8 de mai. de 2020

Um dia sem héteros

Seis e cinqüenta e oito


Repita!


Seis e cinqüenta e oito!


O governo anuncia que não reduzirá a taxa básica de juros além do que já foi reduzido e, segundo o Ministro da Fazenda, qualquer medida nesse sentido pode comprometer seriamente a meta de crescimento prevista para este ano que ficará em torno do seu marido, de mãos certeiras quase rudes, devorando os pensamentos que se embaralham em sua mente, lhe pegando com força, suas pernas abrindo caminho por entre as suas coxas até que seu membro rijo encoste a fronte em seu sexo já úmido e então, a cotação do Euro sobe para R$ 6,35 e o saldo da balança comercial está totalmente a favor de que ele goze dentro.


Sete horas


Repita!


Sete horas!


De olhos semicerrados, tateia o outro lado da cama buscando o corpo do parceiro, não está. A mão corre pelo lençol liso, não desfeito, incólume, inocente. Entre a previsão do tempo e notícias sobre um congestionamento olímpico na cidade, seus dedos vão despertando e transmitindo ao resto do corpo o acordar lento, indesejado, o sono luta com véus e areia mas vai, aos poucos, perdendo terreno e vendo seus domínios oníricos serem substituídos por pedaços de realidade.


Sete e oito!


Repita!


Sete e oito!


Abriu finalmente os olhos, deu de cara com o travesseiro dele, formato intocado, uma busca ou resgate de algum recado deixado na noite anterior, indicando que não pernoitaria ali mas, se houve, seus neurônios dormentes ainda não se apercebem do fato. 


Barulho de chaves na porta e a associação das chaves a ele, aquela hora? Não era dada aos ciúmes comuns, era já uma mulher adulta e segura de si e ainda que o homem que morava ali e que chamava de amor, amante e até marido às vezes pudesse quiçá dar seus pulos aqui e ali, havia desde o início acordo tácito entre eles de que o longe dos olhos era sim distante léguas do coração e que se essa distância um dia diminuísse que ao menos houvesse entre eles dignidade suficiente para assumir um ante o outro o fato e dar seguimento da melhor forma possível às vidas machucadas mas não incuráveis.


Não era ele, sabia pelo girar das chaves e em seguida pelos barulhos na cozinha, era a empregada. Levantou-se por fim, foi ao banheiro para suas abluções matinais e foi dar com a empregada já no preparo do desjejum. Depois de um bom dia formal entre elas, sentou-se e sacou o controle da TV sintonizando em seguida no telejornal para inteirar-se das tragédias diárias enquanto a diarista espremia laranjas frescas.


‘Hoje está um caos’ comenta a empregada ‘acho que foi greve de ônibus porque pra chegar aqui foi um sufoco, parece que o metrô também, esse povo não quer é trabalhar...’


Anuindo com a cabeça, tentava ouvir o que o telejornal averbava. Realmente havia se instaurado um caos na cidade com vários serviços sem funcionar mas, não se falava de greve ou coisa assim, era como se parte dos trabalhadores tivessem resolvido da noite para o dia simplesmente renegar sua funções e ir aproveitar a vida ou o que restava dela entre os dias mortos do calendário.


Bebericava o suco fresco enquanto a doméstica preparava torradas e fervia o leite. O noticiário buscava analistas e formadores de opinião e até mesmo os apresentadores informavam que estavam ali emergencialmente uma vez que os colegas apresentadores dos vespertinos não haviam aparecido ou sequer informado sobre sua ausência.


Trata-se de um problema social


Não concordo, creio que é uma movimentação sindical orquestrada para desestabilizar o governo.


Mas em que sentido? Não se pode traçar um perfil do profissional que simplesmente não foi trabalhar, e se há mais casos que não sabemos?


Como assim? Está claro que é um plano da oposição para botar pânico na população, estamos em ano de eleição afinal.


Sim mas, o que digo é que não temos até o momento nenhum sindicato ou representante dos mesmos assumindo que se trata de um movimento, eles mesmos estão sem saber a causa disso tudo, me parece mais um caso desses de abdução ou essas coisas de fim dos tempos.


Oras, mas isso é coisa de teoria da conspiração, estou certo de que se pararmos e analisarmos na luz fria dos fatos vamos encontrar um padrão e uma razão para isso.


Mas e os relatos que começam a chegar de pessoas que foram comprar pão e não voltaram, e de pessoas que foram dormir juntas e acordaram sozinhas? Não estaríamos frente a algum tipo de fenômeno inédito?


Veja, enveredar por esse caminho é algo que irá apenas gerar mais pânico e dúvida na população. O governador acaba de agendar uma coletiva para logo mais para divulgar um plano de ação, estou certo de que se trata de algum tipo de embuste político!


TRIM TRIM TRIM - TRIM TRIM TRIM - TRIM TRIM TRIM


Atende o celular a doméstica e ela, educadamente, abaixa o volume da TV mesmo porque era um debate que começava a lhe tirar o apetite da refeição que mais lhe agradava no dia. Levantou-se e foi a sala pegar o jornal colocando antes a TV no mudo. Quando voltou, a mulher estava pálida, escorando-se na pia a cozinha, aproximou-se dela e perguntou o que se passava, estava tudo bem?


‘Meu marido’ respondeu num fio de voz ‘saiu para o trabalho antes de mim mas me ligaram de lá perguntando sobre ele porque lá não chegou...’ assustou-se e se o seu marido não chegasse também? Esforçou-se por lembrar a noite anterior, estava com amigas quando ele ligou entre a quarta ou quinta garrafa de vinho dizendo que chegaria bem mais tarde ou talvez pela manhã, assuntos de trabalho, ela já estava acostumada. Liberou a diarista para que fosse atrás do paradeiro do marido, desejou-lhe sorte e que se precisasse de algo não hesitasse em lhe chamar, alívio burguês.


Voltou-se para a TV e lhe restituiu a voz, o debate prosseguia, em alguns canais com elucubrações mirabolantes, outros histriônicos e outros ainda panfletários e nada de seu marido dar a porta de casa. Olhou para o relógio, marcava quase oito, sacou do celular e ligou para o numero dele.


Após o sinal, deixe seu recado.


Ele costumava de fato dormir no escritório vez ou outra quando havia trabalhos urgentes mas, preocupava-se agora com essa onda de pessoas desaparecidas. Sintonizou um canal que lhe pareceu mais com os pés no chão.


Não se pode, neste momento, traçar um perfil mas o fato é que, de acordo com as informações que nos chegam, os desaparecidos não seguem um perfil específico, são homens mulheres, crianças, de todas as idades, raças, classes sociais e perfis profissionais, desde padeiros a pilotos de avião e mesmo na sede do governo, votações importantes tiveram de ser adiadas pois alguns políticos também sumiram.


E se fosse aquela coisa dos maias? E se fosse aquela coisa da bíblia? E se fosse algo como uma invasão? E se fosse algo de sua cabeça apenas e ela ainda estivesse na cama sonhando fazendo amor com o mestre dos sonhos e ele fosse seu marido e ela mortal estivesse presa numa piada dele?


Foi trocando de canal, um após outro apenas tergiversando sobre o ’arrebatamento’, alguns de joelhos a clamar aos céus a piedade que não mereciam, outros conclamando os demais a prepararem-se para o julgamento sem juízes, alguns ainda a acusar o governo e outros fazendo pouco, como se fosse algo não digno de nota e que deveríamos seguir adiante, se esses sumidos não queriam mais fazer parte do cotidiano da humanidade, que assim fosse.


E num desses canais, ela pareceu achar algum senso entre análises disparatadas e teorias absurdas, um representante de um movimento que não sabia identificar bradava aos ventos que não era chegada a Era de Aquário mas a Era do Arco-Íris.


O senhor então afirma que todos os desaparecidos são então heterossexuais e que apenas os gays, os homossexuais não sumiram?


Isso mesmo! É o sonho gay tornando-se realidade! É a natureza, a evolução das espécies fazendo seu trabalho! Todos sabem que nós gays somos o próximo passo evolutivo de nossa raça, que os dias heterossexuais estavam contados. Era meramente uma questão de tempo até que a natureza se encarregasse de dar o passo evolutivo definitivo! A procriação é algo supervalorizado e pode ser feito em laboratório, o sexo e sociedade heteronormativos não são mais, viva a sociedade nova e do amor verdadeiro!


Mas como o senhor pode ter certeza de que apenas os heterossexuais sumiram? De que apenas os gays foram poupados desse fenômeno?


Estou aqui falando com você, não? E sou gay,não sumi e meus amigos e amigas aqui atrás de mim também! Quer prova mais clara? E tenho fontes seguras que me garantem que a única coisa em comum entre todos que sumiram é o fato de serem notórios heterossexuais!


Mas a que o senhor atribui esse desaparecimento repentino dessas pessoas? Seria um ato de Deus?


Deus? Quem é ele? Onde ele estava quando os gays eram massacrados no holocausto ou nas ruas dessa cidade suja e preconceituosa? Não, minha querida, não foi ele que mexeu seu dedo e finalmente pôs a nós, gays, no lugar de direito na cadeia evolutiva, ele joga seus dados em outros mundos, aqui, foi uma simples e correta seleção natural o que, por sinal, me diz que você é gay afinal está aqui me entrevistando, não é?


Ah, eh, voltamos ao estúdio com você...


E havia então apenas silêncio, em todos os canais, nas ruas, nos ônibus, nos trens, no metrô, nos aeroportos, no senado, nas casas, nos países, nos carros, em toda a parte. Um silêncio tão alto que se poderia ouvir do espaço e as igrejas começaram a ruir e os santos racharam seus pés de barro e os pastores largaram tudo para poder viver livremente e os que pregavam contra os gays sumiram não como os héteros mas enfiaram-se em algum buraco fétido e escuro para penitenciar-se por sua vergonha e cruzada contra os seus.


E as pessoas descansaram seus dedos em riste e passaram a viver mais suas vidas, e os skinheads compraram vestidos e perucas e maquiagem, skindrags, e os trabalhadores podiam dizer eu te amo entre máquinas e papéis a serem assinados e ela então descobriu que não havia sumido e ouviu as chaves na porta e depois o viu entrar, olharam-se pasmos por instantes e então lágrimas de raiva vieram aos olhos transmutadas depois em lágrimas de compreensão, aceitação, alegria pela fantasia imposta estar rasgada no chão, em farrapos.


E se abraçaram, arrumaram suas malas, se beijaram no rosto e foram cada um seguir com suas vidas com seus respectivos amores.


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