20 de jan. de 2021

eu não saberia dizer

 




Eu não saberia dizer resmungou meio lado como a cuspir as palavras para que elas não me caíssem na cara, as vi descendo pela boca e correndo depois pelo asfalto apressadas, pegaram um táxi que quase não parou e se foram não sei para onde.

Mas você diria, assim, se pudesse? Perguntei meio sem jeito e sem medo ou melhor, com o segundo mas disfarcei bem, era uma máscara que estava habituado a usar, segunda pele que já mais tirava fosse no banho ou para dormir, facilitava ir tocando os dias.

Se pudesse, quer dizer que não posso, não quero ou não consigo? Me deu assim essas três alternativas que para mim davam no mesmo, uma questão semântica que ali era irrelevante e fiz cara de quem assim pensava mas como era pouco, tive de juntar na boca as palavras separando a saliva que já me faltava com cuidado, era bom evitar que elas fossem vingativas já que não queriam sair de onde estavam.

E há diferença? Me traíram, acho que escorregaram na saliva e trocaram de lugar, havia pensado outras mas foi isso que saiu.

Muita e plantou ali um silêncio pra colher um pouco mais ali na frente, eu vi as sementes entrarem no solo de ninguém que existia entre nós, achei que ali já não vingava nada mas elas caíram tão bem e pude ouvi-las brotando.

Passou um ônibus já meio vazio, cansado, indo se retirar e talvez conversar com outros ônibus sobre o dia, comer e vomitar gente o dia todo não é para qualquer um. Passou um táxi, por um momento achei que eram aquelas palavras que haviam fugido mas não, estava vazio.

Passou uma avião bem lá no alto, estava meio rouco eu acho, gripe talvez, voar tão alto tem um preço imagino. Passou um casal jovem, tão juntos que pensei serem uma pessoa só, deu saudade mas passou também só que não junta como eles, foi sozinha mesmo, já andava assim há tempos.

Ouvi o silêncio brotar do chão.

Poder eu posso, conseguir qualquer um consegue já querer, isso eu não sei se quero e me fitou com ar de graça, não de graça rida mas de graça daquelas emprestada dos santos, aura, halo, santificado seja o vosso nome assim me ferra como no fel.

E pode não saber se quer? Deveria ter usado ‘sequer’, teria caído melhor.

E você sabe se quer? Ele também deveria ter usado.

Se quero deveria ter saído como pergunta num tom de reprimenda ou contestação firme mas, saiu sem entonação ou pontuação, duas palavras soltas vagando naquele espaço onde o silencia rendia frutos já podres.

Não vejo sentido, digo, nisso tudo, acho que já não temos mais o que ou como e baixou a cabeça e baixei a cabeça e baixamos as cabeças e fitamos o chão, os pés ficarem sem jeito.

Gostaria que visse, eu acho, talvez ainda haja algo mas disse sem convicção, me faltava o sangue necessário para preencher as palavras.

Aquele ali é o meu e apontou com o queixo para o ônibus que se aproximava.

Aquele ali é o meu e apontei com o queixo para coração que se distanciava.

A gente se cruza, ou não, melhor, cada um assim, você sabe, entende, eu acho e já em pé me estendeu a mão enquanto com a outra fazia sinal para que ônibus parasse, pegava um e largava outro, não sei bem qual era qual.

Sim e dei a mão que não acenava para partir. Ele subiu no ônibus sem olhar para trás e eu chamei o táxi que vinha logo atrás, não estava livre mas podia rachar a corrida, as palavras que estavam nele, aquelas, não iam sem importar nem um pouco.

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