4 de dez. de 2020

vazio da frente

 


O apartamento da frente fora desocupado há poucos dias, podia ver as paredes de um branco cansado, nuas, os buracos de pregos feito estigmas relembrando quadros mortos ali antes pendurados, a janela agora sem cortinas, selada, revelando o que antes era apenas vislumbrado.

A porta do quarto escancarada mostrando um espelho deixado para trás, provável que não pertencesse aos últimos moradores e nem mesmo aos que antes deles vieram, espelho é coisa que se leva consigo, carrega parte da alma e da soberba humana, coisas que costumeiramente não se abandonam em qualquer lugar. De certo refletia outros tempos e pessoas que impediam os vindos depois de criar algum vínculo com a imagem que tentavam refletir e assim, o deixavam ali como guardião emérito.

A janela do quarto, vista parcialmente, despida de qualquer roupa deixava ver o outro lado do prédio, como se aquele metro quadrado fosse algum tipo de universo paralelo onde se podia existir em algum tipo de vazio. Esta também residia fechada, as do banheiro, pequenas, também e se as da área diminuta de serviço assim fossem, teriam ali dentro ficado trancados um sem fim de frases, risos, choros, suspiros, amores, dissabores, alegrias e tristezas vagando pelos cômodos a esmo, esbarrando uns nos outros esperando obter algum sentido ou resposta que talvez jamais viesse.

Quem sabe futuros moradores poderiam sentir no ar esses resto mortais de conversas e sentimentos passados, atribuir ao mofo e assentar residência ali sem saber de tudo que ali já fora proferido e feito. As paredes poderiam ganhar um branco mais alvo, os buracos de pregos novos moradores e aquele bando de frases soltas enclausuradas novas bocas por onde pudessem entrar e aguardar bem quietinhos o momento de voltarem ao mundo fosse para agradar ou causar estrago.

Pensou mesmo que houvesse algum tipo de má-fé embutida na moradia já que lhe parecia que os que ali tentavam fixar residência tinham uma permanência extremamente efêmera mas, se há esse tipo de coisa, cria mais que fosse fruto da ação humana pura e estúpida que devido a poderes sobrenaturais, os espíritos deveriam ter coisas mais importantes e agradáveis a fazer que perturbar os vivos já que deles prescindiam, haviam livrado-se deste incômodo, podiam vagar pelo universo, não careciam amaldiçoar os vivos que o faziam muito bem por si mesmos.

Suspirou, profundamente. Pensou se um dia ali onde residia seria uma réplica do apartamento vazio em frente, sabia que esse dia chegaria e o aceitaria calma e docemente ainda que apegado a um certo sentimento de posse mas, sabia que o corpo que usava, assim como o imóvel, eram apenas arrendamentos com ilusão de posse, chegada a hora, passariam a outros que necessitavam mais deles, era assim a coisa toda.

Desejou intimamente sorte a quem quer que fosse o novo morador do apartamento vazio, fosse o dele ou aquele à sua frente e foi lá cuidar de sua vida emprestada.

Era o que podia fazer.

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