José parou, respirou fundo, deixou a frase que acabara de descer ao papel respirar também. Respiraram quase em uníssono mas passados alguns segundos, José percebeu a frase em outro ritmo, distinto de seu peito arfante, exausto pela tarefa de parir àquela e todas as demais antes dela.
Olhou para a frase ali quieta, respirando feito recém-nascido, quis lhe fazer um afago mas ela fugiu, só não foi mais longe porque havia um ponto que lhe segurou os passos e José, calmo, pegou a frase pelas mãos e disse ser aquele o final, ela deveria descansar pois não haveria mais nada depois, que se entendesse com as anteriores e, se houvesse inveja por ser ela a derradeira, que resolvessem isso lá nos idos do texto pois ele, pai, não poderia fazer distinção entre elas.
Pilar! Gritou.
Pilar! Gritou de novo.
Pilar! Gritou de novo mais alto.
Eu, José! Queres o que? Veio de algum lugar da casa a resposta batendo pelos cômodos.
Terminei, vens aqui dar uma olhada! Disse aos gritos.
Mas homem, tem de ser agora? Respondeu ela.
Tem de ser agora que está fresca a tinta e tem de ser agora porque é igual pão, só serve quente, saído do forno, oras! Retrucou ele.
A ouviu arrastando-se pela casa, os passos de Pilar eram frases escritas nas paredes de cada cômodo junto com os dele, passos pontuados por longas pausas sem espaçamento, vírgulas que saltavam vidas, parágrafos que falavam muito e não diziam nada, diálogos que diziam muito quando não falavam nada, pontos aqui e ali para dar um pequeno fim a momentos quase inexistentes, parênteses para guardar segredos de fora e colchetes para guardar os de dentro, sílabas átonas em palavras tônicas e tônicos para nervos que de aço, tinham apenas o nome, as vontades sim eram de ferro.
Arre, homem! É sempre assim essa pressa quando acabas, há de ter meus olhos para garantir? Os seus não foram bons o suficiente? Disse ela por cima do ombro dele.
Teus olhos são mais frescos e tem mais retina, os meus servem a mim ao contrário, enxergam para dentro e me ajudam e tirar de lá o que preciso colocar no papel. Depois disso, preciso de outros olhos para ter certeza de que o fiz bem! Disse José enquanto via Pilar sentar-se a seu lado.
Sentou e bufou, como se houvesse deixado algo importante por fazer, pela metade.
Dá-me aqui, então! Disse ela estendendo a mão e flexionando os dedos.
José pegou um calhamaço de páginas e as pousou sobre sua mão estendida, como a presentear um santo com um ex-voto.
Está aí, vais ler tudo, certo? Tens de ler tudo ou não vai prestar que me dês sua opinião. Disse sem soltar as páginas na mão de Pilar, olhava direto em seus olhos esperando a promessa.
Mas já li tudo antes, homem! Sei bem onde parei, me basta ler até onde tu acabaste de escrever, terminaste de vez, não? Disse inquisitiva.
Sim, terminei! Mas não me serve meia opinião, se for para isso eu mando a meu editor, tua opinião, afinal, é a que mais prezo. E fez olhar de quem ameaça engatar um choro.
Sabes que sempre leio tudo, me custa dizer não a ti mesmo quando não mereces meu sim mas, olha isso homem - e apontou para o vergalhão de papel no meio do caminho entre as mãos de ambos. Seja sensato, ler tudo isso de novo é penitência e eu só vou me confessar de novo daqui a dois meses que de pecados já estamos à míngua faz é tempo.
Vai, vai! Disse ele liberando as folhas com um muxoxo. Podes ler desde onde paraste, não me fica mal, fico assim de jeito mas não quero que te molestes por algo tão pequeno.
Ah, mas vem tu agora com essas manhas? Disse ela batendo com as folhas na mesa. Faz favor, José, que de filhos já tivemos cá a nossa cota e agora aqui em casa de criança só tem a ti e já basta! Chega de brincar de ser guri e vamos é ser gente, não é?
Ele resmungou algo enquanto ela separava as folhas buscando o ponto onde havia parado.
Aqui, achei! É daqui para frente, te dedicaste neste hein? Olha isso! E apontou para a resma de papel espalhada sobre a mesa.
Ainda falta revisar tudo, sabes que não é assim disse mal-humorado e cruzando os braços.
Olha, se te faz gosto eu leio tudo de novo. Disse ela pousando a mão sobre os braços dele. José a olhou de lado e sorriu maroto, ela aquiesceu e começou a ler enquanto ele ficava a seu lado apenas estudando seu rosto atrás de sinais que entregassem se estava ou não lhe agradando a leitura.
Passaram-se vários minutos, talvez horas. José tinha uma relação estranha com o tempo, ao escrever sentia como se fossem horas mas, ao apurar o tempo, havia passado dias. Ao pedir a Pilar que lesse o que escrevera, lhe parecia que passavam minutos quando na verdade tinham sido horas.
Pilar terminou e pousou a última folha sobre a mesa com a face escrita para baixo, um passarinho pousou no parapeito da janela da sala onde estavam, olhou para dentro e levantou voo. Um caminhão passou na rua roncando alto seu motor. Uma porta bateu no vizinho e alguém reclamou. Um vento leve fez as folhas sobre a mesa levantarem um pouco. Um cachorro latiu ao longe e outros responderam ao chamado. Um chiado estranho surgiu do nada, como se um rádio estivesse fora de sintonia. Um bater de palmas chamando por um nome veio da rua e uma voz feminina cantava alguma canção muito antiga enquanto fazia as tarefas do dia.
E? Perguntou ele com olhar ansioso.
Pilar esfregou as mãos nos joelhos, olhou para ele e depois para a janela onde o pássaro já não mais estava.
Que queres que eu diga? Está bom, tu sabes escrever, me irrita essa mania de não usar quase pontos e vírgulas e os diálogos misturados ao resto, há que ser muito bom leitor para entender onde começa e acaba, mas tu tens a escrita em ti. Sentenciou.
Só isso? Mais nada? Não tens nada para comentar? Sobre a trama, personagens, nada? Vais me dizer isso só? Disse ele apontando para a pilha de papel na mesa.
E tu queres que eu diga o que? Não sou tua editora, homem! Toda vez é essa mesma pantomima, tu escreves, eu leio, tu reclamas que eu não dou opinião, tu escreves de novo, eu leio, digo as mesmas coisas e tu reclama de novo, assim estamos há anos, José. Tu gostas que eu leia parece que para me humilhar ou porque precisa dessa ladainha para depois pôr nos eixos as histórias que tu inventas! Finalizou o discurso batendo as mãos enfaticamente nas coxas.
Já sei o que preciso arrumar, está claro! Disse ele recolhendo os papéis de cima da mesa e arrumando-os.
Se está claro, então vou é passar um café que essa leitura toda me deu foi cansaço! E levantou-se enquanto ele seguia pondo lá os papéis em ordem.
Foi para a cozinha, os passos remoendo cada palavra que sempre trocavam quando tinham aquele tipo de discussão. Passou o café, junto com o pó foi lá um pouco de tristeza e miudezas de uma vida de casal que, se não estava morta, ainda tinha algo sensível a se embrenhar em algum canto daquelas palavras que ele não escrevia e que ela não lia.
Queres, café? Gritou da cozinha.
Não houve resposta, de certo ele estava já a reescrever, pensou. Tomou lá seu café e depois colocou a xícara na pia, não se lavava nada ali na hora pois coisas lavadas limpam as ideias, há que deixar a sujeira assentar e depois ver se não surge dali nada interessante.
Foi-se para o quarto, sentou-se na cama e ficou ali a observar o teto e ver a luz do dia aos poucos fugindo pelas frestas da janela meio aberta. Já sentia o sono, mesmo após o café, lhe desarmando e ganhando espaço em sua corrente sanguínea, os olhos pesavam como se fossem feitos de mármore e a respiração ia arfando mais funda preparando o corpo para entregar-se ao dormir.
Já ia fechando a porta do mundo, em vigília, quando veio o grito.
Pilar!
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