Toca. Toca. Toca. Sai da toca do sono aos poucos, filhote de algum mamífero, arrastando o corpo frágil para fora da Toca Toca Toca. Abre olhos, escuro, medo que dá, medo que deu, medo. Toca Toca Toca. Procura o telefone Toca Toca Toca.
A sono l muito ô muito sono.
Mudo, vasto mudo que se me chamasse mudo como seria se fosse mudo?
Alô - sem sono. Acordou. Já não filhote. Adulto, com raiva pelo sono cortado.
Alô - do outro lado. Voz conhecida, sintoma de sonho, talvez.
Pois não? - raiva do sono, oito horas por noite, mal havia dormido uma.
Ruídos. Migalhas do outro lado da linha. Comiam. Bolachas talvez. Biscoitos. Bolacha ou Biscoito? Regionalismos estão sujeitos ao onírico?
Quem é? - diz o sono cortado, quer dormir, todos queremos, há de se resolver isso logo.
Sou eu - outro lado, mesma voz.
Eu? Eu quem? Vou desligar, são duas da manhã! - reclama o raivoso do sono.
Eu sei. Estou ligando para te avisar - a voz, a mesma, conhecida, de quem?
Olha aqui, amigo, vai te catar! Duas da manhã! Que trote é esse? - há limites, há que respeitar. Ligar para passar trotes durante o dia vá lá que se perdoa mas, de madrugada?
Não é trote. Liguei para avisar, sou eu - insiste a voz que ainda lhe foge.
Eu quem? Vou desligar, lamento - cansa, discutir às duas da manhã, cansa.
Desculpe. Me apresentei errado, sou eu mas quis dizer que sou você, quer dizer, eu sou você, somos nós - a voz lhe parecia bem conhecida, piada essa, era assim que soava? Não, tinha voz mais bonita que isso, madrugada ingrata.
Que palhaçada é essa? É você, Artur? - o amigo brincalhão - Se é você eu te capo amanhã seu puto!
Não. Sou você, quer dizer, eu, quer dizer, só preciso avisar mais nada e amanhã já é hoje ou você está falando do dia depois porque, duas da manhã, entende? - voz cansada, mesmos tons, forma de puxar as sílabas, Artur estava caprichando.
Tá, Artur, tá. Desembucha logo que eu quero voltar a dormir, que tu quer avisar? - resignação, cansaço, são a mesma coisa? Ou estágios diferentes de uma letargia?
Já lhe disse, me disse, disse, enfim, não sou Artur! Sou nós. - um pouco de irritação, aquele tique vocal que lhe afligia quando irritado.
Tá bom, tá bom! E qual é o aviso? Pode dizer logo pra eu, você, a gente voltar a dormir - brincadeira tem hora, tem hora? Duas da manhã. Hora de brincar? De dormir? De brincar no dormir?
Não beba o leite - a voz dele, do outro, deles.
Oi? - Artur, ah, Artur, se lhe pego depois vai ficar só Tur porque Ar não vai ter mais.
Não / Beba / O / Leite - palavra por palavra.
Hum, ok, não beber o leite, só isso? Mais alguma coisa? - hora de brincar assim? Haja paciência.
Não beba. Eu, você, quer dizer, a gente, não beba! Por favor! - a voz quase lágrima, mesmo tom quando ele ficava choroso.
Tá bom, sem leite, prometo! Mais alguma coisa? - leite, coisa de vacas, sonham as vacas? Dormem? Fazem leite sonhando?
Não, apenas isso - voz cansada, a do outro, a dele, a deles, de todos, duas da manhã.
Ok! Boa noite então - desliga que duas da manhã já passara, aquele pedaço de tempo não seria recuperado, perdeu-se, ficou em algum lugar.
Toca Toca Toca.
Não o telefone, despertador. Acorda, sono ruim, sonhos, leite e vacas, elas dizendo que o leite bom deve ser quente, leite frio causa azia, má secreção, pedem que o leite seja santo, ordenhado com respeito e perguntam se o leite dos homens tem o mesmo gosto, quem sabe? Ordenhar um homem sempre foi tarefa meio inútil.
Água no rosto, bochecho tira o gosto de sonho da boca, cospe as vacas e seu leite na pia, escoam pelo ralo com aquele gosto de manhã regurgitada. Cozinha, café na máquina, pão na chapa, fruta cortada no meio que inteira não tem como entrar, tudo deveria ser ao meio, mais fácil para entrar.
Pega o leite na geladeira, cheira. Está fresco, as vacas trabalharam bem. Como faziam para gozar o leite nas caixas? Mira? Prática? Enche a xícara, o café quase pronto. Bebe o leite, depois beberia o café, café com leite é bom, leite antes do café, pode? A ordem da ordenha altera o desjejum?
Engasga, tosse, arfa, perde fôlego, tosse de novo, um esgar puxa a boca, bate no peito, tosse de novo, preso no peito, ar sem ar, regurgita uma saliva meio pálida, puxa o ar, não vem, tosse de novo, um ruído primal vem do seu âmago, macacos escondidos nos genes acordam quando a vida corre perigo, cai, tenta erguer, segura a cadeira, sente os olhos saltando, o ar que não existe, a tosse que trava a traqueia, a baba que começa a escorrer pelo nariz, os ouvidos fazendo zum zum zum, luzes que espocam nos olhos, quer gritar, não sai, um mugido estranho sai, quase um grito mas não, arfa, a língua fugindo para trás da boca, o ar não é mais ar, a massa que lhe tapa a garganta, leite, saliva, ranho, cuspe, morte lactosa, veio lhe ordenhar a vida, cai no chão, contorce feito uma salamandra epilética, arfa, arfa, arfa, o leite, o leite, duas da manhã, eu, ele, nós nos avisamos.
Um último suspiro, sai quieto da boca, foge e se mistura ao ar que existe sim mas fora dele. A caixa de leite, vazando seu líquido branco pelo chão, a lhe molhar os cabelos.
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