Lembro
daquela festa, arrumamos tudo, idas e vindas levando enfeites, pessoas,
bebidas. Lembro do posto de gasolina onde enchemos dezenas de bexigas pretas e
brancas, o carro cheio delas, algumas fugiam de nós como fugimos de nós mesmos
e corríamos para pegá-las mas a nós jamais alcançamos.
O
carro lotado de bolas parecia algo saído de um circo, nós dois nos bancos da
frente os palhaços, clichês de nós mesmos, rindo por fora e apáticos por
dentro. Já não éramos, fazia um tempo mas a cola que nos unia parecia indissolúvel
às promessas de separação e de mera amizade, esse tipo de lenda urbana que
permeia os ex-casais.
Cordiais,
mantínhamos um bom relacionamento sem dar o espaço e o tempo necessários um ao
outro para que os laços efetivamente se rompessem e pudéssemos quem sabe num
futuro nos olharmos com ternura. Éramos jovens demais, ignorantes desses
procedimentos pós-amorosos e de alguma forma cármica incapazes de abrir mão um
do outro ou ser, efetivamente, um do outro. No meio disso, achávamos tempo para
sermos o que podíamos ser para nós mesmos e o sexo que brotava disso deixava um
gosto amargo na alma depois do gozo.
Festa
grande, estávamos animados e nem era nossa, de um amigo mas a tratamos como se
fosse nossa. Você estava sozinho ou sem ninguém que representasse algum
compromisso, eu estava iniciando algo com alguém que se não era você, o
lembrava. Meio que o oposto do que eu (achava à época) que queria mas ele tinha
um real interesse em mim e eu começava a sentir o mesmo por ele, não tinha parâmetros
para comparar, você fora o primeiro e mais marcante, não sabia como escolher
algo diferente de você no mercado, o diferente me assustava.
Tudo
quase pronto, as pessoas começavam a chegar e eu precisava ir buscar meu moço,
ia me acompanhar na festa, estávamos bem e eu achava que ia me libertar daquela
simbiose meio nefasta que vivíamos. Fui buscá-lo, de quebra, trouxe o DJ que
daria som na festa, conhecido nosso, me perguntou sobre você, no carro, eu já
com meu moço e uma amiga deste, disse que estava bem mas que não estávamos mais
juntos, clima tenso, o moço sentiu o peso no ar, desconversamos. Eu queria
gostar dele apesar das diferenças que, se não eram intransponíveis, eram para
mim gritantes mas havia mesmo um afeto brotando e o nutri crente de que faria
tremer as barragens, imaginarias ou não, que punha entre nós, sentia um gosto
de futuro, promissor, dali podia sair algo bom e isso me animava.
Chegamos,
a festa já ia alta, muita gente. Acomodamos o DJ e expliquei ao meu moço que
estava ajudando nosso amigo e que por isso, não poderia assim aproveitar a
festa com ele como desejava. Vocês já se conheciam pois, no dia em que ele me
abordou, estávamos juntos num clube, juntos, mas separados, achávamos que podíamos
viver assim próximos mas sem nos amar plenamente, queríamos a companhia um do
outro mas não o amor, não fechávamos essa equação, quando tentávamos resolvê-la,
nos noves fora, acabava a conta não fechando e o final, apesar de sermos par,
era sempre ímpar.
Mas
achei que era diferente, abria-se o caminho para a libertação e acreditava
mesmo que acharíamos nossos caminhos separados mas ainda juntos. Quisera eu
saber naquele tempo que maquiamos essas mentiras tão bem que nos parecem
verdades, hoje, já não aceitaria essa imitação barata e poria tudo em pratos
limpos pois teria antevisto a dor e sofrimento embutidos, escamoteados em
nossas aparências de maturidade e amizade fraterna.
Meu
moço dançava, eu e você trabalhávamos. A certa altura, você me acua num canto,
eu acho mesmo que estava a lhe evitar a noite toda, receoso do ar faminto que
captara em você, confuso por não saber se não me queria feliz com outro ou
apenas não me queria feliz salvo na infelicidade que compartilhávamos amiúde.
‘Você
está me evitando a noite toda...’ brotou a acusação de sua boca e olhos
cabisbaixos.
Emudeci,
neguei mas era incapaz de fixar meus olhos nos seus.
‘O
que você quer com esse cara?’ soltou você seco.
Não
sabia o que responder, olhei o chão.
‘O
que você quer com esse cara? Ele não tem nada a ver com você, como você pode?’
veio você mais incisivo.
‘E
você que o que de mim?’ bruto ‘Não sei, o que você espera? O que quer? Não
estamos mais juntos e ele gosta de mim’
‘Gosta?’
respondeu você ‘Mesmo? E você gosta dele?’
Fiquei
mudo, esperava que o chão me ajudasse a responder.
‘E
você? Gosta dele? Sério mesmo?’ insistiu você.
‘Sim’
sussurrei.
‘Olha
pra mim e repete isso que você falou’ disse você.
Vai
chão, me ajuda!
‘Olha
pra mim, porra! E repete isso que você falou, diz que não sente mais nada por
mim’ e com as últimas sílabas saiu um choro honesto, sentido. Antes que eu
compartilhasse de suas lágrimas, saí esbaforido para encontrar meu moço. A
festa seguiu, nos evitamos a noite toda mas de relance vi os copos e você em
grande intimidade.
Chegava
o fim da festa, pessoas indo embora e resolvo dar carona a você e outros amigos
que moravam ali perto. Vamos, digo ao moço que volto logo, coisa de minutos,
que me espere, ao sair, uma amiga nos vê e profetiza: ‘Não demora!’ com olhar
de que sabia como se fecharia a noite. Saímos e um a um deixo todos em casa,
você é a ultima entrega da noite.
Desço
do carro, você está meio alto, digo até logo mas você me faz entrar, não
queria, ou queria sem querer e dentro de sua garagem você me ataca, me aborda e
eu ainda em abstinência de você não resisto e tenho uma recaída homérica, nos
amamos com fome, desejo voraz, os beijos parecem tirar nacos de carne de nossos
corpos, juramos amor, maldizemos a nós presos nesse moto perpétuo de desejo e
necessidade absurda, gozamos avidamente e me sinto culpado.
Você
entra em casa com reintegração de posse e eu no carro, volto para a festa e
encontro meu moço dormindo, a amiga vidente que lê em minha face o que se
passou, não tenho como negar, ela nos conhece bem demais para lhe escondermos o
que somos, reprova, entende mas reprova, sei disso em seu silencio como
veredicto.
Acordo
o moço e o levo para sua casa, no caminho, seu sono me poupa maiores
constrangimentos, estampada em minha testa a letra escarlate, inicial de seu
nome, grita e ri apontando para o sonolento ao meu lado. Deixo-o, beijos e nos
vemos amanhã.
Amanhã
vira depois, depois vira depois de amanhã e assim vai até que não há mais como
torcer esse parafuso e, espanado, solta-se em minha mão, incapaz de mentir mais
sobre meu desejo ter voltado a quem lhe quer não querendo. Luta, raiva,
tristeza e depois calmaria, o moço vai viver, sobreviver, eu não, nunca pois
você não queria e eu queria não querer.
Volto
ao mesmo esquema, somos dois mas nenhum, presos nessa metamorfose de amor que não
soubemos moldar ou compreender e apenas felizes por não sermos um do outro e
também de mais ninguém.