SEGUNDA-FEIRA
É saudade então, algo que já vi e não vejo mais ou um desejo inerte que desperta ao toque ou sussurro de alguma palavra mágica, ánima que faltou quando da concepção, talvez seja isso a busca pelo amor. Quando fecundados, algo se perde na fusão dos gametas e, saídos do ventre, passamos o resto de nossos dias a buscar esse complemento que nos falta.
Acho que você buscava o mesmo ou os olhares não haveriam de cair em traição e posto a nós em situação de desconforto agradável. Depois de cruzados, o caminho já ia sem volta e do olhar passamos a palavra e pequenos gestos que denotavam um sentimento mútuo embrionário.
A criação demanda tempo mas desse bem, os que gostam parecem dispor com bem lhes parece ainda que, incoscientemente, saibam seguir seu ritmo e direção únicos.
TERÇA-FEIRA
O que demanda o sentimento, o desejo prescinde. A carne deve ser provada até os ossos, como se apenas neles residisse a essência, o gosto. O afã do início rouba de nós o prazer da degustação, quando finalmente resolvemos deixar o paladar banquetear-se, o sumo do gosto já foi sorvido e ainda que a carne seja saborosa, seu suco primordial já se foi e passamos apenas a mastigar o mesmo naco até dele sorver a última gota de suco.
Todavia, é um processo prazeroso esse e nos entregamos a ele com afinco afinal nossas carnes eram tenras e novas, havia muito que saborear e pouco que refugar. Durante as refeições eu, você ou nós deixamos escapar algo que não estava no cardápio ou deveria ser a sobremesa o que adoçou ainda mais as bocas e nos fez pensar nos dias que viriam trazendo apenas mais sabores.
QUARTA-FEIRA
A metade é um lugar inóspito, inspira cuidado pois é invariavelmente o ponto de onde se decide ir adiante ou retornar de forma segura. Tal decisão deveria ser tomada de forma cuidadosa e pensada mas, costumamos fazê-lo de julgamento impreciso, infestado de emoções inebriantes e promessas de que tudo sempre será melhor no dia seguinte, na próxima esquina, ao virar a página.
Ainda que os presságios sejam animadores, deveria haver algum tipo de regra que forçasse a todos, chegando em tal estágio, pesar bem o que fazer em seguida e tomar uma decisão proveitosa a ambos mesmo às custas da desgraça de uma das partes.
Infelizmente, isso não ocorre, sentir é tomar decisões assim, se fosse o oposto o mundo viveria em paz e os casais estariam juntos para sempre ou cada um vivendo tranquilamente uma existência única, pacífica e plena de si mesmo.
Tomamos as mãos um do outro e mandando às favas qualquer sinal ou sugestão de bom senso, seguimos em frente deixando para trás qualquer possibilidade de fazer a volta. Isso é amor, se fosse o contrário não o seria ou estamos todos cegos e carentes ante a hipótese de seguir sozinhos um caminho tão longo.
QUINTA-FEIRA
Depois de um tempo, até o inominável ganha nome, é do humano nomear as coisas e isso feito, passa-se a criar um laço afetivo com o nomeado e a partir desse momento, ele começa a fenecer.
Talvez deixar as coisas sem nome fosse uma alternativa mais honesta e que nos permitiria uma vida menos atribulada mas, não somos assim e seguimos dando nomes a tudo que vemos pela frente. Demos os nomes ao que sentíamos e isso nos encheu de orgulho, talvez isso seja a causa da morte de muitos ou seja apenas o cansaço.
Registramos em cartório, reconhecemos firma e voltamos para casa satisfeitos.
SEXTA-FEIRA
A antecipação é uma antessala cheia de gente onde ninguém é chamado pela ordem de chegada, senha ou nome. Ficamos todos ali esperando, os pés tremendo nervosamente, as pernas abrindo e fechando e os dedos tamborilando sobre as coxas.
A questão é que antecipamos algo que já sabemos, conhecemos e sabemos certo mas fingimos não saber, feito uma surpresa ao contrário. A felicidade tem um valor, é certo, problema é estipular o preço, essa conta fecha pouquíssimas vezes pois a matemática que usamos nunca é mesma.
Se eu quero multiplicar, você divide, se quero somar, você quer subtrair, se quero chegar a raiz quadrada, você faz cara de pi e assim vamos.
SÁBADO
No sétimo dia descansamos, exaustos um do outro.
DOMINGO
Fui a missa bem cedo, você estava lá também mas sentado do lado oposto ao meu.
A homilia seguia seu curso, cada um ali fermentando seus pecados e arrependimentos, olhando para as imagens de ar sofredor buscando algum alento, as palavras proferidas eram apenas mais uma chibatada em lombos já em carne viva, deveriam servir redenção mas só havia mesmo penitência.
Estava ali para prestar meus tributos ao falecido, não esperava que voltasse dos mortos feito o Nazareno mas, achei de bom tom ao menos encomendar uma missa em seu nome já que me fora tão importante durante tanto tempo.
De soslaio olhava para você, quem sabe não viera fazer o mesmo, vi o tempo que marcar bem cada minuto nosso em suas faces e não apenas nas minhas, suspirei fundo olhando para as pinturas nas paredes e cruzei olhos com aquele santo das causas perdidas ou impossíveis, não lhe pedi nada porque já havia passado e muito o tempo de lhe fazer pedidos, era momento de aceitar e purgar e deixar ao altíssimo qualquer possibilidade de julgamento.
No momento em que os falecidos eram citados em solene homenagem, abaixei a cabeça, arrisquei um olhar em sua direção e acho que vi algo úmido em seu rosto mas não sei ao certo, me contive em relembrar os mortos e desejar que estivessem em lugar melhor, cabe aos vivos apenas isso e tocar a vida até o momento de ir com eles ter e saber se lhes fizemos justiça ou vergonha.
Acabada a missa, saí de fininho, queria deixar aquele lugar o quanto antes e antes de você mas, acho que as entidades superiores fazem graça conosco e a aglomeração à saída me deteve o suficiente para que logo no umbral nos deparássemos um ante o outro.
Acho que vi as imagens virarem seus rostos nesse momento em tensão, não sei, Trocamos olhares velhos, cansados e sentidos, velávamos o mesmo corpo e agora era tempo de deixá-lo cumprir seu ritual de passagem.
Esprememos cada um nossos lábios num esgar de sorriso de compreensão mútua ou resignação e saímos dali para a vida que seguia seu curso normalmente do lado de fora.
Lindo! ❤️
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