemos a nós presos nesse moto perpetuo de desejo e necessidade absurda, gozamos avidamente e me sinto culpado.

Você entra em casa e eu no carro, volto para a festa muito tempo depois, encontro meu moço dormindo e minha amiga vidente que lê em minha face o que se passou, não tenho como negar, ela nos conhece bem demais para lhe escondermos o que somos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

one is the loniest number...

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10 Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu nam...