30 de jun. de 2020

filosofia barata

Pequena Análise Filosófica de SEGURE O TCHAN


Pau que nasce torto
Nunca se endireita

Aqui vemos claramente uma alusão, utilizando de um ditado popular, sobre como as classes e seus membros são subjugadas pelo status quo vigente. A ideia central versa sobre a inviabilidade de qualquer mudança social ou comportamental já que somos essencialmente crias de nosso ambiente social sendo incapazes de fugir de nosso destino posto que tais forças são inexoráveis, incontornáveis e impossíveis de serem quebradas.

Menina que requebra
A mãe pega na cabeça

O mote neste verso é sobre como a infância pode ser corrompida por vícios e tentações numa clara alusão à falibilidade dos pais em prover um ambiente estável de criação. A cultura na qual a criança está inserida acaba assumindo o papel paterno e materno enquanto os pais, impotentes, apenas conseguem expressar surpresa através de gestos de desespero e quase resignação ante sua incapacidade de gerir a criação da prole.

Domingo ela não vai
Vai, vai
Domingo ela não vai não
Vai, vai, vai

Temos aqui claramente uma alegoria religiosa. Enquanto a canção clama para a festa, para a carne e tentações mundanas, há umas constatação de que o objeto alvo da mesma se recusa a participar pois, no dia sugerido, Domingo, claramente um dia dedicado ao resguardo e divino no catolicismo, ela não poderá ir pois precisa cumprir com seus deveres para com o divino.

Segure o tchan
Amarre o tchan
Segure o tchan tchan tchan
Tchan tchan

Este verso dialoga claramente com o anterior e com os antes dele. Enquanto se prega uma entrega a festa, tentações da carne e do espírito, luta de classes e revolução sexual até, no verso anterior temos uma ode à moderação já que mesmo ante os convites tentadores, ela não vai pois é Domingo. Ainda assim, o desejo latente é forte e então, é preciso 'segurar o tchan' ou tudo há de descambar e a ordem, mantida sob uma estrutura tênue, será desfeita.

Tudo que é perfeito
A gente pega pelo braço
Joga ela no meio
Mete em cima
Mete em baixo

Já neste verso podemos ver a revolução latente pois mesmo ante as recusas e espanto paternos numa luta para evitar que a mudança de costumes e até mesmo social se dê, o cantor incita ao prazer como via de atingir os objetivos revolucionários e de desmonte da estrutura social e moral vigentes e normativas.

Depois de nove meses
Você vê o resultado
Depois de nove meses
Você vê o resultado

O cantor encerra sua ode deixando claro que a revolução do prazer, do sexo e a corrupção do status quo são inevitáveis e que este, por si, apenas gesta o que virá sendo o período de uma gestação humana idealizado como o necessário para parir uma nova geração que será livre dos conceitos e preceitos da sociedade vigente.

29 de jun. de 2020

o orgulho nosso de cada dia




Ontem, celebramos o dia do Orgulho LGBTQIA+ e eu nem postei nada no face ou em qualquer mídia social porque além de ser esse dia especial, era também aniversário de 'casamento' nosso.

Usei aspas porque, oficialmente, casamos há pouco mais de um ano e meio mas nos conhecemos há dezoito anos o que pode parecer muito ou pouco dependendo do seu referencial ou ideal de relacionamento.

Se devemos ter Orgulho e celebrar, acredito que devamos fazer isso não apenas na data que é muito importante para todos nós cuja identidade ou sexualidade é considerada errada pela sociedade normativa mas, durante todos os dias do ano como se fossem dia 28/06.

Não quero me sentir orgulhoso só nesse dia, nessa semana ou nesse mês, quero me sentir especialmente orgulhoso nesse período mas não quero que ele seja sazonal, quero que dure, que não precise ser relembrado, reforçado, inserido para não ser esquecido ou ter de ser valorizado.

Eu tenho orgulho de ser quem sou, de amar como eu amo e de gozar como eu gozo, com homens e todos nós devemos sentir orgulho de amar como e quem amamos, da forma que amamos, do jeito que desejamos amar e quando desejamos amar, sem qualquer restrição, regra, preconceito ou moral forjada por uma sociedade reacionária e fascista.

Não preciso de ninguém para saber que há dezoito anos eu vivo com meu homem, a pessoa que me faz ser quem sou, sem ele um rascunho de gente, um esboço de vida, um tempo sem noção, um relógio sem ponteiros e um pasto verdejante sem ninguém para apreciar.

Ame, quem quer que seja. Mas ame alguém que ame também, esqueça como ou a forma, vocês irão encontrar por si mesmos, apenas ame, tenha alguém, ou mais de um alguém porque amar não é coisa que se deva restringir ou usar de forma mesquinha, o mundo precisa de mais amor e não menos.

E seja o amor para quem ama e deixe que a pessoa seja o amor para você. Amar não é só uma palavra, letras ou um sentimento romântico, ele vai além disso mas sem deixar essas coisas de lado.

Amar são gestos, atitudes mais que palavras, é aquele olhar que consegue resumir sentenças inteiras, é o cobertor que cobre os dois, o carinho que traz conforto, o sorriso que diz tudo, o toque que acalma, o beijo que esquenta, o saber que satisfaz, o completo que não existe sem o outro, o respeito mútuo, o diálogo, a falta dele quando preciso porque o silêncio faz bem, a troca, o preocupar, o pensar no melhor para ambos, o tratar de si como se fosse o outro, o pensar como se fosse um, é saber um no outro um local seguro onde nada pode te machucar, é a mão que está lá quando nenhuma outra parece estar, é a famílias que você escolheu, é o sexo que você esqueceu, o filho que nunca veio e a herança que é só de vocês, a vida que não conhecemos e a certeza de que a morte não é nada além de uma porta porque o amor não conhece as (l)imitações humanas.

Amar é ter Orgulho sem precisar pensar nele.

26 de jun. de 2020

hoje não tem conto

Tem conto?
Tem, mas acabou.

Ah...

Hoje.

Como?

Conto.

Mas tem?

Sim, mas acabou.

Entendi.

Hoje.

Hoje?

Sim.

O que?

O conto.

Então tem?

Não.

Ok.

Hoje.

Hoje o que?

O conto.

O que?

Acabou.

Eu sei.

Hoje.

O que?

O conto.

Mas não acabou?

Sim.

Hoje.

Hoje o que?

Acabou.

Hoje?

Não, o conto.

O conto o que?

Acabou.

Isso eu sei.

Hoje.

Hoje o que?

Acabou.

Hoje?

Hoje não, só acaba amanhã.

O conto?

Não, hoje.

E conto?

Acabou.

Hoje?

Sim.

Obrigado.

25 de jun. de 2020

Última chamada

Haviam chegadas, partidas, algumas chegavam partidas outras partiam ao chegar e entre acenos, mares nos olhos, promessas sem assento marcado, sentimentos atrasados e vidas canceladas ou em lista, ele chegou.


Sem número de vôo, portão de embarque aberto, passaporte vitalício ao esquecimento com todas as páginas carimbadas pela aduana da vida. Sem beira, eira, euro, dólar ou libra, lenço amarrando os documentos que já haviam rodado o mundo em máquinas de lavar, uma sacola plástica contendo alguns recortes de jornal, um agasalho carregado de conselhos maternos nunca seguidos, um tubo de dentifrício de onde apenas um leve hálito de menta (rançoso) resistia, uma escova banguela de dentes, um exemplar de um autor russo que não terminara sua obra, de páginas gastas nas pontas que seus dedos acariciavam compulsivamente, incompleto como sua vida, repleto como as certezas que levava na alma, cartões de embarque que evidenciavem onde estiveram ainda que não provassem que realmente fora. Uns trocados globalizados num bolso, noutro um furo que lhe roubava migalhas, tempo e o vento.


Chegou para fazer conexão, consigo, com tudo mas perdeu a hora, sempre estava atrasado tentando pegar o próximo voo com destino à vida, contentava-se em levá-la nos saguões de embarque certo de que mais dia, menos dia, ambos haveriam de acertar as conexões e rumar ao mesmo destino.


Mas desta feita, perdido novamente, cansou-se. Da sacola de ar cansado, puxou um amarfanhado dos cartões de embarque já gastos, comidos pelo tempo, os números de assentos já apagados, nunca lhe houvera um marcado, a vida lhe passava em assento livre, deixou os papéis caírem aos poucos no chão e pousou a sacola amiga de guerra num dos assentos disponíveis no saguão.


Chamaram um voo, não era o seu, fosse e não faria diferença, ninguém embarcaria consigo mesmo. Fez fila no portão de embarque com os demais, foi indo e aproveitou-se de uma distração dos atendentes para burlar a passagem. Notaram-lhe o disparate e saíram em sua busca. Correu, ganhou o finger e embarafustou pela portinhola que dava acesso à área externa, o povo atrás dele e o povo de trás digitalizando tudo, afoito, aflito e animado.


Ganhou a pista, entre os aviões, sirenes e pessoas em seus calcanhares. Ultrapassou um jato grande que estancou e soltou um impropério pelas turbinas, abriu os braços em asas e saiu em disparada.


Decolou bonito, vento a favor, leve e tranquilo, digno de pilotos experientes, com milhares de horas de vida sem voo.


Nunca mais foi visto.


Nunca mais voltou.


24 de jun. de 2020

eu sinto que seu amor já foi algo melhor

pregava um prego, na parede que é onde se costuma pregar um prego mas, parecia que não era lá mas em mim, cada martelada não acertava a cabeça do prego mas a minha, na testa, e fazia o caminho até o coração, latejando pelas têmporas, olhos, nariz, boca, queixo, pescoço, garganta e chegando lá, onde tudo martela a cento e vinte marteladas por minuto.

eu dava marteladas lentas, precisas, mirava o prego mas tinha em mente outra coisa, foi somente quando, distraído, acertei o dedo e não o prego que notei não estar pensando em acertar o prego mas você. aquele prego era você, não era um prego, feito de metal, fino e de cabeça chata, feito para ser martelado, pregado, usado para fixar algo em paredes ou em qualquer outra superfície, os mesmos pregos que prenderam o messias na cruz, os mesmos pregos que pregaram eu e você.

com pequenas diferenças.

você não era feito de metal, era fino ou tinha a cabeça chata ainda que fosse obtusa e precisasse de umas boas marteladas para funcionar e dar conta das coisas. já eu, não era nenhum messias, não tinha cruz para ser pregado só se considerar a vida que levávamos como algum tipo de cruz, seria? acho que sim mas, se eu não era messias e você não era prego então não havia cruz e, se não havia cruz, quem nos martelava era a vida mas a gente achava que éramos nós mesmos, pregando, tentando pregar o amor em nossas paredes, fracas, rachadas, cheias de falhas, trincas e lascas.

levei o dedo martelado, latejando, latejar no coração, mais batimentos, à boca e o sorvi com gosto, feito criança, infante, eu era um, desfeito, sem doce, sem nada, aquele dedo na boca latejando era um pirulito de alguma espécie que eu chupava com ganas de que fosse você, aquele prego que eu deveria ter pregado mas nunca acertei fazer o furo na parede da gente.

chupei o dedo com mais afinco, fechei os olhos, ele era apenas um dedo, chupei então o martelo, ali em minhas mãos, assassino de pregos, de vidas, que valor pode ter uma coisa que passa a vida dando na cabeça dos outros? então, qual o valor do amor? ele fica dando na cabeça dos outros, martela também, pregos, fundo na gente até sangrar e quase sempre acerta e tirar os pregos que ele coloca é difícil, quase impossível e a remoção geralmente traz mais dor que alívio mas a gente tira assim mesmo.

o martelo não resolveu nada, de chupar eu digo, de pregar eu já tinha desistido mesmo. olhei para o prego na parede, no meio do caminho entre a parede e minha vida, mais uma martelada e estaria pregado, para sempre, não, para sempre não que não há prego que fique pregado para sempre, a gente sempre tira, arranca fora, o que se pendura pode até ser velho, ou novo, mas os pregos tem de ser sempre novos, como se ficassem cegos depois da primeira pregada, descarte, desuso, lixo, igual a gente pregado de amor, ou não.

peguei o prego e o puxei, não usei o martelo, queria sentir meus dedos em volta daquele pedaço fino e pequeno de metal frio. ele resistiu, acho que já estava meio que pregado já mas, não me dei por vencido, já arrancara muitos pregos muito mais difíceis que aquele, só uma questão de jeito e, finalmente, ele cedeu e saiu deixando um pequeno buraco na parede.

olhei para o buraco, pequeno, quase imperceptível, de longe nem se poderia dizer que a parede tinha um buraco onde antes havia um prego e até alguma coisa pendurada nela mas, ele estava lá, olhando para mim com seu olho único e eu para ele com meus dois olhos. fiquei pensando em quantos buracos não abrimos, quantos não fechamos, quantos deixamos com pregos sem nada pendurado, pensei nisso e pus o prego na boca, chupei devagar e com calma, comecei pela ponta e fui chupando devagar até chegar na cabeça chata do prego, deixei ela para fora enquanto chupava o resto do prego, o gosto de metal tomando a boca, a língua, o céu da boca e descendo pela garganta para martelar até o coração, aquele prego sendo martelado até o fim dos dias.

chupei a cabela do prego para dentro, deixei o prego dançar um pouco na boca, acho que machuquei alguma parte dela, deixei juntar bastante saliva, para enferrujar, derreter, decompor o prego e o engoli, senti passar pela garganta e tomar o caminho do coração, não do estômago e fiquei feliz, peguei o martelo e comecei a martelar meu peito.

de forma lenta, pausada, concisa, certeira, gentil até mas determinado a sentir que o amor ficaria dessa vez pregado para sempre ali.

23 de jun. de 2020

o fogo que nada arde

colocou o pedaço de carne na boca e era doce feito o doce de batata doce que sempre é o doce mais doce quando não há doce feito de açúcar refinado industrializado embalado distribuído e vendido pelo mercado mais próximo onde você faz compra para depois passar fome com gosto de câncer e corante artificial sabor frutas tropicais da estação de metrô que é cheia de manhã seis sete oito e nove horas com gente que se acha cheia de nove horas depois de pegar uma duas três quatro conduções baldeações e que depois vai fazer o mesmo caminho de volta sem qualquer uma das noves horas perdidas nas horas do dia trabalho labuta laboral e pegar a mesma estação de metrô cheia às cinco seis sete oito e nove horas para começar tudo de novo no dia seguinte de novo mais uma vez que é assim mesmo que a banda toca por aqui.

mas o problema era a carne que estava doce e não salgada ou sem sal porque carne pode até estar ou ser salgada demais ou totalmente sem sal mas doce não carne doce não pode porque doce só com açúcar aquele branco ou se preferir aquele marrom mascavo mascado mesclado mas na carne não pode porque na carne só vai sal e pensou em como a carne poderia estar doce e lembrou se na noite anterior durante o preparo não havia trocado o sal pelo açúcar já que ambos são brancos e finos e pode confundir quem não sabe a diferença de um e de outro e quase ninguém prova antes ou tem gente que prova e até guarda em potes separados mas na casa dele não tinha disso e o sal e o açúcar trocavam de potes como ele trocada de trens para ir trabalhar na estação de metrô sempre cheia às seis sete oito nove horas de qualquer dia e noite.

mastigava a carne doce que deveria ser salgada tentando lembrar se havia trocado os potes e o metrô e a estação sempre cheia às seis sete oito nove horas mas não lembrou de nada só de ter tirado a carne da geladeira que já não gelava direito e por isso muita comida acabava estragando principalmente carne porque carne estraga rápido igual a dele que estragava todos os dias na estação de metrô sempre cheia às seis sete oito nove horas e lembrou do cheiro ruim da carne e que deveria estar estragada mas a carne era cara e ele comia carne e não cheiro então era só jogar o sal em cima e pronto mas aí deveria ter jogado açúcar e não sal mas começava a achar que tinha acabado o sal em casa e que tinha jogado o açúcar na carne pensando ser sal porque os potes estavam trocados igual ele trocando de trem no metrô de estação sempre cheia às seis sete oito nove horas.

foi então que mordeu a língua sem querer ou talvez querendo porque quem sabe se mordemos a língua querendo ou não se ela fica lá sambando dentro da boca entre os dentes então nada mais natural que levar uma mordida e sangrar porque a língua é feita de carne igual a carne que ele mastigava e que tinha gosto doce e não salgado porque toda carne deveria ser salgado mas não a carne da língua que deveria ser doce porque é carne de gente e tem sangue e sangue tem de ser doce mas não o dele porque depois de morder a língua que ficava sambando na boca com dentes e cheia de carne feito a estação de metrô sempre cheia às seis sete oito nove horas o sangue escorreu e o sangue era muito salgado e ele se assustou porque sangue tem de ser doce e não salgado mas o sangue dele era salgado e foi se misturando com o naco de carne doce que ele ainda mastigava e agora talvez com um pedaço da língua na boca cheia de duas carnes e sangue salgando a carne doce na boca cheia feito a estação de metrô sempre cheia às seis sete oito nove horas.

engoliu aquela mistura devagar como se fosse uma carne nobre que não é salgada nem doce mas apenas humana e muito cheia de quase nada feito a estação de metrô sempre cheia às seis sete oito nove horas.

22 de jun. de 2020

memento mori

Este final de semana, assisti a um documentário que faz um trabalho de resgate da história de Alice Guy Blaché, comumente considerada como a primeira mulher cineasta além de ter sido roteirista, atriz e responsável por inúmeras inovações muito a frente de seu tempo.

O documentário deixou um sabor agridoce em mim pois eu sinceramente nunca tinha ouvido falar dessa mulher incrível. Fiquei feliz por tomar conhecimento de sua história e trajetória mas, com raiva de mim mesmo por nunca ter sabido de sua existência e com um misto de tristeza e revolta pelo apagamento histórico de sua figura conduzido pela sociedade machista, misógina e patriarcal.

Quantas outras 'Alice Guy' não existiram e não existem? Mesmo com o advento da internet que deveria, em tese, facilitar o acesso e conhecimento de artistas como ela, seguimos consumindo e reconhecendo apenas uma pequena parcela ainda restrita ao clã branco-cis-normativo. Romper as barreiras mesmo com a tecnologia de nosso lado parece missão quase impossível mas, sei que estamos lutando e conheço pessoas que diariamente estão parindo iniciativas de valorizar e reconhecer as produções de artistas, cultura e arte de minorias.

A história de Alice Guy me faz lembrar do enrosco da live da Parada LGBTQIA+ que ocorreu domingo passado. Nessa live, uma iniciativa louvável dos organizadores já que não haveria parada em si devido ao quadro de pandemia que ainda nos assola, desfilaram formadores de opinião, youtubers, ativistas, militantes e outros ligados ao movimento pelos direitos LGBTQIA+ mas, o evento foi seriamente criticado por ter deixado de lado nomes importantes dessa luta em detrimento da abertura de um canal de diálogo com as gerações mais novas.

Ate aí, nada demais afinal, a Parada é uma entidade vivente e que precisa estar inserida no seu tempo sob o risco de esvaziar-se então, nada mais justo que chamar para uma live os ativistas, militantes e pessoas que falam diretamente para esse público jovem e que necessita sim se reconhecer no evento.

Mas, e digo MAS, não adianta jogar essa roupagem moderna no evento e esquecer de quem tornou possível que tomássemos a cidade não apenas em um dia mas em um mês dedicado ao Orgulho LGBTQIA+. Podemos estar ainda distantes do ideal no tocante e visibilidade, representatividade, direitos e tudo mais para pessoas LGBTQIA+ mas, se hoje temos conquistas importantes, foi porque pessoas como Kaká Di Polly, Silvetty Montilla, Salete Campari, Miss Biá e tantes outres nos abriram esse caminho dando, muitas vezes, a cara a tapa e sofrendo as consequências na pele.

Então, quando um evento desses que deveria valorizar não apenas o presente e discutir o futuro mas principalmente, valorizar nosso passado e história, falha (exceto um pequeno quadro dedicado ao histórico do movimento e citando alguns nomes como João Silvério Trevisan) em trazer esse passado para que as gerações mais novas conheçam as figuras emblemáticas e essenciais dessa nossa história, não posso deixar de fazer um paralelo com o apagamento que Alice Guy sofreu.

E me vem outro apagamento: o de João Silvério Trevisan. Sexta passada, eu e Roberto Muniz Dias fizemos uma live (disponível no meu insta @ale_willer) para debater o livro A Idade de Ouro do Brasil, mais recente da carreira extensa e prolífica de Trevisan e, para nossa grata surpresa, ele não apenas assistiu nossa live como dela participou dando, como sempre, uma aula de literatura, vida e consciência.

Já havia escrito sobre ele aqui no blog, sobre como é revoltante que uma pessoa como Trevisan, com seu currículo, obra, estudo e bagagem, ainda seja forçado a brigar por espaço, por lugar de fala, por ter sua voz reconhecida e, pior, sua obra que compreende quinze livros entre tantas outras coisas como filmes, peças e por aí vai, estar praticamente fora de catálogo e há tempos sem qualquer atenção de resgate e reedição.

Não bastasse isso, inúmeras vezes me deparei com pessoas LGBTQIA+ que, ao ouvir o nome de Trevisan, simplesmente desconheciam por completo sua existência, obra e relevância. Obviamente que ninguém é obrigado a saber de tudo ou conhecer tudo mas, se você tem um minimo de curiosidade e interesse por sua história, não custa ir atrás e conhecer a obra, o trabalho e trajetória de quem fez o caminho que você trilha hoje.

O que temos hoje, essas poucas mas preciosas e importantes conquistas, não caíram do céu hétero em nossos colos, foram o resultado da luta de pessoas que vieram antes de nós como as que citei aqui e não apenas precisam mas merecem seu respeito, admiração e reconhecimento, sem essas pessoas, eu, você e todos nós ainda viveríamos de esmolas da sociedade heteronormativa.

Num país que figura entre os que mais mata pessoas LGBTQIA+, não basta lutar dia e noite por nossas vidas e direito de existir e ser, é preciso beber dessa fonte inesgotável de conhecimento, inspiração e força que Salete, Kaká, Silvetty, Biá e Trevisan entre tantos outros nos oferecem sem pedir nada em troca a não ser um muito obrigado.

19 de jun. de 2020

o homem que cantava parabéns

Contou os anos ali deitado, pareciam mais, sentia-os menos. 


Ainda deitado, olhou para a janela e invejou a garoa caindo lá fora, depois, com certo esforço, levantou e sentou-se na beirada da cama, os pés tocaram o chão frio e um tremor percorreu seu corpo como algum tipo de lembrança de que ainda seguia vivo ou talvez morto, a diferença deixara de existir há tempos já, quem sabe se estaria vivo, morto ou ambos?


Correu os olhos pelo quarto para ter certeza de que tudo estava em ordem, era uma data especial e tudo precisava estar arrumado e no lugar. Sentiu o pijama mais pesado, o ar mais frio e o tronco mais arcado que o normal. Sobre a mesa localizada no centro do quarto, uma bandeja com um prato de sopa da noite anterior que ele recusara mais por desgosto que por desfeita, um copo de suco cuja cor impossibilitava identificar o sabor, meio pão e uma maçã que lhe fez lembrar de tempos quase dourados. Seu apetite sempre definhava nessa época do ano.


Com um pouco mais de coragem, saiu da cama e foi ao banheiro. O peso dos anos lhe fazia difíceis tarefas simples como urinar ainda que fosse um dos poucos prazeres que ainda tivesse, talvez o único mas, o que eram prazeres? Ele tinha alguma lembrança vaga, como um tipo de película que ia aos poucos se descolando no fundo da mente. Banho rápido, preferia ter pouco contato com o próprio corpo. Pausa no espelho, conclusões incertas em cada marca constatada, um mar de sentimentos que ele gostaria de esquecer mas que insistiam em lhe dar lembranças, barba feita mais pela ocasião que por necessidade ou desejo.


De volta ao quarto, troca de roupa, veste o único terno que ainda tem e que só vê a luz do dia naquela data assim como os sapatos, engraxados à exaustão na noite anterior. Dá o nó na única gravata que possui deixando-a exatamente até a cintura, aperta bem o cinto e sente-se finalmente pronto, vestido para a ocasião, só lhe resta aguardar e isso ele sabe fazer bem.


Batidas à porta do quarto. Ele se levanta e abre a porta.


'Sua encomenda chegou...' diz a mulher do outro lado segurando uma caixa de tamanho médio. Ele recebe a caixa como se ali estivessem as cinzas de um santo e agradece à mulher em sua soleira, agora era entre ele e a caixa. Ele a coloca em cima da mesa, senta-se diante dela com reverência e começa a abri-la como se desembalasse um recém-nascido. Retira um bolo pequeno, coloca-o com precisão científica no centro da mesa.


O quadro não se completa e ele lembra repentinamente do detalhe faltante. Levanta-se, abre a gaveta da mesa de cabeceira, saca um par de velas e uma caixa de fósforos. Deposita as velas sobre o bolo de forma tão delicada que nem chega a rachar-lhe a fina cobertura de glacê. Risca o fósforo, acende as duas velas ritualisticamente e após uma pausa ínfima, começa:


'Parabéns prá você, nesta data querida.....'


Canta baixo a princípio. Aumenta a voz aos poucos, sempre repetindo a mesma melodia, sua voz vai crescendo, começa então a sair do quarto e ecoar pelos corredores. Acaba por atingir o quarto ao lado onde uma mulher, intrigada com a cantoria repentina, não resiste e pergunta à outra que se encontra ao seu lado.


'Desculpe’ diz ‘mas o que é isso? Quero dizer, essa cantoria? É normal?'


A outra olha com surpresa, assume um ar reprovador.


'A senhora não costuma vir aqui muito não é?'


Ela enrubesce, olha para os lados, para baixo e responde constrangida.


'Não tanto quanto gostaria, venho sempre que posso, sabe como é a vida da gente...minha mãe parece estar bem aqui, quero dizer, ela recebe todos os cuidados, é bem cuidada...' e aponta para a mulher deitada alheia na cama a receber cuidados da outra.


'Eu entendo’ responde a outra enquanto tira o termômetro da mãe com o olhar distante no leito ‘quase todos acham que aqui eles estão bem...' acrescenta fria.


'Mas, o que é isso enfim?' diz ela desconversando e deslocando o incômodo para a cantoria incessante que vem do quarto ao lado.


'É dia 26' responde a outra ‘Todo dia 26 ele faz a mesma coisa.'


'Canta parabéns?' retruca ela receando ser infectada por alguma doença senil.


'Faz isso há quatro anos, desde que sua mulher morreu’ diz olhando para o termômetro.


Segue um silêncio frio. Ambas ocupadas com seus remorsos. 



18 de jun. de 2020

Rapadura é doce mas não é mole não

Rapadura é doce mas não é mole não.


Lembrava da frase toda vez que chegava atrasado ao trabalho e tinha de enfrentar o chefe com cara de data de validade vencida e os colegas com aqueles sorrisinhos matreiros. Tomava um café breve na copa onde ouvia os mexericos da empresa, os de sempre, como fulano se vestia mal, como outro era o queridinho do chefe, qual seria o final da novela, o placar dos jogos e como os salários eram uma merda.


Ia para sua mesa com medo do telefone que lhe arreganhava os dentes a cada toque. Sentado, olhava para o computador com um misto de tédio e raiva o que lhe dava uma tremenda dor de cabeça e lá se ia goela abaixo a primeira das diversas aspirinas que tomaria durante o dia e que, junto com a comida do refeitório e o café requentado da garrafa térmica, lhe davam uma azia constante que nenhum antiácido conseguia por fim.


Do colega ao lado, nada ouvia de certo ou concreto, apenas as mesmas queixas sobre como o time andava mal e não chegaria na final do campeonato, como a secretária estava ficando um filé depois que entrara na academia, como o banheiro ficava fedendo depois que o office boy usava, como o vale não dava para nada e como aquele carinha da copiadora parecia meio viado.


Da secretária, ele só sabia o nome e uma foto onde os dois apareciam abraçados, ela com cara de coluna social e ele com cara de sala de espera de dentista. Detestava festas e confraternizações como as da foto, lembrava do colega do lado bêbado e lhe confessando pecados que ele não podia absolver. Do time de futebol ele não sabia nem qual era o campeonato, o time ou qual seria a final ou para que ela servia. Do office boy ele sabia só o nome e que ele sempre exalava um cheiro forte de cigarro, sabia também que ele tinha o péssimo hábito de urinar fora do mictório e que talvez se masturbasse no banheiro, uma vez achou tê-lo visto pelo reflexo no piso. Do rapaz da copiadora, ele não sabia nada, só que se fosse viado ou qualquer outra coisa de nada iria mudar sua situação ou na situação de todos ali.


E haviam reuniões intermináveis onde assuntos eram discutidos por horas a fio só para concluírem que precisariam agendar outra reunião para tentar descobrir porque precisavam de tantas reuniões. Durante essas reuniões, pensava em músicas, filmes, fazia listas mentais de compras e afazeres que nunca se concretizavam, imaginava as pessoas ali nas mais diversas e vexatórias situações, ficou surpreso consigo mesmo quando num desses ralos de tempo foi capaz de conceber uma situação complexa envolvendo todos os participantes ao mesmo tempo e riu, ninguém notou seu riso.


Às vezes pediam sua opinião sobre algo mas ele enganava bem. Era fácil, bastava usar uma daquelas frases prontas e comuns com a entonação correta e certo ar de superioridade ou então, aguardar algum comentário alheio e logo em cima dele reordenar as palavras do outro dando a todos a impressão de que entendera tudo e de tinha opiniões a respeito do que era tratado. Chamava isso de efeito papagaio, imaginava-se dando biscoitos na boca de cada um a cada palavra que proferia e vendo as expressões de aprovação que faziam.


Quase sempre ficava até mais tarde, depois que todos já haviam ido embora. Daí podia ver alguma putaria na internet ainda que dissessem que era monitorada o que ele achava pouco provável e mesmo que o fosse não dava mínima.


E podia então escrever seus pequenos contos, secretos numa pasta protegida por senha em seu computador. Ali esvaziava o dia de trabalho, esquecia as fofocas da copa, as lamúrias dos colegas e as divagações zen-budistas do chefe metido a esotérico.


Escrevia sobre coisas simples, que via na rua e no trabalho. Não mostrava a ninguém pois além de não acreditar que prestassem não queria ninguém lhe dando palpites ou sugestões ao menos das pessoas dali. Assim, escrevia seus pequenos mundos em segredo tendo por críticos apenas a máquina de xerox e a impressora.


Rapadura é doce mas não é mole não, lembrou da frase de assalto, atraso, novo e ainda assim o mesmo.


Ele não gostava de rapadura.


Definitivamente detestava rapadura.


17 de jun. de 2020

Simpatia

essa comida está sem sal...

olhei para ele, inócuo, incapaz de expressar qualquer resposta ou sentimento. sal. estava sem sal? pois. lhe passei o saleiro de alguma forma entre gentil e decidido, quase afronta.

quis dizer que está sem gosto, não sem sal.

sem gosto? Entendi. Talvez não fosse a comida, eu acho. A essa altura, poderíamos suspeitar de qualquer coisa, uma frente fria vinda de algum lugar, uma chuva repentina, a alta do dólar, o estouro de alguma bolha econômica em algum país distante, o farfalhar das asas de um urubu atento. se houvesse de identificar a causa de sabor das coisas, deveríamos tê-lo feito há anos, quando ainda tínhamos algum gosto ou algo que o valha, quando as papilas gustativas ainda não tinham sumido, quando ainda sabíamos distinguir os gostos um do outro de nós.

faço com mais tempero na próxima. e olhei para o prato mudo, com ar de sobra deixada sobre a mesa, vestígio de alguma refeição ingrata, restos quase mortais de uma vida já não vida mas incapaz de morrer, zumbi, sonâmbula, vagando pela casa na busca de algum tempero, especiaria, condimento.

dia seguinte a mesma coisa mas dessa vez, não houve reclamação do sal ou gosto. apenas um esgar súbito do outro lado da mesa denotando que a comida falhava em cair da boca no esôfago de lá para o estômago, intestinos e excreção, antes fosse excretada ali mesmo, pela cara que fez, esse era o gosto. não houve palavras, não se passou o sal, não se pediu pimenta, não se falou de comprar nenhum condimento, apenas comemos aquela pasta insonsa de vida.

e cansei, resolvi mudar. se ele queria gosto, teria gosto. usei a mesma cueca por dias, semanas acho, quase mês. durante esse tempo, ele seguiu calado, reclamando mudo da falta de sal, de gosto, de gostar, cada refeição um banquete de nada, sem sabor, apenas maxilares subindo e descendo, num mastigar lento e resignado, bovino, nada mais.

achei que reclamaria do cheiro da cueca fétida, exalando urina, porra e suor mas disso ele não reclamou, talvez gostasse mas nunca expressou nada, nem sim, nem não, nem nojo, nem prazer, algum tipo de tesão causado pelo cheiro, nada, só reclamava pelos olhos quando comíamos, refeição diária, sina, pecado da gula faminta que nunca fora saciada.

quando senti que não havia mais como seguir vestindo aquela peça de roupa nojenta, tirei-a, quase vomitei, o cheiro que emanava deixaria até um coveiro experiente com engulhos. levei-a até a cozinha, quase vomitando a cortei e piquei em ínfimos pedaços, quase microscópicos e misturei na comida.

naquele dia, ele elogiou meu tempero, a comida, não reclamou do sal, nem de nada, repetiu e lambeu o prato.

16 de jun. de 2020

Orgulho de quem?



Domingo, deveríamos ter ocupado as ruas celebrando a Parada do Orgulho LGBTQIA+ mas, como sabemos, não foi possível devido aos tempos que vivemos, há de ser consciente.

Tivemos então uma Parada virtual promovida pela organização do evento em seu canal no YouTube, o evento durou cerca de oito horas e teve apresentação de artistas, ativistas, militantes, debates, entrevistas e homenagens a grandes nomes da história da luta LGBTQIA+.

Mas, tivemos problemas os quais não tiraram o brilho da festas online. No mais, foi um evento lindo e queria deixar aqui meus parabéns aos pessoal que organizou essa festa virtual tão linda!

Problema #1

Com a ascensão do Bolsonarismo, a face horrenda dos conservadores foi revelada, as máscaras caíram e pudemos ver quem são de verdade, ainda bem porque assim, conseguimos descobrir quem era por nós e quem nos queria mortos e alijados da sociedade, por isso devemos ser gratos.

O lado ruim é que esses monstros agora sentem-se muito à vontade para nos atacar sem medo já que seu messias prega o ódio livre, carta branca para odiar e, durante a transmissão, não foram poucos os homofóbicos que perderam seu tempo atacando não apenas a live como o público e a comunidade LGBTQIA+ como um todo com elogios como 'Coquetel de HIV' e por aí vai.

Todos foram devidamente denunciados e, segundo apurei, os ofensores serão denunciados por crime de homofobia. Estamos fazendo algo de certo, se esses ditos defensores da moral e família, heteros (não sei precisar quanto) se deram ao trabalho de acompanhar uma live dessas para ficar atacando e destilando ódio, sinal que estamos no caminho correto.

Foi lindo ver o público denunciando e atacando os homofóbicos, bando de gente que não tem mais o que fazer, vai gozar, vai bater uma, fazer uma suruba, lavar uma louça, sei lá, gente que perde seu tempo com esse tipo de ataque tem sérios problemas com sua sexualidade, resolvam isso antes que surtem, recomendo fazer sexo, geralmente alivia essas tensões e, aliado a terapia, pode trazer algum benefício a suas mentes doentes.

Problema #2

Parada é festa? É.

Parada é celebração? É.

Parada é balada? É.

Mas, amadas, não é SÓ ISSO!

Quando você fica, num evento desses onde ativistas e militantes debatem temos importantes e essenciais a luta LGBTQIA+ e onde prestamos tributo aos que lutam há anos pela causa, pedindo para colocar logo o DJ, a música, a artista convidada, a festa dizendo que não quer ouvir militante, está cagando para todos nós e fazendo pouco de um movimento que lhe deu direitos como casar, adotar, dora sangue, poder denunciar preconceito entre outros.

Então, SEJE MENAS, olhe ao seu redor, veja o mundo que vivemos, a vida não pode ser apenas festa, dark room, bate cabelo e DJ. É bom? Claro que é mas saia da sua bolha cheia de poppers e ENTENDA o que está a sua volta. Estamos vivendo tempos difíceis, com um regime que está desmontando todo o aparato de apoio social das minorias, está trabalhando dia e noite para nos matar e você quer festa?

Use esse espaço, a Parada, para festejar sim porque nós somos festa mas acima de tudo, use como espaço político. Não adianta querer festa o tempo todo e não ligar para o resto porque é chato, não lhe diz respeito, é militância, assim você faz o jogo do inimigo.

ACORDA, VIADO! Não passe vergonha, por favor!

Problema #3

E valorize sua história, vá conhecer quem lutou por você e para você, reconheça e conheça seus heróis, seus mestres, a vida que você tem hoje não caiu do céu HT no teu colo, tem muita gente que deu e está dando a cara a tapa para que possamos ter uma vida mais digna e humana.

Os militantes e ativistas de agora, Youtubers e afins são importantes sim pois dialogam com as gerações mais novas e tentam abrir suas mentes e criar consciência mas guarde um pouco de seu tempo para conhecer o passado da luta LGBTQIA+, seus heróis, heroínas e heroínes, seus mártires, os nomes que fizeram a história que vivemos hoje.

HONRE SEU PASSADO!

A vida pode até ser uma festa mas as festas, meu amor, geralmente acabam.

15 de jun. de 2020

em terra de cego, quem tem um olho é gay

E tendo por decreto sacro régio absoluto dominatus édito na data do ano de Nosso Senhor, nosso augusto excelso governante determina:

Todos os deviantes, desviados, anormais, filhos de sodoma, bestiais, impuros e apócrifos, batizados fora do sangue do cordeiro pelo impuro, sem nome, rei dos imundos e dos submundos, praticantes dos atos hediondos que não visam a continuidade da sagrada família e do eterno; estão, a partir da data de publicação deste auto, sujeitos ao comparecimento compulsório aos postos de saúde e vigilância para submeterem-se aos procedimentos editados no decreto supra citado a saber:

1. Para os praticantes de coito anal: procedimento de fechamento do ânus e redirecionamento do canal retal para a bolsa de colostomia que passará a receber os dejetos diários do impuro - o decreto sacro régio absoluto dominatus édito anterior versa sobre a disposição dos dejetos dos impuros que não deve ser feita em conjunto com a dos demais sacros membros da sociedade fins de não macular os materiais que ante os olhos bentos são divinos.

2. Para os praticantes de coito vaginal não reconhecido nas categorias expressas no parágrafo único deste édito: cauterização dos canais vaginais, excisão completa e redirecionamento dos canais urinários para as sondas e bolsas coletoras respectivas assim como, conforme já informado, a disposição dos dejetos dos impuros não deve ser feita em conjunto com a dos demais sacros membros da sociedade fins de não macular os materiais que ante os olhos bentos são divinos.

3. Para os praticantes de sexo oral exceto os proclamados no parágrafo único deste édito:

3.1 Varões que receberem a felação: emasculação total e completa e redirecionamento dos canais urinários para as sondas e bolsas coletoras respectivas assim como, conforme já informado, a disposição dos dejetos dos impuros não deve ser feita em conjunto com a dos demais sacros membros da sociedade fins de não macular os materiais que ante os olhos bentos são divinos.

3.1 Varões que performam a felação: extração de toda a arcada dentária e remoção de todo tecido lingual seguido de selamento bucal completo e implantação de cateter para alimentação via sonda. Igualmente e conforme já informado, a disposição dos dejetos não deve ser feita em conjunto com a dos demais sacros membros da sociedade fins de não macular os materiais que ante os olhos bentos são divinos.

3.2 Varões que performam a felação em conjunto de forma mútua: emasculação completa e total de ambos e redirecionamento dos canais urinários para as sondas e bolsas coletoras respectivas. Neste caso em especial, os varões deverão jejuar em conjunto, antes do procedimento, por não menos que 28 dias seguidos podendo ingerir, a cada setenta e duas horas, líquidos apenas e desde que provenientes de seus próprios corpos degenerados fins de provarem a amargura de seus atos abjetos. Passado o período de jejum, ambos deverão então ser emasculados e impedidos de viver em sociedade sendo encaminhados ao Instituto de Cuidado Divino para expiação de suas impurezas pelo tempo que o Magistrado Alvo Absoluto entender conveniente.

3.3 Varoas que receberem our performarem sexo oral entre si: deverão ser encaminhadas para o Instituto de Reaprendizado onde passarão pelo processo de reeducação e orientação conforme os processos e procedimentos informados no APENDIX IV deste édito. Os casos de reincidência serão analisados e punidos conforme o a gravidade não estando descartadas a excisão, gravidez e relações sexuais normativas compulsórias e felação forçada ao varão designado, tudo no intuito de redirecionar ao caminho sacro da entidade feminina conforme exposto no Capítulo IX deste édito.

Inciso: o sexo oral entre homem e mulher, desde que dentro da união abençoada e autorizado pelo Estado Divino, é permitido desde que siga as diretrizes do Manual de Boas Práticas da União Normativa e Ungida. Os casos infratores de tais normas serão analisados e julgados pela autoridade episcopal determinada.

12 de jun. de 2020

em terra de hétero, quem tem amor é gay

eu cai de quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez.

cai por ele e cairia de novo, seguiria caindo até dar com a cara no chão, ou debaixo da terra, ou debaixo disso ainda, ou até no inferno, ou até depois do inferno deixando o diabo falando sozinho que eu só ia parar quando desse a volta completa e voltasse da queda para estar ali de frente, olhando naqueles olhos cor de não sei quem ou o que, cor de tudo, furta cor, furta cores, furta eu que não sou mais meu mas seu, me leva, me rouba, me assalta, me salta, me alta, me deixa assim com esse ar de gozo antecipado.

hétero não sabe amar assim de cara, de pronto, de súbito. tem de fazer corte, jogo, simula, desfaz, vai e não vai, faz de conta, agora vai e não foi, tem de brincar e dizer coisas que ninguém entende e depois passa os dias tentando recriar o primeiro dia dos namorados, aquele, doce, de beijinhos e juras, de jantar e motel, de beijo na nuca e carinho nas pontas dos dedos, de mão suave pelas costas e mãos suadas pelas coxas.

hétero passa quinze minutos ganhando e o resto da vida perdendo.

não sei, algo na água ou no líquido amniótico deles, ventre materno dever ter alguma coisa que deixa eles assim porque não tem como. talvez seja isso, se fossem gestados pelo macho não fossem assim, como são gestados por mulheres, parece que desde de lá de dentro já começam a intuir que não é seu ambiente, inóspito, insípido, arisco e depois tentam voltar mas não dá e aí não sabem mais tratar, lidar, amar, conhecer, serem mais úmidos uns com os outros, nas mãos, nos lábios, nas pernas, nas coxas, nas orelhas, nos sexos.

ser hétero é carecer de umidades, buscar algum tipo de liquidez e fluidez que não existe mais, saliva que seca nos cantos da boca enquanto gueis já nascem nadando, boiando em águas coloridas e são águas por todo o resto de suas existências, mares, oceanos, fluviais, torrenciais, mananciais, pantanais, afluentes de águas de amores que não secam jamais.

e eu estava caído ali, desfeito em líquidos na frente daquele homem, daquele macho que não era meu, ainda, possível, viável, viado, planejado, ensaio de amor, me via enchente de amores não completos e águas turvas de tesão, sem nome, sem eixo, sei freixo, sem nexo porque tesão tira da gente o prumo e coloca o torto no lugar.

mas ele era hétero, não sabia amar, dessas coisas, eu que não ia amar a um hétero porque é receita errada, desastre, bolo sem fermento, sem farinha, sem recheio, ázimo, sem gosto, sem sal, sem açúcar. era só pra ver mesmo, olhar, de longe, admirar e gozar mentalmente, eu amei por dentro, e casamos, e fodemos, e nos lambuzamos com as águas um do outro mas eu tinha mais água que ele e ele foi secando, secando, secando, secando, até virar um campo árido de alguém, de gente, pessoa deserto que teria de esperar a próxima chuva para florescer.

senti por ele, por ele ser hétero, jamais saberia de meu amor água, de como eu poderia ser seu líquido, saciar sua sede, seu sexo, sua mente, sua alma, gêmea oceano, mar de gente que podia ser nós,.senti por ele, não mais amor mas pena, porque ele era hétero e me olhava agora como se soubesse que jamais iria provar das minhas águas, dos meus caldos, dos meus sucos, das minhas seivas, morreria seco e hétero, por fora bela casca por dentro lago seco.

eu sei amar feito água, feito torrente, feito alagar, feito inundar, tipo aquelas cheias que fazem as pessoas perderem tudo, ele perdeu tudo quando foi hétero, teve de colocar seus desejos em cima dos móveis enquanto minhas águas subiam mais e mais. mas ele era hétero e não sabia como fazer isso, de amar quem é água, líquido, cheio, monção.

ele era hétero e em terra de hétero, quem tem amor é gay.

11 de jun. de 2020

Gézus

nascido de uma fenda suburbana onde o marginal é algo além do dicionário social, ele voltaria como leão e não cordeiro mas alguém não atualizou o gps e ele teve de driblar um aborto, um pré-natal precário e uma fome que, da última vez, desconhecera ainda no ventre virgem da mãe.

esta, aliás, não era mais pura que isso é coisa de inventar e antes dele, já tinha posto no mundo outros dois quando veio aquele anjo que, surpreso, lhe anunciou o terceiro. ela fez pouco afinal, quem acredita em anjo certamente não deve ter nascido naquela quebrada e disse ao anjo que onde iam dois, três iam do mesmo jeito.

veio ao mundo antes da data programada, sem ajuda que o hospital estava era cheio e para achar a saída, teve de lutar muito e talvez por isso, o leão veio mirrado, sem jeito, tímido e chorou um miado fraco quando se esperava uma trombeta do além.

o leite materno já não era lá essas coisas, uma água rala que apenas lhe atiçava a fome e seu choro era antes isso que anúncio de grandes feitos. cresceu correndo atrás dos anos e quando foi para o registro, a mãe queria jesus e o escriba lhe atendeu mas grafou gézus e como para ela jesus era jesus independente da ortografia, aceitou o pequeno messias que também não se queixou.

já menino dizia aí umas asneiras e voltava para casa com o nariz sangrando, a mãe lhe dizia para deixar dessas coisas de filho de deus e de ser metido a besta, que isso era problema, que ele brincasse como os outros meninos, ele retrucava mas a chinela cantava e lhe calava o bico.

chegou a arriscar um milagres mas eles saíam tortos, talvez pela fome que não se aplacava ou pelo pouco caso que lhe faziam. certa vez ressuscitou um pardal mas todos riram alto falando que isso era fácil, queriam era ver ele trazer de volta os pais que há muito não eram vivos ou mortos, ele não entendeu e voltou com arranhões pra casa onde a mãe lhe deu outra sova que era para ele aprender a deixar de ser tonto.

quando foi para a escola, não tardou em ter chamada a mãe. o menino era estranho, não falava coisa com coisa e retrucava, talvez fosse melhor levar a um especialista, medicar, as coisas iam bem em casa? cansada, aos safanões levou o moleque pra ver um doutor que lhe disse que poderia ser algo mais grave. exames e tomografias, esperas, nada de anormal, devia ser algum distúrbio, vamos medicar.

lhe puseram nos remédios e ele não mais sabia se era mesmo filho de deus ou filho da mãe, se fazia milagres ou apenas os imaginava. na rua era alvo de troça, iam atrás dele imitando e tirando barato, a mãe se condoía e cobria de mimos e o que mais pudesse lhe dar. às vezes na igreja, o pegava falando com os santos e chorava mas pensava que antes com os santos do que com gente errada, se era seu fardo ela iria suportar.

já adolescente ele parecia ter melhorado. saiu dos remédios e a mãe acreditava que poderia ter futuro, quem sabe algo mais promissor, voltou a estudar mas antes de ser algo que desse dinheiro, se meteu com filosofia e essas coisas de pensar, nada de futuro.

deixou o cabelo crescer, passou a usar sandálias e uma bermuda surrada com uma camiseta que um dia conhecera a cor branca, isso a pedido da mãe que aos prantos lhe pediu que usasse roupas ao invés da túnica com a qual apareceu um dia em casa, lhe disse que bastava de desgosto e que ele ao menos respeitasse a sua vontade de mãe ante a qual cedeu mesmo que a contragosto.

virou piada no bairro, pregava nas praças e vielas, a mãe ainda achava melhor que outra coisa mas lamentava a ausência de futuro, era chamada da mãe de gézus na rua, na feira, no mercado, não ligava, melhor quer mãe de filho morto ou preso, mal ele não estava fazendo, só às vezes vinham reclamar na porta que ele estava causando tumulto nos bailes ou atrapalhando o comércio local com suas frases desconexas.

apareceu um dia com uns amigos em casa, todos iguais a ele e ela tremeu, estava indo pelo caminho errado que eram uns maconheiros com certeza, pôs a todos pra fora e lhe passou um pito homérico, ele disse que ia sair de casa e ela disse que fosse porque ali não era lugar de maconheiro e ele foi.

já se iam muitos anos quando ela foi chamada à porta por um pm, gelou no coração e as pernas viraram água mas o oficial lhe tranquilizou, que fosse até o distrito para falar sobre o filho, preso estava mas nada demais, nada de droga, só perturbar a ordem pública.

ela foi, o encontrou barbado e com o mesmo ar de menino ainda que mais de trinta anos já lhe fossem às costas, chorou quando o viu, trazia junto seus irmãos que dele pouco faziam. ele segurou em suas mãos e lhe disse que aqueles eram seus filhos e que aquela era a mãe deles, ela sabia que ele não deveria ter largado os remédios, correu ao delegado e contou tudo, que o doutor tivesse entendimento que era um moço doente, que a deixasse buscar ajuda ou o pusesse em alguma lugar para gente doente da cabeça.

talvez por estar perto do natal, o delegado viu a mãe já arcada sob o peso dos anos de maternidade e amoleceu, que ela o levasse para a casa não podia ser, ele já vinha admoestando o moço há tempos, não dava para passar mais a mão mas, ia providenciar que ele fosse internado logo depois das festas, lavava as mãos depois disso.

ela agradeceu e foi dizer ao filho no cárcere, ele veio de novo com aquelas histórias de deus e missão e tal, ela chorou e os irmãos lhe olharam com desprezo e ódio, não tinha vergonha de fazer eles a mãe sofrerem assim?

na data certa, foi levado à instituição. ainda tentou lutar e argumentar mas não lhe deram ouvidos, disse que precisava purgar o mundo e julgar o ímpios, que os mortos esperavam seu julgamento para ressuscitar e foi levado, por enfermeiros que riam e abanavam as cabeças, para uma cela isolada.

na primeira visita, a mãe o encontra de túnica e com uma coroa de papelão na cabeça, não fala coisa com coisa e uma baba escorre pelos lados da boca. ela chora e se prostra na sua frente, ele a benze e diz que seus pecados estão perdoados. os médicos lamentam mas não há muito o que fazer salvo manter a medicação, que ele é inofensivo e já viram casos como o dele, são fixações, a mente cria ilusões, é um mistério, a medicina ainda conhece pouco da mente humana.

ela se resigna, ao menos ali ele estava sendo bem tratado, sim, o tratavam da melhor forma possível, vai se despedir e ele a benze de novo, ela chora e ele lhe diz que tudo bem, da primeira vez também ninguém sabia direito o que estava fazendo...


10 de jun. de 2020

Todos os olhos são pardos ao entardecer

o sol caiu como se houvesse tropeçado nas nuvens que fugiam do entardecer. a noite já batera o ponto e aguardava impaciente seu turno, cansada velha de guerra e o sol, caído, sabia que mesmo dolorido, teria de levantar no dia seguinte para render a noite que há tempos não se usava para dormir, triste fim de quem trabalha à noite.

você viu ali? não vi, o que foi? olha ali aquela mancha e apontou na direção do sol caído, desmaiando tons de laranja. não vi nada e apertou os olhos buscando o que o outro lhe mostrava. mas está ali disse o outro mantendo o dedo em riste. ali o que? onde? não vejo nada! e colocou a mão sobre os olhos para tentar fazer sombra contra a claridade difusa do fim de dia.

aquela mancha, não estava ali quando viemos ontem. baixou o dedo que já estava cansado.

que macha, criatura? o outro forçava a vista quase fechando os olhos para tentar colocar em foco o que deveria estar lá.

aquela ali que você diz não ver mas que está lá para qualquer um ver. disse ensaiando um amargor.

não há mancha alguma, oras! e soltou o ar bufando.

ah, então são meus olhos, não é? eu que não vejo mais direito, ficando cego, é isso, vejo manchas em todo canto, já não sirvo mais nem para olhar um por do sol. e soltou um grunhido meio primal, meio de raiva, meio de rancor, meio de praxe.

não disse isso, pare de birra que estou olhando para o mesmo lugar e não vejo mancha alguma. sentenciou solene enfático.

então são os seus olhos. e olhou para ele feito oftalmologista.

meus olhos? perguntou.

sim, você deveria ver a mancha, seus olhos estão com problema, tem de ir ao médico. voltou a assumir ar medicinal.

sempre vi muito bem e você sabe. mancha, muito que bem, deve ser coisa da sua vista, isso sim! repeliu com um gesto de fastio.

sempre eu que tenho os defeitos, você fica com todas as qualidades, aposto que o sol está se pondo assim meio torto por minha causa. apontou para o sol caído que já ia se retirando calado.

torto? e essa agora? além de mancha tem sol torto? tu está e com os miolos fracos. e acenou a mão num gesto de descaso.

agora além de cego sou doido, é? e lhe deu um tapa leve no braço a título de repreensão.

não disse isso. passou a mão onde sofrear o golpe, de leve, manso, carinho.

disse sim mas tudo bem, eu sempre fui o cego e o doido mesmo. respondeu arisco.

e eu sempre fui só doido de ter ficado com você porque cego eu nunca fui, sabia como você era. afirmou com voz arrependida em tom tardio, há coisas que o arrependimento ocorre no ato mas só se manifesta muito tempo depois.

ninguém pediu nada aqui, só queria que pelo menos uma vez você visse o que eu vejo sem me questionar ou chamar de doente. disse quase num tom triste, meloso para mimado, como quem pede um doce que sabe que não vai ganhar.

e quando fiz isso? pergunta seca, direta, linha reta.

quer que eu conte por ordem alfabética ou cronológica? em ironia.

além de cego e doido é humorista agora. em ironia também.

eu tenho de ser, pra viver com você! não basta ser cego e doido, tem de ser palhaço. acabara a ironia, na falta se usava o sarcasmo.

faz favor, para com isso, não tem macha, não tem sol torto, não tem nada, será que podem os aproveitar um por do sol em paz? veredito, apaziguar, a defesacusação descansa.

se você visse com meus olhos entenderia. saiu com remorso, medo, cansaço mas quase como um pedido, pedir é amar.

e se você visse com o meus também. saiu com certa candura, acolhida, pedido de paz, cachimbo, armistício.

olharam-se por um átimo, um raio atingiu a ambos e dilatou suas pupilas e plantou em suas mentes uma ideia absurda mas que fazia sentido para resolver o dilema que se punha ali naquele entardecer. 

seguraram a cabeça um do outro, sentiram algo que estava cego há tempos partir em dois e então, arrancaram os olhos um do outro e os trocaram de órbitas. olharam para o sol já quase indo embora, morrendo devagar enquanto a noite o jantava.

sorriram e foram embora abraçados.

9 de jun. de 2020

O Anão

UM

A senhora fique tranquila que aqui zelamos e muito pelo bem estar dos pequenos, temos câmeras em todos os ambientes, a entrada permanece fechada sempre, há seguranças monitorando os arredores e temos duas 'tias' por criança! As refeições são balanceadas, preparadas por uma equipe de nutricionistas e as áreas comuns, como pode ver aqui no playground, são cuidadas e os brinquedos promovem a interação e integração entre os pequenos além de resgatar o lúdico que, como sabe, hoje praticamente se perdeu e...


Mas e aquele anão ali? Rasgou a mãe já meio cansada da extensa lista de benesses que lhe custaria boa parte do orçamento mas, nos tempos modernos, há que se pagar desde de doce idade pelas vantagens que antes eram aleatórias e muitos infantes já saem dos berçários pelo preço de formandos. 


A diretora ajustou-se em seu terninho chumbo justo, aproximou ritmicamente os pés embalados em sapatos de marca, olhou ao redor como a procurar pelo item sem sabê-lo ali até que finalmente deparou-se com o artefato, largado num canto do playground, numa área onde pouca grama vingava jazia o anão; desses de jardim, resquício de outros tempos, herança de outras eras das quais ela mal se recordava. Já estava ali desde que assumira a direção da escola.


Coberto de terra, o anão parecia ter vivido tempos mais dignos. Hoje, mal se distinguiam sua calça vermelha e camisa azul permanecendo relativamente incólumes apenas a touca rubra e barba branca. Parecia coxo da perna direita talvez carcomida pelos anos e seu semblante, se um dia foi sinônimo de alegria ou bonachão, atualmente mais lembrava um pedinte imerso em sonhos etílicos.


Estamos revitalizando aquela parte. Respondeu a diretora. É um anão de jardim comum, sempre esteve aqui, as crianças gostam, tentamos tirar uma vez mas elas sentiram falta, deixamos ele aí então. Terminou com certo desprezo, como se a relíquia fosse a única parte decadente de toda a instalação, um dente encavalado que não se podia extrair, habitua-se com a dor.


Mas não poderiam arrumar? Perguntou a mãe atendendo a um instinto decorador que subitamente lhe acometeu. A diretora a olhou comedidamente, de cima abaixo como a lhe inquirir se uma escola como aquela teria tempo de restaurar uma coisa estúpida e sem valor como um anão de jardim.


Bom. Continuou. Podemos entrar e assinar os papéis?


Entraram. A mãe fazendo contas, a diretora pensando no carro que desejava trocar ainda naquele ano.


DOIS

Já contei, mais de uma vez! Disse exasperada a monitora. Falta uma criança!


Impossível! Disse a diretora. Como? Saiu andando pela porta da frente? Vieram buscar mais cedo?


Não, nada disso, estava aqui hoje de manhã mas agora à tarde, não está mais. Concluiu desalentada a monitora, receosa de que fossem lhe descontar a criança do salário, seria um desconto imenso, talvez tivesse de trabalhar de graça o resto da vida.


Uma criança não some assim, minha filha. Sentenciou a diretora. Deve estar escondida, nos pregando uma peça, chame o zelador e as outras meninas que eu olho aqui as crianças no playground. Virem a escola do avesso mas achem essa criança, me entendeu? E acrescentou o dedo em riste para deixar bem claro que era imperativo que o fizessem.


A monitora embarafustou pela escola atrás dos demais deixando a diretora ali, olhando os pequenos, feito galinha com pintinhos emprestados. Já ia ensaiando como explicar aos pais, às autoridades, à imprensa, o prejuízo, o carro novo que ia lhe fechando as portas e saindo sem ela dentro e então, mirou o anão.


Estranho, já não coxeava da perna direita, ao contrário, agora estava na mesma altura da outra, ainda jazia coberto de terra e com o mesmo ar aparvalhado de antes mas que agora estava em pé, isso estava, os bracinhos levemente inclinados à frente mas as perninhas, deixando-o ereto. 


Quem o arrumara? Ela não havia autorizado nada, de certo que alguém da escola se apiedara do pobre e resolvera exercer seus dotes de restaurador nas horas vagas. Não que ela reclamasse, por ela teria se desfeito há muito do traste mas, as crianças gostavam mesmo dele e, de alguma forma que ela não conseguia precisar, lhe dava calafrios, talvez aquele olhar meio perdido, como saído de algum desenho mal acabado.


Desviou sua atenção quando ouviu lhe chamarem de dentro da escola, juntou os pintinhos sob sua asa de tecido importado e foi ver o que era mas antes de entrar, de soslaio, mirou uma última vez o anão.


Quando não se pode explicar algo, a explicação menos absurda e mais plausível é aceita como a verdade, é uma convenção social que ajuda muito quando não sabemos a quem ou que culpar. A criança sumida virou assim uma estatística e ainda que os pais acenassem com processos e ameaças, a escola sobreviveu praticamente incólume pois não se apurou qualquer irregularidade.


TRÊS


Já se iam alguns meses do ocorrido e tudo parecia voltar à normalidade mas, a fatalidade tem o péssimo hábito de, ao contrário dos raios, atingir mais de uma vez o mesmo ponto. Outra criança voltou a evaporar em fino ar colocando a diretora e a todos em polvorosa. O carro novo teria de ser um usado mesmo e por um bom tempo ainda, como iriam administrar essa nova tragédia?


Deram buscas em cada tijolo da escola, na vizinhança, nada. Nem um fio de cabelo. Novamente todo o périplo de explicações, ameaças, culpas e ante mais uma vez a impossibilidade de se poder comprovar qualquer má-fé por parte da instituição, atribuiu-se novamente ao acaso fortuito o estranho desaparecimento.


Mas, desta feita, a diretora sentiu não apenas pela criança sumida mas pela onda de cancelamentos e transferências que seguiram afinal, perder uma criança vá lá, mas duas? Era um pouco demais. Desolada, resolveram fechar a escola por alguns dias a partir do sumiço da última criança e agora, vistoriava se tudo estava efetivamente fechado e trancado antes de abandonar o lugar a sua própria sorte.


Antes de sair, resolveu dar uma última olhada no playground, ver se tudo estava bem preso e travado e então, olhou novamente o anão, havia se esquecido dele no torvelinho que seguira ao desaparecimento mas, ali estava ele e um arrepio frio subiu de seus sapatos chiques, subiu pelas meias de seda importada que usava, desestabilizou seus quadris e percorreu rapidamente sua espinha até atingir a base da nuca, espalhando-se em seguida para sua face e couro cabeludo.


O anão estava agora limpo, ereto e com seus bracinhos cheios de dobras rentes ao corpo, o ar antes aéreo fora substituído por um ar grave, os olhos semicerrados como a varrer o terreno ao seu redor e por entre a barba alva, ela podia divisar um sorriso leve, não natural, como a caçoar, pode jurar que olhava para ela.


Absurdo! Alguém certamente vinha restaurando e sem seu conhecimento, ia descobrir quem e teria uma conversa muito séria com essa pessoa, deveria mesmo ter posto no lixo aquela tranqueira sem utilidade. Bom, já se fazia fim do dia, o sol ia morrendo aos poucos roubando ainda alguns tons de laranja da noitinha que chegava e ela precisava fechar o lugar, esqueceu do anão e foi vendo se todos os brinquedos estavam em ordem para enfrentar o período de reclusão.


Prendia alguns balanços quando ouviu um farfalhar leve, como se o vento passasse as mãos na grama e virou-se de súbito imbuída de uma sensação ruim a qual associou diretamente ao anão. Não estava mais lá, em seu cantinho esquecido, sumira. Não bastasse as crianças, agora seria culpada pelo sumiço do maldito anão de jardim, uma das coisas de gosto mais duvidoso que já vagaram pela terra.


Firmou a vista para o canto do anão, podia ser um golpe da luz já minguando mas não, ele não estava mais lá, os pés tremeram dentro dos sapatos finos, o terninho ficou apertado demais e o peito mal continha o arfar de sua respiração. As mãos eram fontes de suor frio, espalmadas aos lado do corpo. Lembrou-se de quem era e do que fazia ali e, recomposta, enxugou as mãos na saia do terninho chique, aprumou-se e riu internamente por um arroubo tão infantil, justo ela, uma adulta consciente que lidava com as fantasias de crianças diariamente, das mais simplórias às mais estapafúrdias, algum funcionário rancoroso, claro, lhe pregava uma peça, ela procurava ser justa mas justiça nem sempre tem o mesmo significado entre quem a aplica e quem a recebe.


Voltou sua atenção aos balanços, tudo precisava ficar em ordem, até mesmo aquela mãozinha rechonchuda que agora pousava sobre a sua ao prender os balanços.


QUATRO

Veja bem a senhora, reformulamos tudo, a equipe toda é nova, os sistemas de segurança foram todos revistos e melhorados e agora os pais podem até mesmo monitorar a escola de casa pelo computador ou celular! Um avanço! Claro, não estou dizendo que a administração anterior fosse relapsa ou algo assim, eles fizeram o melhor que podiam mas, honestamente, nos dias de hoje é preciso investir pesado em tecnologia e melhorias constantes. Tome nossa equipe atual, são profissionais com formação no exterior, alguns falam até mais de dois idiomas. Sei que pode pensar que isso representa um custo extra mas, pense comigo, não é para seus filhos terem o melhor?


Mas, e aqueles desaparecimentos? E a diretora antiga que nunca mais foi vista? Indagou a mãe receosa de largar seus rebentos em algum lugar agourento.


A diretora retesou-se, passou a mão pelos cabelos longos e bem cuidados, girou os sapatos caros e mirou, condescendente, a mãe temerosa.


Entendo suas reservas e até mesmo compartilho delas Soltou. Mas veja bem, e não digo isso como crítica ou mesmo para denegrir ninguém, todos temos problemas e sabe Deus como é complicado e difícil lidar com eles, enfim, aquelas crianças, que Deus as tenha, provavelmente foram vítimas de violência doméstica, é o que penso e a administração à época pode ter sido, como direi, complacente, me entende?'


A mãe arregalou os olhos.


Oh, não! Disse a diretora levando a mão espalmada ao peito. Jamais em nossa administração, temos plena consciência da importância das vidas que colocam em nossas mãos mas, da mesma forma, zelamos para que essas crianças tenham um ambiente seguro tanto aqui como fora.


A mãe pareceu acalmar-se.


Já quanto à antiga diretora, e por favor não me interprete erroneamente, como disse, problemas os temos todos nós...Enfim, ela tinha lá os seus sabe? Bem, melhor não comentarmos mais, acho deselegante falarmos de pessoas que não estão mais aqui para defender-se.


Mas, ele faleceu? Perguntou a mãe curiosa.


Oh, não! Respondeu a outra. Sumiu no mundo sem deixar pistas, ninguém sabe seja amigo ou família. Sabe, como disse, todos temos problemas...


A mãe aquiesceu mecanicamente.


E aquele anão? Perguntou em seguida apontando para um canto do playground.


A diretora rodou novamente seus sapatos e mirou o canto para onde a mãe apontava. Um anão meio alquebrado, começando a coxear da perna direita, terra a lhe subir pelas pernas e de olhar perdido guardava um canto do playground.


Ah, aquilo? Disse como se olhasse para algo que pudesse dispensar. É uma herança antiga, está aqui há tempos, tentamos tirar mas as crianças parecem que se afeiçoaram a ele então deixamos ali, não é até meio simpático?'


A mãe, meio a contragosto, concordou. Parecia haver algo errado com aquele anão.


lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10 Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu nam...