16 de out. de 2012

fome


De principio, luz, jogada sobre um diamante bruto, cuspindo do outro lado um caleidoscópio disléxico, cego, incerto, efeito especial dissonante, retro, vintage mas que a luz foi lapidando aos poucos, nos dois, no amor que foi arestando a gema grossa.

No frigir dos anos, o que era aresta perfeita, encaixe imperceptível, simetria tigresa na floresta cinza, foi além do bom gosto vigente em termos de formas preciosas, tornou-se preciosismo, rococó e de tão doce, perdeu gosto, resvalou no azedo, um pé no amargo, lembrou dos dias jovens de sol e ressentiu-se de não ser a não ser nuvens nos olhos feito buracos negros no céu.

Fogo cruzado, lado escuro da lua, caminho de Júpiter (sem monólito) e exposto na luz, na brisa metálica que arejava agora o antes cálido ambiente, foi destoando do que sobrava de inicio, das juras flecheiras, das promessas brejeiras, dos tanques cheios de perfume etéreo, das figuras de linguagem que se grudaram ao amor.

Tentando salvar, adicionaram vários condimentos apenas deixando o todo com gosto de partes, inconclusivo, indecifrável e por isso intragável em sua globalização demente. Erraram a mão feio, feio feito belo pelos olhos deles que já não viam beleza dentro, só fora.

Passaram assim nas fases com louvor, atingiram a silenciosa, as acusações, raivas, rancores e afins rastejando pelo chão lhes mordiscando os pés como filhotes famintos, iam levando assim, novela, novena, procissão em desgraça, via crucis sem cruz no final, eram dois lares em um e provaram mesmo aquela lei física que impede dois corpos de ocuparem o mesmo espaço ao mesmo tempo, quando aconteceu da ultima vez, era assunto de foto amarela do tempo.

Então, um simplesmente não suportou mais o fardo amargo, resolveu resolver a seu jeito se o outro não sabia como por de novo em cada letra da palavra morta o sentido original da coisa. Fez a toca/teia, velas, comida esmerada, bebida gelada, no outro surpresa e um deja-vu quase lhe roubou o momento crente que ficou de estar no lugar errado.

Comeram, beberam, falaram pouco, medo de espantar as quatro letras que começavam de novo a se dar as mãos, iam enfrentar os sentimentos rastejantes da casa, era um pressagio. Então, a visão dele turvou, parafina nos olhos, embaçados, onde? Como? Quem? Quando? O outro lhe amparava a cabeça, olhar de entendo, vai passar logo, descanse, não se apoquente.

Lagrima fina escorreu do olho esquerdo, não quatro mas cinco letras que navegavam nela o outro sentiu mas fez pouco pois ia acabar em momentos, que não se apegasse a sentimentos ruins na hora de ir, assim não era bom, que fosse em paz. E o outro foi, num espasmo, travou o pescoço e depois virou a cabeça num esgar amparado pelos lábios do amante em sua testa.

Fim do ato, ele gentilmente arrastou o peso até a cozinha, largou-o no meio do recinto e sentou-se um momento para descansar, recuperar o fôlego perdido. Olhou para o corpo no chão, uma sensação quente se apossou dele, um sentimento há muito saudoso, ergueu-se e começou e então a retalhar aquilo que um dia chamou de amor.

Já aos pedaços, separou a parte que lhe interessava e jogou os restos fora em sacos plásticos escuros, vários, um dentro de outro, para que os cães não lhe sentissem o cheiro e viessem profanar os pedaços de seu amor. Depois, limpou a sujeira feita com esmero, renovado, cirúrgico e preparou-se para cozinhar, apressado, ainda queria aproveitar o clima das velas na sala de jantar, celebrar o nazareno que ia nascer.

Pegou o cerne do amor do amante, o fatiou com carinho e cuidado, temperou com ervas finíssimas e temperos exóticos, sem excessos para que o gosto do outro não sumisse por todo afinal, era o principal sabor do prato, assou e flambou ao final e serviu acompanhado de legumes ao bafo e um molho agridoce preparado com suas lagrimas.

Depois e satisfeito, adormeceu sobre a mesa de jantar, jogando ao chão taças, pratos, talheres e um vaso com apena duas flores que adornava o centro da mesa. Teve pesadelos horríveis, talvez houvesse exagerado nos temperos? No vinho? No sal? Acordou empapado vários vezes noite afora nunca seguro de estar realmente ali ou no sonho dentro do sonho dentro do sonho, atado no eterno despertar feito maldição de Morfeu.

Um raiozinho de sol lhe tocou o olho direito leve, piscou incomodado e virou-se para o outro lado mas o sol, matreiro, pulou seu ombro, refletiu-se nos cristais guardados no armário ao lado da mesa de jantar e lhe bateram no olho esquerdo, vencido, acordou, mirou o teto, o chão onde reinava uma bagunça agradável e, quando se espreguiçava, sentiu a barriga cheia, desceu as mãos até o ventre e estava protuberante, alto mesmo, sentou-se de um pulo e apalpou a barriga, não quis olhar, apenas sentir.

Levantou-se e andou cambaleante até o quarto, sentia-se pesado, arcado, quando chegou lá, mirou-se no espelho da porta do guarda-roupa e viu a sua frente uma pança digna de gestação de meses, já lá adiante. Sorriu e desatou a chorar feito criança em festa de aniversário onde só servem doces.

No meio do choro, uma dor lancinante lhe fez cair de quatro no chão, urrou, se lhe partiam as entranhas, ia morrer, algo ia lhe arrebentar ao meio para sair, ria e berrava de dor ao mesmo tempo e então, foi lhe subindo garganta acima algo, ia se agarrando a seu esôfago com vontade, e a ânsia de vomito veio seca, forte, violenta e de quatro pariu pela boca uma gema bruta envolta em um plasma que era sangue e restos de comida.

Caiu pra trás, exausto, moído, desolado e ficou ali mirando a pedra preciosa recém-nascida, sua filha, seu rebento. Chorou de felicidade ainda que os soluços lhe tirassem sangue à boca, valera o esforço, era um coisa única e bela, singular para lhe dar plural. E então a gema passou a torcer-se, chiar alto como se um apito quisesse vir ao mundo de dentro dela e ele percebeu que foi se trincando liberando aos poucos pequenos feixes de luz que iam aumentando conforme a pedra se partia.

Quando ela não pode mais oferecer resistência alguma, rompeu-se num silvo triste e trincado enchendo o quarto de luz alva e cegante que lhe fez cobrir os olhos. Quando percebeu, através das pálpebras, que o quarto estava de volta à iluminação normal foi, aos poucos, abrindo os olhos. Não havia mais pedra, nem nada, nem espelho, nem sangue, nem choro, nem qualquer coisa mais, ao menos por um átimo de tempo.

E então, vislumbrou a sua frente a figura do amor morto renascido, renovado, fetal começando a se desdobrar, correu para ele, limpou-o com a língua removendo a placenta que lhe envolvia em luz e depois, acolheu-o entre os braços esperando que abrisse os olhos, respirasse, lhe inspirasse, lhe reconhecesse, lhe vivesse, lhe entendesse, lhe amasse, lhe fosse tudo aquilo que nada era.

Do nada, o recém-nascido abriu os olhos, fechou-os de novo ressentido da luz, respirou fundo e apertou forte a mão do outro que lhe segurava, voltou a abrir os olhos e depois de sondar seu arredor, como se certificando de onde estava, olhou para o pai-amante primeiro acuado mas depois, dado o olhar às lembranças trabalho e razão, abriu a boca e num sentimento puro, inocente, sincero e divino soltou:

‘Eu te amo’.

5 comentários:

  1. "Então, um simplesmente não suportou mais o fardo amargo, resolveu resolver a seu jeito se o outro não sabia como por de novo em cada letra da palavra morta o sentido original da coisa.". gostei dessse trecho, não sei pq.

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  2. Cara,
    coisa bem boa acordar com uma leitura dessas!
    Great!

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  3. Preciso dizer que te amo?
    Não, né.
    Sem fôlego aqui, Melinho! Perfect!

    E compartilho da tua opinião: melhor comprar um cubo pronto e era isso, nzé? Pra perder tempo montando um só se o Cazarré viesse junto... hahahaha!
    Bjas!

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  4. "Regurgitando Humanos", foram as palavras que me vieram depois de ler seu conto!

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  5. Como diz o amigo Edu: Supimpa!

    Achei muito bom. Parabéns!

    Abraço.

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