Enquanto Bolsonaro articula seu auto-golpe espalhando seus factóides e emparedando a democracia um tijolo por vez, nós seguimos isolados compulsoriamente até que a normalidade decida dar as caras novamente.
Talvez o COVID tenha apenas derrubado uma ilusão de liberdade e autonomia que pensávamos ter envoltos em nossas batalhas diárias por uma vida que nunca foi nossa e que agora descobrimos não ser a que queríamos.
Já vivíamos em isolamento feliz sem reclamar disso, fechados em nossas casas, trancafiados atrás de portas, fechaduras, travas e cadeados vendo o mundo passar pelas telas do computado, celular e TV e aceitávamos isso como parte da modernidade facilitadora da vida, benesses tecnológicas facilitadoras.
Quantos de nós efetivamente sabiam como foi o dia uns dos outros, tinha uma genuína preocupação com isso para além de curtir ou repostar uma foto ou comentário? Aquele bom dia que não saía da boca, aquele aperto de mãos que não vinha nunca, aquele olhar que jamais chegava. A imersão digital que nos alimentava a vida supria com folga a necessidade de toque e contato humano relegando este a ocasiões específicas e pontuais.
Ainda nos víamos, conversávamos, sorríamos e olhávamos uns para os outros mas sempre sob um olhar on-line considerando aquela pessoa a nossa frente algum tipo de emulação de seu eu digital, nos perguntando intimamente se aquela simulação era parte do feed das redes e concluindo, de forma nada empírica, que por dentro o que havia era um pão há muito bolorento.
A pandemia colocou abaixo esse simulacro de civilidade forçando nossa vista para o interior jogado para baixo do tapete da vida, acabamos confrontados com nós mesmos e com o outro e descobrimos que nem ele, nem nós éramos quem imaginávamos ser. Trancados dentro de nossas casas, acabamos tomando uma consciência de que nosso corpo é finito em si, suas necessidades são outras totalmente diferentes das que o cotidiano externo clamava e nossas vidas independem de algum tipo de fé irrestrita numa ideia vaga de que as coisas são como são e de que tudo se resolve por si.
Confrontados com a clausura forçada, descobrimos que há vida dentro da vida que tínhamos, uma vida que não sabíamos, que desaprendemos, que esquecemos e tivemos de reaprender a usar. Seremos os QUARENTENIALS, os filhos da pandemia e sairemos dela com outros modos e hábitos. Talvez sejamos testemunhas do pós-internet pois se por um lado a rede ajudou muitos de nós a não enlouquecer, acabou mostrando nossa dependência um do outro e como a hierarquia social que julgávamos justa era apenas uma falácia.
No melhor cenário, sairemos disso com algum tipo de noção renovada da importância do convívio humano ainda que, num primeiro momento, temerosos de ter essa contato. No pior cenário, passaremos a ser criaturas isoladas e que valorizarão a individualidade real e virtual ainda mais concluindo que o suficiente para sermos felizes é termos apenas a nós mesmos o que, grosseiramente, não está assim tão longe da verdade.
O que não morrerá e certamente aumentará é o medo que temos uns dos outros, esse medo não apenas pela violência social que nos aparta e afeta mas o medo congênito de que o outro sempre é uma ameaça de algum tipo a nossa integridade, sanidade e autenticidade enquanto indivíduos. Se antes vivíamos esse medo de forma comedida e um tanto educada, polindo as arestas sociais que nos afetavam e tolhendo o contato com pessoas que se apresentassem como potencialmente nocivas, no mundo pós-pandemia teremos de somar a esse medo o medo de que esse outro competindo pelas mesmas coisas que nós também pode ser arauto de doença e morte e por isso mesmo deve ser isolado e afastado tanto quanto for possível.
A herança da pandemia será essa, o medo desnudo e irrestrito, justificado do outro que passa a representar uma ameaça real e não mais imaginária e desse medo nascerá o homo pandemicus que saberá lidar com essa convivência virótica melhor que seus antecessores.
A ver.
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