Que a morte vai chegar não resta dúvida, independente de cor, classe social, posses, orientação sexual, identidade de gênero, idade, nacionalidade ou o que for.
A hora de passar a régua e encerrar a conta vem de qualquer maneira.
Mas de tempos em tempos, somos confrontados com situações que nos fazem encarar a hora final com mais frequência e urgência queiramos ou não, como esses tempos de pandemia quando vidas humanas são ceifadas em baciadas sem dó ou piedade.
A bem da verdade, antes de tudo isso que estamos vivendo, pessoas morriam de moléstias diversas, algumas completamente curáveis mas cujos doentes não tinham acesso devido a barreiras sociais, políticas ou econômicas, outras sem cura independente do quão rico fosse o doente e, infelizmente, morriam por fome, inanição ou causas não naturais que, em tese, a humanidade deveria ter deixado para trás há séculos.
O que deixa a todos espantados e assustados é velocidade com que estamos morrendo agora e a incerteza de nossa invulnerabilidade ante o avanço inexorável da doença. A morte antes acenava como algum tipo de visita distante que ia acenando cada vez mais perto até não ser mais possível ignorar sua presença. A morte era um problema do outro, lamentávamos que ela havia chegado, cumpríamos os ritos de despedida e enterrávamos junto com o falecido nosso medo de que poderíamos ser os próximos.
Com a pandemia, esse medo passou a dividir a mesa conosco e, em quarentenam temos de dormir e acordar com ele ao nosso lado, fazer as refeições, tomar banho e fazer de conta que ele não está lá. A urgência da morte veio e fez casa e não parece que vai embora tão cedo e com ela, veio o pânico de que o outro pode ser o agente mortífero e não o outro que sempre enxergávamos como imbuído de más intenções e desejoso de nos ferir para compensar qualquer desejo patológico ou desfavorecimento social. O outro na pandemia adquiriu um ar mais soturno de amigo que repentinamente ficou perigoso e precisamos manter afastado.
Talvez passada a pandemia nunca mais sejamos os mesmos uns com os outros, ingressaremos na era do pós-social, não sei mas sei que se há algo que aprendemos ou deveríamos estar aprendendo com isso é como tratamos nossos idosos.
Já por costume e tradição, nós ocidentais tendemos a enxergar os velhos como um fardo, algo que deve ser descartado e colocado de lado. Nossa sociedade preza a juventude e o novo como bálsamos insubstituíveis, o que é velho deve ser posto num museu e esquecido, inscrito nos livros de história para ninguém mais ver e ouvir falar.
Com o advento da pandemia e durante o vigente governo de agenda neoliberal ficou claro que as vidas idosas são um preço aceitável a ser pago para manter a roda girando e a sociedade funcionando afinal, eles já cumpriram seu papel, deram sua contribuição e precisam agora dar espaço aos jovens que tem de construir a pátria arrasada Brazil. O governo certamente agradece esse sacrifício já que promoverá um fôlego nas contas públicas sem que seja preciso posar de vilão ante a sociedade.
As vidas idosas passaram a ser moeda de troca no jogo político e social, se antes eram um incômodo encarado por muitas famílias como obrigação da qual se incumbiam sob o medo do julgamento social, com a pandemia passaram a ser artigo de exposição e justificativa para expressões de descaso das autoridades e até mesmo entre familiares que antes estariam pouco se lixando para elas.
Na verdade, esse valor súbito das vidas idosas vem do medo que a pandemia - como está se mostrando - não se retenha nelas e passe a devorar outras vidas com a mesma voracidade. Se um velho morre por que sua vida se extingue naturalmente ante o desgaste e fragilidade impostos pelo tempo não há problema afinal, é o curso natural das coisas mas, quando uma doença agressiva começa a ceifar essas vidas e mostra que pode clamar por outras mais jovens, entregamos as vidas velhas como oferenda para ver se a doença se sacia e nos deixa em paz.
Já ouvi e creio que tenham ouvido também comentários de que deveríamos deixar os velhos morrerem e focar no salvamento dos mais novos porque os velhos já estão no fim mesmo, qual a utilidade de gastar recursos com eles? Isso diz muito sobre nós como sociedade e espero que saíamos disso com outra concepção de valor da vida humana e de como tratamos nossos idosos.
Não vai adiantar muito passarmos por isso tudo e nossos idosos seguirem abandonados em asilos e largados a própria sorte porque não tem mais qualquer utilidade para nós nem para a sociedade. Sairemos de uma pandemia apenas para entrar em outra que sempre vivemos.
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