18 de dez. de 2020

o tear

 



Acordou antes mesmo dos primeiros raios de sol resolverem trabalhar e isso sempre a confundia, não sabia se era um dia novo que iniciava ou apenas uma extensão do anterior o que, na verdade, lhe era indiferente.

Havia muito a fazer e assim, passou rápido um café, cortou uma fatia fina de pão no qual passou um pouco de manteiga que já ia meio desandando e depois, ficou ali uns momentos observando a manteiga penetrar nos pequenos furinhos do pão. Sempre passava a manteiga de forma que a fatia de pão ficasse uniformemente coberta, mas hoje, de forma acidental ou não, havia deixado um pequeno pedaço dela em uma das beiradas da fatia e agora, ela vagarosamente escorria por aquela parede de trigo.


Ficou ali observando aquele movimento moroso, a xícara de café soltando um vapor leve, o aroma era de café ou algo que parecia com isso, ela lembrava do cheiro do café e principalmente do gosto ou era do gosto e depois do cheiro, não sabia, só sabia que lembrava café. A manteiga finalmente percorreu toda a lateral da fatia de pão e se esparramou no pequeno prato que a acolhia, ela queria ser a manteiga mas a vida era uma fatia muito grande de pão.


Desjejum feito, lavou a pouca louça que usara e já com os primeiros indícios de trabalho solar foi-se para a sala onde o tear a aguardava em silêncio. Abriu as janelas, a claridade já começava a inundar o cômodo o que lhe permitiria trabalhar, essa época era boa, havia muita luz, diferente das outras, ela não lembrava os nomes, sabia apenas que numas fazia frio e noutras, muito calor, agora era algo no meio, ela queria ser uma estação mas a vida havia cancelado sua parada.


Olhou para o tear, o trabalho já ia adiantado, questão de mais o que? Um dia, pouco mais? Era uma encomenda boa, lhe traria alguns dividendos, o suficiente para alguns meses até pingar outro trabalho, não eram muitos, teares eram antigos, poucas pessoas sabiam manejar um, acabariam por desaparecer, ela queria desaparecer mas sempre acabava aparecendo de volta.


Esfregou as mãos no avental já carcomido por um sem fim de esfregadas, arfou de leve e sentou-se no banco em frente ao tear quando o sol finalmente despontava no horizonte. Ela queria ser um sol, se contentaria com uma lua, mas o universo era muito grande para ela.


Começou a tecer, era bom começar cedo, fazia o trabalho render, ela rendia muito, lembrava de um tempo em que tecia quase sem parar, o tear chegava a pedir arrego, ela chegou a vara noites tecendo mas não sabia ao certo quando fora isso, podia ser um sonho, talvez fosse, ela tecia há tanto tempo que até o tempo era apenas um fio a mais a ser tecido, ela queria ser o tempo mas ele era um fio muito grande para tecer em seu tear.


A manhã já ia alta, o trabalho rendia bem e ela resolveu fazer uma pausa para tomar um café e comer mais uma fatia de pão, almoçaria mais à tarde. Dessa vez não passou manteiga, apenas comeu o pão e bebeu meia xícara de café. Ficou alguns minutos olhando pela janela da cozinha, o tempo estava bom lá fora, talvez valesse uma caminhada para esticar as pernas, ela antes fazia isso mas não lembrava quando o fizera a última vez, tinha de acabar aquela peça o quanto antes, havia pressa na entrega mas o sol estava tão convidativo, ela queria caminhar mas os caminhos já não eram os mesmos há tempos.


Voltando ao tear, sentou-se e foi quando deu fé, pela primeira vez ao olhar para a barra do vestido que roçava gentilmente o chão, um pequeno fio que dela se desprendia. Mirou o fio por longos minutos, não com surpresa mas com interrogação, era de se esperar que houvesse já que o vestido vivera dias mais ilustres. Pensou em puxá-lo mas isso poderia desfazer toda a costura e sua era a responsabilidade de tecer e não o oposto, resolveu então deixar o fio quieto e voltou ao tear.


A tarde avançou rapidamente, a luz já ia fugindo quando ela parou seu trabalho, sim não tardaria a acabar e enquanto admirava seu trabalho lembrou-se do pequeno fio solto em sua saia. Olhou para baixo e talvez pela pouca luz ou cansaço das vistas, ela queria ver mas a visão era demais para tanto, o fio lhe parecia maior. Certamente que seus movimentos tecendo o haviam soltado mais, levou a mão até o fujão e fez menção de puxá-lo, mas, anos de tecelã lhe impediram de cometer crime tão hediondo e cansada, resolveu ir deitar-se.


No dia seguinte repetiu lá seu mesmo ritual e, quando sentou ante ao tear olhou para baixo, de certo que o fio deveria ter sumido já, impossível que ainda estivesse lá mas estava e agora, à luz do dia, não havia falha ou truque das vistas, estava mesmo maior. Abaixou-se e o pegou com uma das mãos, já formava um pequeno bolo, ela deveria cortá-lo ou mesmo tentar costurá-lo de volta mas para isso precisaria parar o trabalho e a data da entrega se aproximava além do mais, ela sentia-se cansada, mais do que ontem e do que antes, ela pouco se cansava, ela não queria descansar mas o cansaço era uma fatia de pão com manteiga demais sobre ela.


Deixou o fio para lá e voltou a tecer, nem mesmo fez pausa para café ou almoço, queria terminar logo, a entrega, era preciso respeitar os prazos, seu cansaço não importava, ela jamais havia atrasado uma entrega, seu tear era mais preciso que muitos relógios e seria possível acertar as datas do ano por suas entregas.


Quando o dia bateu seu ponto transferindo o turno para a noite, ela parou de tecer e, meio ressabiada, olhou para o chão, lá estava um pequeno monte de fios, já um pequeno novelo saindo de si, ela ensimesmada pensou em como poderia estar se desfazendo assim uma fazenda tão boa mas, ainda que fosse de qualidade, não há tal coisa que peite o tempo que acaba por desfazer tudo que é do bom e do melhor afinal, para ele isso não existe. Exausta, levantou-se e foi para a cama arrastando atrás de si aquele pequeno filhote de tecido, incapaz de lhe cortar o cordão umbilical por uma questão de princípios mais do que praticidade.


Acordou no dia seguinte com a luz do sol a lhe tocar as faces emprestando um calor há muito esquecido, chegou a pensar que sonhava com calores há tanto enterrados e olvidados mas a surpresa lhe pegou no pé pois se o sol lhe fazia carícias, o trabalho já estava então atrasado. Pulou da cama e sem café, pão ou manteiga foi-se ao tear mas sentia-se pesada, mais do que o peso do vestido, corpo ou alma que já fora tecida e costurada tantas vezes, olhou para trás e lá estava o novelo agora maior, já se poderia tecer um pequeno tapete dele, pegou-o nas mãos e indecisa e em susto, largou-o como se houvesse tocado algum leproso.


O dia corria já, era fazer repor o tempo perdido, ilusão pura mesmo que houvesse às mãos todo o tecido do mundo. Sentia as forças lhe faltarem mas era preciso tecer, cumprir a entrega, a clientela não podia esperar, ela sim.


No tear, o trabalho ia bem, pensava mesmo que era seu melhor trabalho em tempos, talvez o melhor de sua vida, se fosse seu legado, poderia ir-se em paz e ouviria do lado de lá os elogios e faces de espanto antes tamanha peça de arte, quem sabe gerações futuras não estudariam seu trabalho, não fosse usado como referência e padrão de qualidade para tecelões futuros se é que tal coisa existira no futuro mas, sempre haveria necessidade de tecelões fosse para tecer roupas, tapetes ou mesmo a delicada fábrica que unia em finos fios a trama da vida e, se não fosse para tecer, que fosse para remendar, tudo se rasga com o tempo e apenas mãos firmes e experientes sabiam como por de volta o que as intempéries cotidianas haviam rasgado.


Esses pensamentos lhe fizeram escorrer um fiozinho de suor frio pela testa e pelas faces, faltava tão pouco agora, era um tear bom aquele, estava ali desde sempre ou desde quando ela entendia o que era o sempre, brotou em sua mente uma lembrança meio embaçada de menina vendo mulher tecer, a vida era um tear, tecemos com nossas lágrimas o pano que nos servirá de mortalha, alguém lhe falara isso ou era um lembrança solta.


Olhou para o chão, o novelo que se soltava de sua saia já estava grande, se lhe faltasse fio poderia usá-lo para acabar a entrega mas fio havia, fio havia, ela tinha um bom estoque, estava segura mas, como a segurança é por si insegura, para apaziguar seu medo e satisfazer sua certeza, levantou-se e foi até onde guardava os fios arrastando atrás de si aquele pequenos animal de estimação felpudo.


Ao abrir o armário onde acomodava seus fios, quase foi ao chão, empalideceu de tal forma que a cera de velas tinham mais coloração que sua face, o armário estava vazio e a entrega seria no dia seguinte. Voltou ao tear arrastando dois pesos, o de sua decepção por não ter-se antecipado ao fato e o pequeno novelo que ia onde ela fosse.


Sentou-se em frente o tear, lá fora a tarde se espalhava por todo lado de forma preguiçosa, ela inspirou profundamente e desejou que a tarde ficasse ali mais tempo mas já ao longe as cores da noite começavam a comer em pequenos pedaços aquele resto de dia.


Desolada, não poderia cumprir com a entrega e lhe faltava tão pouco, um novelo bastaria, não mais. Como pudera ser tão descuidada? Uma vida dedicada assim ir ao fim, nunca lhe havia passado isso, agora deixaria como legado não elogios mas um nome que seria eternamente associado à inconstância e incompetência, seu tear seria vendido como bugiganga e não preservado como item histórico.


Suspirando levemente olhou para o chão, o novelo ainda estava lá, maior ainda ela pensou, como se não bastasse a desgraça de agora ainda tinha aquele atestado de sua incapacidade a lhe lamber as saias e então, em algum tipo de iluminação divina ou desespero, é difícil diferenciar ambos pois confunde-se muito, quando se pensa num é outro e vice-versa, teve ali a resposta de suas preces ou angústias.


Sacou o novelo do chão e o desfiou encaixando sua meada no tear. Com o olho, mediu a quantidade, haveria de ser o suficiente, não tinha também outra alternativa que não essa, preparada e determinada, começou a tecer pois a noite já se mudava e o dia seguinte iniciara sua jornada trazendo consigo a entrega.


E teceu a noite toda, horas a fio, com fio, fiando-se no tecido que dela saía, seu nome seria intocado, seu tear imaculado, seu trabalho reconhecido e sua técnica reverenciada. Ela seria alguém, não apenas um fio no tear mas o tear, nunca fizera outra coisa exceto tecer, tecera de tudo de tapetes a tapeçarias, a finas tramas que jamais entendera a serventia, de panos raros e caros, padronagens simples e das mais intricadas, seguira tecendo fosse na chuva, sol, neve ou seca, tecia de olhos fechados, muitas vezes com amor outras tantas com um sentimento menor mas tecia, a vida tecia junto mas ela não reconhecia a padronagem, tentava se encaixar na trama mas a vida sempre mudava o padrão, ela teve padrão mas não lembrava qual era, achava ter tecido fios com outros mas há tanto tempo que não sabia quais eram os fios usados, não lembrava bem deles apenas de seguir tecendo, dias, noites e sempre no prazo, isso era o mais importante, tecer é vida, tecer com arte de no prazo é arte em vida e se a arte imita a vida que dizer de sua tecelagens, não eram arte e vida? Não eram sua vida, não tecia sua vida para outros deixando que eles usassem sua vida tecida como proteção aos fios tortos que não sabiam tecer por si?


O dia chegou de mansinho, veio junto uma névoa suave que cobriu tudo dando às paragens aparência de algo imerso em líquido. Quando a névoa subiu e a luz morna finalmente tocou a terra, as pessoas começaram a sair para suas tarefas diárias, havia muito a entregar e o prazo é muito importante, o leite deve estar às portas cedo, os jornais idem, o comércio deve abrir suas portas e a vida deve ter seus prazos atendidos.


A entrega da encomenda foi respeitada, a peça de tecelagem era realmente única, foi um espanto geral ante tamanha qualidade e fineza do trabalho executado, uns diziam que não era algo terreno, que apenas os divinos poderiam ter concebido algo tão perfeito e belo, outros sussurravam que forças menos nobres pudessem estar envolvidas, uns tantos lhe achavam defeitos por motivos de inveja e amargura apenas, outros não deram atenção e a pessoa a quem era destinada a peça rompeu em prantos ante tamanha beleza, disse sentir uma injustiça que peça tão rara e única fosse de sua propriedade e decidiu por doá-la a comunidade, houve quem duvidasse de seus motivos mas a doação foi aceita mesmo assim.


O único consenso foi a dúvida sobre o paradeiro da artesã autora de tão magnífica peça.

17 de dez. de 2020

pequenas lembranças aleatórias

 



O relato abaixo é real e se passou há muito tempo, quase igual ao preâmbulo de todos os filmes da saga Star Wars.

Estava solteiro, como não nasci para a clausura, buscava ocupar a vaga. O moço em questão, já havia cruzado comigo na noite em diferentes ocasiões mas, não o sabia surdo. Certa vez, estava na Vieira, no dia anterior ao G-Day Hopi Hari tomando meus gorós quando alguém chega em mim e diz: ‘Meu amigo quer te conhecer’, estando ele sozinho, ou o amigo era imaginário ou estava ele bêbado, destino ao qual me encaminhava à passos largos. Percebendo o ar de dúvida, apontou para um bar do outro lado da rua onde me encontrava, entendi que o moço estava lá e o segui até ele.

Chegamos, e não é que era o surdo que trocara olhares comigo tantas vezes antes? Ainda sem sabê-lo surdo disse oi e então, seu amigo (que ouvia muito bem) disse: ‘Ele é surdo’. Suspense, como se a revelação fosse o ultimo segredo de Fátima, tempos depois, entendi o porque quando, ao irmos numa boite com amigos dele e já o namorando, um desses amigos (também surdo e extremamente pegável) começou a trocar olhares com outro cara que, ao chegar nele e constatar sua surdez, deu-lhe meia dúzia de beijos para fazer tabela e, alegando o chamado da natureza, embarafustou clube adentro para nunca mais voltar. Fiquei chocado mas o rapaz que levou o fora assimilou bem e ainda me disse que era comum, que ele estava mais do que acostumado, eu não e ainda acho que foi uma das pires cenas que já vi.

Voltando a vaca surda, nos cumprimentamos e começamos a conversar ou o mais próximo disso dado que sou analfabeto de Libras e, encurtando, acabamos um na boca do outro, surdos são ótimos amantes, não perdem tempo com palavras ou aparências, dão valor ao toque e intuem tudo o que nós, falantes, dissimulamos entre as frases tornado o ato de ficar, gostar e amar algo complexo, jogatina e um absurdo de incompetência. Ao final, ele precisava ir e me disse que estaria no Hopi Hari no dia seguinte, nos despedimos calorosamente. Fiquei ansiando pelo dia seguinte, queria ir com ele mas respondeu já ter marcado com amigos e que nos encontraríamos lá.

Eu no parque louco atrás do moço, besta, não tinha marcado um lugar para nos encontrarmos e fiquei caçando o lugar todo por ele quando, finalmente, o vejo saindo do mesmo brinquedo em que eu acabar de andar. Para meu infortúnio, ele fez que não me viu quando tenho certeza de que o fez pois passei bem à sua frente mas, como nem mesmo fez menção de minha existência, esfriei meus ânimos e os cobri com desgosto deixando que o resto do dia se acabasse num amargo e triste fim.

Passou-se um tempo e nos reencontramos, dessa vez ele me viu. Veio falar comigo, desculpou-se, à época estava num relacionamento complicado e fora um erro alimentar minhas esperanças, estava livre agora e queria muito ficar comigo. Desacreditei, expus meus temores e rancores, ele ouviu calado (claro), só podia fazer mais desculpas as quais, ao fim de alguns drinks, aceitei. Se há fato mais verídico do que relacionamentos serem loterias, desconheço; porém, falhamos ao ler os sinais de que o prêmio se acabou e que precisamos voltar ao jogo.

Engatamos a coisa e conheci os amigos com quem ele dividia um apartamento, todos não surdos e muito simpáticos. Nesse dia, me contou já ter sido casado e ter um filho o que para mim nada mudou. Fomos nos afeiçoando, o sexo era fora do comum, fodemos com a boca, não com a genitália, a profusão de ais/uis e demais expressões inerentes ao sexo inexistiam ali dando lugar a um silêncio pornográfico e um sexo mudo mas arrisco dizer mais sentido do que o gritado entre unhas e dentes.

Conheci sua ex-mulher e seu filho, todos eram simpáticos e cheguei a apresentá-lo aos amigos pois a coisa ia séria. Fomos à uma festa de aniversário de um amigo dele e esta penso ter sido uma das experiências mais estranhas que já passei. Todos eram surdos, apenas eu ouvia; era uma festa, havia bebida, comida, pessoas conversando (em Libras, óbvio eu era o único que ouvia) mas não havia música e para que haveria? Porém, engana-se quem acha que eles por não ouvir, não sentem a música, quando íamos a boites, ele preferia ficar o mais próximo possível das caixas de som pois assim poderia sentir as vibrações da música e ‘ouví-la’ o que deve ter me custado alguns decibéis da audição.

Nessa festa, lembro do ar de surpresa quando ele me apresentou como seu namorado dizendo que eu escutava, incrédulos, me olhavam com um misto de surpresa e inveja do amigo que conseguira quebrar a barreira do som. Tudo ia bem e, como de praxe, tão bem que começou a azedar. Não emito julgamentos, não desejo isso para mim e nem tenho outorgado o direito de apontar o certo ou errado, cada um deve saber para si tais coisas e cuidar de sua vida, fosse sempre assim, o mundo seria um local agradável.

Não sei o que houve, pessoas são estranhas e reagem de formas absurdas ante os problemas da vida. Ele, vim a saber depois, passou a não cumprir suas obrigações para com os amigos que dividia moradia, descobri que seu filho usava por fraldas sacos de supermercado e que sua mulher ameaçava com a Justiça e guarda do filho, tudo culminou com uma ligação de seus amigos dizendo que ele sumira da noite para o dia levando o que podia do apartamento incluso alguma grana dos moradores e pertences menores dos mesmos.

Desabei, creio mesmo que seus amigos meio que desconfiaram se eu não o acobertava mas, acho que fui sincero o suficiente quando os encontrei e puderam ler em minha face a desolação do amor quebrado e convertido em drama. Não havia explicação possível ou plausível e as revelações do parágrafo acima se deram quando estes amigos dele me confrontaram. Saí de lá desolado e com a promessa de que caso ele fizesse contato, os avisaria pois eles pensavam mesmo em por a policia atrás dele se tivessem o cheiro de seu paradeiro.

Cai em mim e notei que além do desfalque na casa, sofrera eu um: relógio que gostava muito e que antes de sua evaporação lhe emprestara com juras de amor. Recriminei minha inocência sentimentalóide e assumi o prejuízo. Dias se passaram e recebo uma ligação dele (através de um amigo), estava no sul do país e viria a SP, queria me ver, devolver o relógio. Hesitei, não queria mais vê-lo, que ficasse com as horas que me roubara, as marcasse no objeto furtado mas, resquícios do amor falaram mais alto e cedi marcando dia e hora para encontrá-lo e tentar por senso em naquela comédia toda errada.

Fui ao encontro, não avisei aos amigos que o veria a pedido dele mesmo pois lhe dissera que lhe poriam a ferros se o vissem. Nos encontramos em Santana, rapidamente, não me lembro se houve alguma explicação, se houve a sublimei com o fato de que não teríamos mais nada. Acho que houve um pedido de desculpas, o relógio me foi devolvido e antes de nos despedirmos lembro-me de lhe ter dito que o gostava demais.

Acho que ele também pois seu ar era de devastação, não precisava ser surdo para fazer o silencio que seguiu. Ele foi embora e eu segui meu rumo, acabei falando aos amigos enganados que o vira o que serviu apenas para cortar nossos laços já frágeis, não acreditaram ou aceitarem que não os tivesse avisado sobre o encontro.

Nunca mais o vi.





16 de dez. de 2020

até que ela nos separe...ou una a todos...

 



Mais dia, ou menos dele, vamos todos bater as contas com a ceifadora. Fato.


É de nossa cultura, genético arrisco, vendermos tudo e todos a quem for para nos comprar aqui mais algumas horas, unhas e dentes atracados a isso que chamamos vida, essa bosta colorida que nos cega os sentidos e empanturra mais e mais e, mesmo assim, não fechamos a boca nem fazemos menção de largar o prato ainda que este possa se mostrar vazio ou, se você é desses, meio cheio, tomarnocu, viu?


Nem eu quero sair dessa pra melhor, meu chapa! E olha que nem creio assim nos portões de San Pietro ou nas labaredas sem fim de Mefistófeles ainda que acredite em conceitos meio que vagos de bem/mal. Mas, o peso que a morte nos faz carregar é demasiado, vai longe mesmo do valor da vida e nos faz esquecê-lo pensando apenas na hora final seja de forma direta ou indireta.


Trabalho quase utópico esse de nos fazer encarar a hora ruim com mais tranquilidade e adotar o fim como parte do começo mas, um dia há que se conseguir. Eu tento cá, do meu jeito, uns dias mais, outros menos e vou levando assim sabendo que cada dia deixado para trás e mais a frente para me deixar frente a frente com a juíza final. Nem sei como vou lhe olhar nos olhos descarnados, mais um problema, pintamos a morte de forma sempre horrenda e grotesca, embutimos medo em sua concepção e imagem sendo que nem mesmo temos como saber como ela é, se é e como vem nos buscar mas, como ante o desconhecido e mais fácil satanizar do que harmonizar, vamos indo aí com esse medo genético e hereditário de morar a sete palmos nesse último latifúndio (a parte que nos cabe de fato, ninguém tasca!).


Sempre fui avesso aos rituais mortuários, velórios e afins sempre me pareceram um séquito de sofrimento engajado em lhe fazer não esquecer a dor e não lhe deixar esquecer de seu destino certo mas, como todo resto de nossas vidas, é uma fase e como tal precisa de seus ritos de passagem e assimilação coisa que estamos paulatinamente ‘matando’ (não resisti) quando cremamos os corpos de forma rápida ou os enterramos com cada vez mais celeridade, impessoalidade e de forma a acabar com tudo aquilo o quanto antes o que é compreensível pois queremos é mesmo escapar da dor o mais breve possível.


Não podemos ignorar a morte mas, podemos meio que apagar sua passagem e deixá-la com área de parte da paisagem urbana desonerando seu caráter definitivo. Assim, cremamos os corpos para não termos mais que ir aos cemitérios nos lembrar menos dos mortos e mais de que nós mesmos vamos estar ali um dia, fazemos túmulos planos, esteticamente modernos e que mais parecem lajotas em um calçadão do que jazigos grandiosos, vá lá, opulência pura para deixar claro que nem a morte pode quebrar a diferença de classes mas, deixamos tudo com um grau de asceticismo que beira o esquecimento.


Nossa memória dos mortos vai, no máximo, até o sétimo dia e o que antes era prática comum, hoje se limita a uma pequena parte do jornal onde se pode ler as odes ao que se foram, costume antigo e, creio que, ainda perpetuado por um pequeno numero de pessoas ainda apegadas às tradições mais clássicas, desconsidero o que se faz como homenagem póstuma em redes sociais, acho macabro pois fica lá é pra sempre, como se o morto pudesse curtir ou comentar de um facebook do além, cruz credo! Ao menos no jornal é naquele dia e pronto, acabou!


Antes, velava-se os defuntos em casa pois eram familiares e lugar deles é em casa, onde todos se reuniam para prestar as ultima homenagens ao falecido e acabava mesmo com ares de festa mortuária o que entendo ser legal pois antes comemorar o que houve de bom com aquele que se foi do que lamentar sua agora eterna ausência fazendo da vida dos que ficam um inferno oco e sem gosto. Claro, fácil falar, fazer é que são elas mas, enfim, apressamos tudo na vida sem saber que isso só nos põe mais próximo das mãos da morte e acabamos assim apressando ela em seu rituais para que passe logo e possamos colocar terra sobre ela, abafando os sentimentos apenas para cobri-los depois com camadas e mais camadas de antidepressivos.


Lidar com a morte, clichê, faz parte da vida, seu moço! Esse ritual todo, ainda que doloroso pois nos arrancou alguém que gostávamos, precisa ter seu tempo respeitado e processado de acordo, sem pressa, sem velocidade para que acabe logo, fuga dos momentos ruins como se vida fosse feita apenas de momentos doces. Do jeito que a coisa vai, acabaremos tendo é a morte sem os mortos.


Não quero morrer que não sou tatu mas, quando vier a hora, quero mais é que os que ficam façam uma festa e bebam meu corpo oco, festejam o que vivemos juntos e não o que não viveremos mais, quero sim os choros dos que me amam mas não pela minha ausência e sim pela doce lembrança de que passei por suas vidas, as marquei de alguma forma e os fiz feliz ainda que por míseros segundos.


Façam isso por mim, eu mesmo estarei é morto e disso tudo pouco vou aproveitar mesmo.


15 de dez. de 2020

do que se pode ou não tocar e sentir (as mesmas coisas?)

 



Existem coisas palpáveis, tangíveis, possíveis, comungando realidade ainda que esta seja algo por demais subjetiva posto que cada um a experimenta com base em seus próprios valores, bagagem, vivencia, sentido e sentimento (não confundir); o real daqui pode ser imaginário aí e vale o oposto, oxalá fossemos todos menos real e mais onírico, feitos de pó de estrela, luz morta-viva de uma galáxia distante, renascida em cada gene mudo que não grita por não deixarmos que o faça e assim, abrir as portas de um mundo mais de gente e menos pseudo-pessoas.

E existe isso, essa coisa cegamudasurda que descarece desses sentidos cinco para fazer-se aqui, algo maior e que depende tanto de atos menores, simples, ínfimos, micro, nano. Mas ímãs que somos, ao invés de grudar o que presta, atuamos nos polos opostos afastando o que se deve e aproximando o que não presta, sina certa da raça, buscar o que sempre esteve na mão achando-o anos-luz distante apenas para na hora sem volta arreganhar bocas e olhos para a verdade quando ela ri de nossa cara ante o tempo perdido.

Mudar? Fácil demais, sim, é, basta pouco, um gesto, um ato(mo), um segundo, milésimo, um oi, olá, te amo, saudades e quero te ver e, um pouco mais de esforço, nada demais, só um pouco mais de boa vontade, de querer mesmo, e essas palavras tomam carne, membros e troncos, abraços, beijos, mãos e olhos. Então, sugiro que no ano próximo que de novo só tem o nome, façamos por merecer essas palavras em vida, em hóstia sacramentada, louvada, transubstanciada, metafisicadeada, empurrando goela abaixo de alguns dos 365 dias modorrentos que seguirão a certeza de que amamos quem nos ama e que desejamos mais proximidade dos que estimamos.

Deixemos as palavras para os léxicos, para os políticos, para as novelas e para nós escritores que sabemos seu real valor, que elas sejam veiculo de trazer para cá, para dentro, para os (a)braços seus, meus, nossos e vossos que são amigos amados e que as lembranças trazem cada vez que conclamadas um gosto doce na boca, um ar novo ao sangue, um olhar de dias melhores, de tempos mais lindos, mais de tudo ainda que seja do mesmo se esse mesmo for com as pessoas certas; não é tédio, nem aborrecido quando à volta estamos com quem conta.

Saiamos mais de nossos trinômios ou equações sem solução para buscar um no outro o ‘x’ da questão, em nós mesmos pouco resolve se a adição depende de mais um e nunca menos um ainda que preciso é ser inteiro mas esse inteiro só faz ser quando agregado aos demais. Por isso mesmo quero mais de todos vocês no ano que vem, vem vindo, chegando, sorrateiro, matreiro, esperto, de faca na mão para dar o golpe de misericórdia no agonizante, cansado, de guerra e nós de batalha.

Prometer? Nunca, não vou pois promessa é divida e dessas já estou cheio das que nunca paguei mas, fica o esforço cimentado de que arrancarei a pele dos ossos para ser mais a vocês e que vocês sejam mais a mim, sem cobrar nada que amizade não é agiota nem cheque especial ou cartão. Tudo se vai de uma forma muito fácil e rápida, meus caros, olho para o lado e vejo gente que não é mais ou que foi um dia e hoje é menos que uma sombra platonesca na vida enquanto eu, do lado de cá da caverna, não sei como trazer de volta para a vida iluminada aqui fora e, nesses momentos, em fato, não há que se fazer muito além de estender a mão, ombro e dar a quem precisa paciência, amor, um afago e aquele sorriso legendado ‘eu sei, eu sei’.

Fantoches de nós mesmos, cortemos as cordas e apontando o dedo ao pupeteiro feito aquele passarinho gritemos ‘Nunca mais!’. Antes que a terra e o universo nos repossua, sejamos felizes, é simples, fácil, nada custa e nem dá assim tanto trabalho, nós é que gostamos de complicar.

14 de dez. de 2020

d(ê) passagem

 


A viagem é feita de tempo onde os caminhos se cruzam de forma que nos parece aleatória mas, em verdade, tecem tramas delicadas entre nossas vidas engendrando momentos que perduram em sorrisos leves e olhares vagos, daqueles perdidos ao longe na ânsia de trazer de volta aquele tesouro que foi e que vive apenas mornamente acolhido em nossas lembranças.


Talvez o alicerce seja feito dos sonhos que morreram, não dos que nem mesmo deram o primeiro ar no mundo, mas daqueles que o fizeram e feito chama mágica arderam numa supernova, os melhores pois a beleza decaí e restam apenas os cacos para rememorar seus feitos gloriosos. Passamos o resto e o fim da vida tentando colar de volta esses pequenos pedaços de luz, vã tentativa de recompor o caleidoscópio original, ficamos mirando luzes distorcidas tentando identificar nelas aquele amor há tanto ido, aqueles dias perfeitos, aqueles momentos saídos do forno.


Não, esses que ardem vezes mais forte e se consomem em menos da metade do tempo são os que efetivamente deixam as marcas, as rugas, as cicatrizes que mesmo depois de curadas ainda formigam emulando o ferimento original. Se temos algo que deve fenecer são esses sonhos, melhor que vê-los viver para tornarem-se paródias de si e de nós, velemos então esses mortos e os bebamos, que a angústia não seja de perdê-los, mas de tê-los sentido tanto e, sob a pele, ter-nos imiscuído deles.


Eu temo o meu caminho, principalmente quando me desvio dele não por medo de me perder, mas pela sensação apavorante de conhecer outros, onde poderiam me levar e retornar ao meu velho conhecido eu sentindo que seus buracos são mais fundos do que pensei e pior, foram cavados por mim. A insatisfação gerada gesta em meu ventre alimentada pelos lenitivos artificiais, até quando, eu não sei.


Quando voltei ao meu caminho hoje, havia um mal-estar, uma sensação ruim e percebi que havia enterrado parte de meus sonhos, entristeci e ainda me encontro, julgo, velando, mas de rabo de olho eu vejo que o rei morto já possui a seu lado rei posto, aguardando respeitosamente que se desça ao solo o falecido para sentar em mim feito trono e demandar que faça o que devo fazer, seja o que tenho de ser e siga onde devo ir.


E então, aquele sorriso delicado que falei no começo aparece, converte o choro de triste em saudoso e move meus olhos para o horizonte, aquele lugar que insiste em me enviar sonhos e mais sonhos reis, queira eu ou não.


Nesse quesito meu querer vale quase nada, me resta ser súdito, fazer reverência e dizer 'Amém!'.

11 de dez. de 2020

só por hoje...

 



Só por hoje quero que você me respeite.

Quero que não faça aquelas piadinhas sem graça e estúpidas sobre gays, que não use o diminutivo para enfatizar inferioridade ou fraqueza, que não me associe aos estereótipos distorcidos que a sociedade e a mídia não cansam de reforçar todos os dias.

Quero que você deixe de lado sua religião e me trate realmente como seu irmão, que você não use a palavra opção pois não optei por nada sou assim desde o útero, desde sempre. Quero que você pare de me odiar e por vinte e quatro horas ao menos tente me amar, quero que você pare de me julgar e passe a me apoiar, quero que você para de me agredir e passe a me abraçar, quero que você me trate como gostaria de ser tratado.

Quero que você abra sua mente e seu coração para a verdade universal de que somos tão pequenos e tão raros que nada justifica gastarmos o pouco tempo que temos demolindo um ao outro, caçando um ao outro, denegrindo um ao outro, matando um ao outro. Apenas por um dia poderíamos tentar viver em paz.

Quero que você abrace a diferença e esqueça a igualdade, não somos iguais, jamais seremos e isso é bom, é saudável e devemos celebrar. Não afaste de si o que não entende pois já entendemos tão pouco, não feche as portas na cara da vida, não promova uma linha reta quando somos feitos de caminhos tortuosos que se cruzam inúmeras vezes, seguir assim é solitário e nenhum de nós foi feito para andar sozinho.

Quero que você enxergue além das cores do arco-íris, entre as sete cores existem tantos outros tons que fogem a nossa percepção, tantos amores que escapam nossa afeição, o olho humano foi condicionado a não perceber tudo isso mas nosso espírito possui sim essa capacidade, nós apenas o deixamos nas sombras brincando com chamas bruxuleantes, a luz cega e machuca mas se a deixamos entrar não restará um canto que ela não banhe e traga para si.

Quero que você me dê sua mão, não precisa dizer nada, basta me dar a mão e me olhar nos olhos, eu entenderei. Quero que você veja além do sexo e de sua expressão, que não deixe a carne ditar como tratar esse irmão, que não deixe o leito ser a moeda que define nossa transação, que não deixe a genitália dizer o que deve fazer o coração, que entenda que meu sangue tem o mesmo tom vermelho que o seu e meus cortes sangram exatamente como os que lhe farão.

Quero que você tenha orgulho por ser meu amigo, meu pai, minha mãe, meu irmão, por trabalhar comigo, por estudar comigo, por estar ao meu lado, por viver comigo, por respirar o mesmo ar, por bebermos a mesma água, por estarmos aqui e agora onde tudo é possível e tudo pode acontecer, que chance de fazermos o bem e sermos mais de nós mesmos e podermos olhar um para o outro e saber que está tudo bem, que o futuro é um campo aberto e as sementes estão em nossas mãos.

Só por hoje, que me diz? Vamos tentar com afinco, são apenas vinte e quatro horas, passa rápido e quem sabe amanhã você pode querer mais vinte e quatro e depois disso mais outras vinte e quatro até não precisemos mais dos relógios para medir o tempo que precisamos nos amar, entender e respeitar.

Mas se não der, tudo bem, eu entendo, não se preocupe. Guardarei comigo estas vinte e quatro horas com carinho confiante de que um dia poderemos usá-las de novo.

10 de dez. de 2020

sou gay mas de família de bem

 





Lendo isto aqui me fez pensar nos gays conservadores, quem são, de onde vem, como vivem, se reproduzem.

Não que os homossexuais (ou qualquer pessoa LGBTQ) não possam identificar-se ou simpatizar com ideias e modelos conservadores, da mesma forma que o amor deve ser livre, as expressões e afinidades políticas também devem ser porem o apoio a políticos conservadores como Bolsonaro e afins só consigo digerir e chegar a algum tipo de entendimento se pressupor que essa pessoa LGBT possui sérios problemas de aceitação quanto a sua orientação sexual e/ou identidade de gênero ou então sofrer de severos distúrbios psíquicos.

Insisto em dizer que não acho errado ou condenável uma pessoa LGBT ‘de direita’ ou conservadora mesmo que, pessoalmente, entenda esse tipo de atitude como no mínimo contraditória, pois a população LGBT possui ideais e história completamente diletantes dos movimentos conservadores os quais sempre trataram a estes como minoria que deve ser mantida sob o mais rígido controle e, em sendo possível, afastado do convívio social seja ela familiar ou como beneficiário de politicas sociais inclusivas e aplicáveis ao resto da sociedade e população.

Aparentemente, estes ‘gays conservadores’ enxergam neste tipo de político pessoas corretas, honestas e de retidão moral considerando o movimento LGBT como extremistas e dispostos apenas à promiscuidade, lascívia e imposição de seu ‘modo de vida’ a todas as camadas da sociedade, ou seja, trocaram as bolas e confundem moral com política o que é receita certa para desandar qualquer coisa.

Alguns desses ‘conservadores’ atestam mesmo que a vida sexual de cada um é assunto que deve ficar restrito a alcova e não discutido abertamente o que é, lamento dizer, o mesmo que devolver ao armário e trancar a sete chaves tudo que os movimentos LGBT lograram conquistar sem falar no fato lamentável de que isolar a sexualidade deixando-a restrita ao foro íntimo é viver uma mentira, um engodo, uma farsa no melhor estilo ‘não pergunte, não fale’ como se fosse simplesmente ligar/desligar uma chave.

Entendo isto (e esta é minha opinião, fique à vontade para discordar) como um estado de negação absoluta. Como podemos tratar a sexualidade humana compartimentalizando a ela quando é parte integrante do que somos e vivemos? Ou somos LGBT apenas em alguns momentos, em alguns lugares e dentro de nossos quartos? Isso não é liberdade, é escravidão e não aceitação da sexualidade com a qual nascemos, é empoderar esses políticos que já deixaram inúmeras vezes explícitas suas opiniões sobre a população LGBT e não adianta argumentar que eles se retrataram (o que não tenho conhecimento de ter efetivamente ocorrido e, se ocorreu, não foi por constatar o absurdo que fez mas muito provavelmente forçado por alguma ação judicial pairando sob suas cabeças) pois não se trata de ter cometido um erro ou deslize mas pessoas que trataram o que somos como escória, doença e lixo social.

Ainda na mesma reportagem, esses mesmos apoiadores dizem que se identificam com estes políticos pois eles os tratam como ‘normais’, acho que aí temos algo importante a ser considerado, essa necessidade de ser tratado como normal, será que essas pessoas ainda entendem sua orientação sexual como algo nocivo e que não deve ser vivido em sua plenitude? Ainda estariam buscando encaixar-se no que a sociedade entende e aceita como normal? Engraçado como a palavra promiscuidade é usada no texto, quase com nojo e como se essa fosse a única qualidade que se possa identificar com os LGBT e que é sim um trunfo nosso pois onde leem promiscuidade (que não é direito reservado dos LGBT, tenha certeza) deveriam ler liberdade sexual. Nós LGBT sempre soubemos viver de forma muito mais livre, descomplicada e vívida nossa vida sexual e sexualidade e isso é extremamente agressivo e transgressor aos olhos da sociedade pois a liberdade sexual implica numa subversão de uma ordem normativa e previamente estabelecida com séculos de reforço religioso e social dificílimos de quebrar.

É triste que nos tempos em que vivemos, quando tantos avanços importantes para a população LGBT dançam na corda bamba, ver pessoas que parecem simplesmente ter congelado no tempo e completamente cegas para o perigo que não apenas os direitos civis LGBT correm, mas todos os direitos e liberdades em si ante a teocracia que se acerca de todos nós cada vez mais a cada dia. A solução não é, em busca de um horizonte mais tranquilo, jogar nas mãos de factoides e vomitadores de discurso de ódio disfarçado de moral e bons costumes o futuro de nossa sociedade mas de entendermos que essas pessoas são oportunistas sem agenda que estão ocupando o vácuo politico que vivemos acenando como salvadores da pátria.

Seria muito bom neste momento se todos nós déssemos uma olhadela para trás na história e quem sabe pedir conselho ao povo alemão que deve estar lamentando profundamente esse péssimo hábito da história em se repetir.

9 de dez. de 2020

ângulos

 


Eu tenho incongruências e dentro delas idiossincrasias, bipolaridades e desfalques pessoais que me fazem correr atrás do roubo para identificar a mim como autor do delito, responsável pela captura ainda que me evada de mim com sucesso digno de filme e, por fim, juiz e executor da sentença. 

Depois fico ali olhando para as barras da cela de mim vendo aquele outro que sou do lado de fora repetir todo o processo até que a cela fique tão lotada de mim que, ao adentrar o último mea culpa, ela simplesmente explode e todos eu ficam livres para perambular novamente pelas alamedas e vielas de mim mesmo (até que o processo todo se repita, preso num loop temporal digno das teorias mais absurdas).

Há um estranhamento constante, um não encaixar, não falta de empatia mas de simpatia e são conceitos muito diferentes, creia-me. Falta-me a segunda diversas vezes e não por alguma patologia mas apenas por não ter realmente dilatação escrotal suficiente para deglutir certos comportamentos, temas, assuntos, atitudes e convenções que a grande maioria assume como normais ou comuns ao bom convívio. Talvez o entendimento de tal quesito seja diametralmente oposto para mim e os demais o que, se não é adequado (aos outros), não me parece ruim (a meus olhos).

Assim, declinei educadamente muitos convites para confraternizar com pessoas recebendo de quem me fez o convite presencialmente, um átimo de olhar e ar surpreso, as entrelinhas perguntavam por que mas o que saiu foi um ‘ahhhh’ disfarçado de decepção e talvez exigência de justificativas já que minha recusa foi lacônica, sem recorrer a grandes elaborações ou figuras de linguagem. Pensando após, ainda cheguei a ponderar se deveria, pelo bem do status quo, ter aceito mas ir de boa vontade a algo como festa temática (Baile no Havaí, trajes floridos compulsórios – quem me conhece já realizou a ojeriza que tal cenário me causou) com pessoas que de mim sabem nada e cujo convívio diário é tão profundo quanto uma poça d’água, me parece algo simulado senão dissimulado de ambas as partes.

Como tenho essas versões de mim, passamos a discutir o assunto ponderando sobre os prós e contras, sim e não e no final nos dividimos em dois grupos distintos: um de consciência social e outro absolutamente avesso a ela. O primeiro grupo diz que deveríamos ir, integrar, enturmar, simpatizar, animar, desfazer a impressão de que somos reclusos e pouco sociáveis enquanto o segundo prega o oposto disso, que não há qualquer ângulo comum possível com essas pessoas, que será um exercício de paciência desnecessário já que são pessoas que representam nada para mim o que, confesso em minha bipolaridade, me assustar afinal são pessoas, como não representam nada?

Façamos então um adendo breve aqui: o fato de serem pessoas representa algo, obviamente! Porém, considerando o conjunto de valores, ideias e conceitos que levo dentro de mim essa representatividade desfaz-se no ar pois não há aderência entre nós, não há eixo comum ou área destacada.Veja, não digo que lhes desgosto, sou avesso ou dedico desafeto, apenas que não há representatividade e assim, não há congruência. Alguns podem retrucar que tal coisa carece de convivência e tempo e que se não existe o movimento de um lado dificilmente se poderá encontrar do outro mas, para que tal movimento existe deve haver uma predisposição inicial que motive a quebra da inércia e, por definição, todos os corpos tendem a permanecer e conservar a suas.

Ser humano pode ser assim cheio de falhas e talvez nem mesmo seja adulto tal comportamento mas certamente é meu, autêntico e maduro o suficiente para a esta que é a parte que me cabe neste latifúndio.

8 de dez. de 2020

para servir e proteger...

 



Creio que todos tenham visto esse caso aqui.

Antes, deixo claro que não estou absolutamente defendendo qualquer comportamento violento ou abusivo da autoridade policial antes apenas encarando a profissão de PM como qualquer outra com seus problemas e dificuldades ante uma conjuntura social complexa e insana que acaba cobrando de todos nós um preço alto demais.

A relação que temos com a polícia é uma relação de amor e ódio, precisamos dela e ao mesmo tempo a execramos, elogiamos quando nos atende bem e ofendemos quando age mal, detestamos precisar dela mas tememos não tê-la por perto e esse tipo de sentimento e comportamento paradoxal vai de um extremo a outro conforme a classe social em que vivemos, brancos classe média tem um tipo de visão e sentimento, brancos classe alta outro e pobres, negros e periféricos outra totalmente diferente e, a grosso modo, seria respectivamente algo assim: os primeiros querem proteção e segurança mas acham que ela exagera e que o problema é estrutural discutindo do alto de seu chão de taco e MPB descolada, os segundos acham que a PM é tipo o novo capitão do mato, feitor, tem de manter os pobres e demais longe e sob controle, sua milícia pessoal sempre disponível a um telefonema para algum deputado ou governante e os últimos, só sabem que ao ver uma viatura existe uma chance grande de presos, agredidos ou mortos.

Essa relação complicada é herança da ditadura, as polícias eram braços da ditadura e, depois da abertura, seguiram impregnadas dos refugos do regime que, se não estão mais aí, deixaram as corporações abastecidas de suas ideias e comportamento que parecem ter sido inscritos em pedra sagrada quando não tem uma relação espúria com o crime e tornando-se algo ainda pior e mais perigoso, as milícias que estão devorando sem medo o RJ e começando a estender seus dedos para outros estados.

Mas não é só isso, uma profissão como PM é um trabalho ingrato além de extremamente perigoso, todos nós quando saímos de casa para trabalhar ou seja o que for, temos uma chance de não voltar vivos afinal, a vida é uma sacola plástica jogada ao vento mas, um policial tem essa chance aumentada de forma exponencial e isso para ganhar um salário que mal paga as contas do mês. Como pedir que essa pessoa entregue sua vida diariamente se ela mal consegue sobreviver dignamente? Da mesa forma que os professores são pouco valorizados e deles se espera muito, fazemos o mesmo com a polícia sendo que eles esperamos que morram para manter a lei e a ordem mesmo quando a lei e ordem parecem algo meio sem sentido.

Temos um perigo alto aqui não apenas por demandarmos que pessoas mal preparadas e mal pagas saiam armadas pelas ruas para zelar pela segurança pública mas por entendermos que seus excessos e truculência são justificados numa sociedade que só entende a linguagem da porrada, o malandro é sempre o outro e ele precisa ser detido e colocado atrás das grades mas, as mensagens que enviamos aos agentes da lei são dúbias, mate mas seja humano, bata mas seja doce, afaste o perigo mas o abrace, seja humano mas agressivo, zele por mim mas não espere que eu zele por você e, se você exagerar ou ultrapassar algum limite, eu vou te condenar mas lá no fundo eu te entendo e apoio, como fazer uma relação dessas funcionar?

Nossa relação com uma corporação que deveria atuar como ajudante de manutenção de algum tipo de tecido social é tóxica, tomamos as partes pelo todo e enxergamos na polícia algo a temer e crucificar porque são bestas fardados que o Estado usa para manter a ordem enquanto outros exaltam que a mesma polícia anda matando pouco e deveria mais é sentar o pau em vagabundo então, como essas pessoas devem se comportar se não está claro o que se espera delas? Sem contar que, socialmente, elas estão lutando para viver de forma digna, não tem estrutura física ou emocional para lidar com trabalho de altos níveis de estresse, tem a sociedade e lhe cobrar coisas distintas, não pode ser feliz em seu trabalho e tem de lidar com o medo da morte, que a todos nós parece algo distante, de forma muito próxima e quase certa?

Esse comportamento do PM da matéria acima não é então surpresa, é sim o normal, o esperado de uma pessoa que não tem claro seu papel na sociedade, não sabe ao certo como desempenhá-lo para contento de todos, não recebe o suficiente para isso, não tem preparo ou amparo para isso e acaba apenas reproduzindo o comportamento que essa mesma sociedade espera que ele tenha apenas para, em seguida, ser condenado por ter apenas correspondido ao que se esperava dele.

Antes de condenar a PM como um tipo de mal maior, deveríamos apontar nossos dedos para nós mesmos porque, se a PM é um monstro fomos nós seus criadores, eles não surgiram do nada e se há truculência, violência, exageros e abusos não é por que eles são sádicos dementes, podem até ser alguns deles que são apenas humanos mas eles refletem apenas o nosso comportamento enquanto sociedade.

7 de dez. de 2020

tic tac tic tac

 


Não precisa ser vidente nem nada para entender que na atual situação, isto vai acontecer.

E não se trata apenas da falta de coordenação e bom senso dos governantes sejam eles municipais, estaduais ou federais sendo esta última esfera a pior vide seu negacionismo e insistência em considerar a pandemia como algo menor e que não precisa de tanto alarde já que admitir o oposto seria ir contra sua base de apoiadores digitais e o capitão jamais vai desdizer algo que disse e passar por covarde ou mentiroso pouco importando quantos cadáveres terá de usar para isso.

Há um descaso generalizado, tanto das autoridades como da sociedade, o medo saiu e entrou a sandice, as festas clandestinas pululam com preços de variam de $500 a mais de $1500 ou seja, apenas os abastados podem ir e podem se dar a luxo de pegar o COVID pois, caso infectados, terão o melhor atendimento e morte que o dinheiro pode comprar mas, não são apenas as festas ricas que proliferam, as festas de rua e para quem não pode pagar pulseirinha de ouro também acontecem sem medo ou freio e quem frequenta essas, não poderá chegar de SUV no Einstein para ficar no apartamento ou UTI de última geração.

Sexta passada, passando pelo centro na volta do trabalho, parecia uma sexta como outra qualquer, sem vírus, sem morte, sem pandemia que não fosse alcoólica. Bares abertos, música alta, e muita, mas muita gente dançando, fumando, bebendo e achando que máscara é coisa só para o carnaval. Geral perdeu o medo, cagou para o vírus e o aumento de casos que está batendo na porta, o comércio e empresariado combalidos não querem nem ouvir falar de lockdown de olho no fim de ano que promete algum tipo de alívio para os prejuízos que já amargam esse ano e a população quer algum tipo de consolo pelo menos no período de festas mesmo que em Janeiro todos tenham de chorar seus mortos e entupir os cemitérios.

A falta de pulso e organização dos governos casada com a falta de bom senso social estão preparando um cenário sombrio para o início de 2021, esse que a gente está torcendo para ser melhor mas, ainda que alguma vacina vença os obstáculos ideológicos de um governo que não pensa, até algum tipo de estrutura ser montada para vacinação em massa, muita gente vai estar a sete palmos pagando pelo desrespeito e despreparo que temos agora.

A pandemia não matou apenas pessoas, matou nosso bom senso, empatia e sentimento de sociedade, rimos da cara dela como quem ri de uma lenda urbana, penas que essa lenda urbana não tem nada de lenda e não gosta de quem ri de sua cara, mata  mesmo, sem dó nem piedade.

Feliz vírus novo!

4 de dez. de 2020

vazio da frente

 


O apartamento da frente fora desocupado há poucos dias, podia ver as paredes de um branco cansado, nuas, os buracos de pregos feito estigmas relembrando quadros mortos ali antes pendurados, a janela agora sem cortinas, selada, revelando o que antes era apenas vislumbrado.

A porta do quarto escancarada mostrando um espelho deixado para trás, provável que não pertencesse aos últimos moradores e nem mesmo aos que antes deles vieram, espelho é coisa que se leva consigo, carrega parte da alma e da soberba humana, coisas que costumeiramente não se abandonam em qualquer lugar. De certo refletia outros tempos e pessoas que impediam os vindos depois de criar algum vínculo com a imagem que tentavam refletir e assim, o deixavam ali como guardião emérito.

A janela do quarto, vista parcialmente, despida de qualquer roupa deixava ver o outro lado do prédio, como se aquele metro quadrado fosse algum tipo de universo paralelo onde se podia existir em algum tipo de vazio. Esta também residia fechada, as do banheiro, pequenas, também e se as da área diminuta de serviço assim fossem, teriam ali dentro ficado trancados um sem fim de frases, risos, choros, suspiros, amores, dissabores, alegrias e tristezas vagando pelos cômodos a esmo, esbarrando uns nos outros esperando obter algum sentido ou resposta que talvez jamais viesse.

Quem sabe futuros moradores poderiam sentir no ar esses resto mortais de conversas e sentimentos passados, atribuir ao mofo e assentar residência ali sem saber de tudo que ali já fora proferido e feito. As paredes poderiam ganhar um branco mais alvo, os buracos de pregos novos moradores e aquele bando de frases soltas enclausuradas novas bocas por onde pudessem entrar e aguardar bem quietinhos o momento de voltarem ao mundo fosse para agradar ou causar estrago.

Pensou mesmo que houvesse algum tipo de má-fé embutida na moradia já que lhe parecia que os que ali tentavam fixar residência tinham uma permanência extremamente efêmera mas, se há esse tipo de coisa, cria mais que fosse fruto da ação humana pura e estúpida que devido a poderes sobrenaturais, os espíritos deveriam ter coisas mais importantes e agradáveis a fazer que perturbar os vivos já que deles prescindiam, haviam livrado-se deste incômodo, podiam vagar pelo universo, não careciam amaldiçoar os vivos que o faziam muito bem por si mesmos.

Suspirou, profundamente. Pensou se um dia ali onde residia seria uma réplica do apartamento vazio em frente, sabia que esse dia chegaria e o aceitaria calma e docemente ainda que apegado a um certo sentimento de posse mas, sabia que o corpo que usava, assim como o imóvel, eram apenas arrendamentos com ilusão de posse, chegada a hora, passariam a outros que necessitavam mais deles, era assim a coisa toda.

Desejou intimamente sorte a quem quer que fosse o novo morador do apartamento vazio, fosse o dele ou aquele à sua frente e foi lá cuidar de sua vida emprestada.

Era o que podia fazer.

3 de dez. de 2020

sete dias

 



SEGUNDA-FEIRA


É saudade então, algo que já vi e não vejo mais ou um desejo inerte que desperta ao toque ou sussurro de alguma palavra mágica, ánima que faltou quando da concepção, talvez seja isso a busca pelo amor. Quando fecundados, algo se perde na fusão dos gametas e, saídos do ventre, passamos o resto de nossos dias a buscar esse complemento que nos falta.


Acho que você buscava o mesmo ou os olhares não haveriam de cair em traição e posto a nós em situação de desconforto agradável. Depois de cruzados, o caminho já ia sem volta e do olhar passamos a palavra e pequenos gestos que denotavam um sentimento mútuo embrionário.


A criação demanda tempo mas desse bem, os que gostam parecem dispor com bem lhes parece ainda que, incoscientemente, saibam seguir seu ritmo e direção únicos.


TERÇA-FEIRA


O que demanda o sentimento, o desejo prescinde. A carne deve ser provada até os ossos, como se apenas neles residisse a essência, o gosto. O afã do início rouba de nós o prazer da degustação, quando finalmente resolvemos deixar o paladar banquetear-se, o sumo do gosto já foi sorvido e ainda que a carne seja saborosa, seu suco primordial já se foi e passamos apenas a mastigar o mesmo naco até dele sorver a última gota de suco.


Todavia, é um processo prazeroso esse e nos entregamos a ele com afinco afinal nossas carnes eram tenras e novas, havia muito que saborear e pouco que refugar. Durante as refeições eu, você ou nós deixamos escapar algo que não estava no cardápio ou deveria ser a sobremesa o que adoçou ainda mais as bocas e nos fez pensar nos dias que viriam trazendo apenas mais sabores.


QUARTA-FEIRA


A metade é um lugar inóspito, inspira cuidado pois é invariavelmente o ponto de onde se decide ir adiante ou retornar de forma segura. Tal decisão deveria ser tomada de forma cuidadosa e pensada mas, costumamos fazê-lo de julgamento impreciso, infestado de emoções inebriantes e promessas de que tudo sempre será melhor no dia seguinte, na próxima esquina, ao virar a página.


Ainda que os presságios sejam animadores, deveria haver algum tipo de regra que forçasse a todos, chegando em tal estágio, pesar bem o que fazer em seguida e tomar uma decisão proveitosa a ambos mesmo às custas da desgraça de uma das partes.


Infelizmente, isso não ocorre, sentir é tomar decisões assim, se fosse o oposto o mundo viveria em paz e os casais estariam juntos para sempre ou cada um vivendo tranquilamente uma existência única, pacífica e plena de si mesmo.


Tomamos as mãos um do outro e mandando às favas qualquer sinal ou sugestão de bom senso, seguimos em frente deixando para trás qualquer possibilidade de fazer a volta. Isso é amor, se fosse o contrário não o seria ou estamos todos cegos e carentes ante a hipótese de seguir sozinhos um caminho tão longo.


QUINTA-FEIRA


Depois de um tempo, até o inominável ganha nome, é do humano nomear as coisas e isso feito, passa-se a criar um laço afetivo com o nomeado e a partir desse momento, ele começa a fenecer.


Talvez deixar as coisas sem nome fosse uma alternativa mais honesta e que nos permitiria uma vida menos atribulada mas, não somos assim e seguimos dando nomes a tudo que vemos pela frente. Demos os nomes ao que sentíamos e isso nos encheu de orgulho, talvez isso seja a causa da morte de muitos ou seja apenas o cansaço.


Registramos em cartório, reconhecemos firma e voltamos para casa satisfeitos.


SEXTA-FEIRA


A antecipação é uma antessala cheia de gente onde ninguém é chamado pela ordem de chegada, senha ou nome. Ficamos todos ali esperando, os pés tremendo nervosamente, as pernas abrindo e fechando e os dedos tamborilando sobre as coxas.


A questão é que antecipamos algo que já sabemos, conhecemos e sabemos certo mas fingimos não saber, feito uma surpresa ao contrário. A felicidade tem um valor, é certo, problema é estipular o preço, essa conta fecha pouquíssimas vezes pois a matemática que usamos nunca é mesma.


Se eu quero multiplicar, você divide, se quero somar, você quer subtrair, se quero chegar a raiz quadrada, você faz cara de pi e assim vamos.


SÁBADO


No sétimo dia descansamos, exaustos um do outro.


DOMINGO


Fui a missa bem cedo, você estava lá também mas sentado do lado oposto ao meu.


A homilia seguia seu curso, cada um ali fermentando seus pecados e arrependimentos, olhando para as imagens de ar sofredor buscando algum alento, as palavras proferidas eram apenas mais uma chibatada em lombos já em carne viva, deveriam servir redenção mas só havia mesmo penitência.


Estava ali para prestar meus tributos ao falecido, não esperava que voltasse dos mortos feito o Nazareno mas, achei de bom tom ao menos encomendar uma missa em seu nome já que me fora tão importante durante tanto tempo.


De soslaio olhava para você, quem sabe não viera fazer o mesmo, vi o tempo que marcar bem cada minuto nosso em suas faces e não apenas nas minhas, suspirei fundo olhando para as pinturas nas paredes e cruzei olhos com aquele santo das causas perdidas ou impossíveis, não lhe pedi nada porque já havia passado e muito o tempo de lhe fazer pedidos, era momento de aceitar e purgar e deixar ao altíssimo qualquer possibilidade de julgamento.


No momento em que os falecidos eram citados em solene homenagem, abaixei a cabeça, arrisquei um olhar em sua direção e acho que vi algo úmido em seu rosto mas não sei ao certo, me contive em relembrar os mortos e desejar que estivessem em lugar melhor, cabe aos vivos apenas isso e tocar a vida até o momento de ir com eles ter e saber se lhes fizemos justiça ou vergonha.


Acabada a missa, saí de fininho, queria deixar aquele lugar o quanto antes e antes de você mas, acho que as entidades superiores fazem graça conosco e a aglomeração à saída me deteve o suficiente para que logo no umbral nos deparássemos um ante o outro.


Acho que vi as imagens virarem seus rostos nesse momento em tensão, não sei, Trocamos olhares velhos, cansados e sentidos, velávamos o mesmo corpo e agora era tempo de deixá-lo cumprir seu ritual de passagem.


Esprememos cada um nossos lábios num esgar de sorriso de compreensão mútua ou resignação e saímos dali para a vida que seguia seu curso normalmente do lado de fora.




2 de dez. de 2020

as coisas embaixo da mesa

 



Dia desses lembrei de algo da infância, nem sei porque, apenas veio do nada, assalto de lembrança aleatória que acomete qualquer um de nós de tempos em tempos, a vida vai se embrenhando na gente de um jeito engraçado, vai cravando lembranças e memórias que nem parecem nossas mas de outras pessoas, quando acessamos, soam como algo distante, quase irreal e sem sentido mas então, aqui e ali disparam mecanismos que fazem uma associação súbita e sabemos que são lembranças nossas ou algo muito próximo disso.

Na casa dos meus pais havia uma sala de jantar, nem sei porque já que seu uso era algo mais raro do que passagem de cometa, sei que a sala que era de jantar depois virou de estar, acho que eles entenderam que ali não haveriam grandes jantares ou almoços, talvez fosse um desejo de ambos, ou apenas de um deles, aquele tipo de coisa que precisa uma casa precisa ter para ser chamada de casa, um símbolo de status, algo como 'chegamos lá', eram móveis de madeira, maciços, entalhados, rococó, a mesa de seis lugares, um guarda-louças logo atrás de madeira preta e portas vazadas guardados por cortinas de tecido azul imperscrutáveis guardando heranças que nem sei onde foram parar, um aparador ou seja lá que nome leva onde eu passei a guardar meus discos de vinil e onde, ao centro, duas portas de vidro zelavam por bibelôs e pequenos animais de vidro.

Debaixo dessa mesa que raramente era usada, eu costumava brincar, fechava todas as cadeiras o mais próximo da mesa quanto possível e fazia dali comando de naves, submarinos e aviões, também colocava carrinhos, de metal que se chamavam Matchbox e vinham em caixas de papelão, pré-hot wheels, em pequenas reentrâncias que haviam por debaixo da mesa e gostava de 'esquecê-los' por lá para, tempos depois, quando voltava a me trancar naquele espaço, reencontrá-los como se fossem relíquias sagradas há muito perdidas. 

Lembro que algumas vezes eu apenas ficava ali, embaixo da mesa, as cadeiras como algum tipo de portão ou muralha e eu quieto, apenas ouvindo os sons que vinham da casa, os passos pelo carpete, os ruídos que vinham da rua e uma sensação estranha e engraçada de me perder e me achar como se eu fosse um outro de mim dentro outro de mim em mim mesmo, um certo formigamento pelo corpo e no rosto enquanto meus olhos semifechados deixavam apenas o essencial de luz entrar para criar uma noção de espaço e tempo que não era ali nem outro lugar.

Depois de crescido, nunca mais entrei debaixo da mesa até o dia que ela foi embora, não sei direito para onde ou para quem, ela apenas foi assim como o armário impávido com suas cortinas azuis de tecido e seu conteúdo de tesouros inacessíveis e o aparador cheio de badulaques de vidro e pequenos animais que mais pareciam cansaços feitos pelo tempo.

Não sei porque lembrei disso, apenas lembrei e esse post é apenas sobre isso, sobre essa lembrança, nada mais.   

1 de dez. de 2020

atestado

 


Antes de tudo, quero deixar claro que distúrbios emocionais, psicológicos, psiquiátricos ou afins são assunto sério e precisam de tratamento profissional qualificado, acompanhamento e medicação. Se você suspeita que sofre de algum desses distúrbios, procure ajuda profissional e tratamento, não se acanhe!

Bem, acho que todos viram o caso desta moça na padaria, não? Triste, horrendo mas nada que não seja normal e comum no Brasil Bolsonarista. Logo após o ataque, a 'advogada' (aspas amplas porque a OAB desconhece a rábula, deve ter comprado o diploma ou, em seus delírios, é formada e pode advogar) veio pedir desculpas, meter atestado, sofre de bipolaridade, transtornos emocionais e que a vítima foi ela e não as pessoas que ela xingou, humilhou, ofendeu e agrediu na padaria.

Vamos por partes.

Se ela realmente sofre de algum tipo de distúrbio psiquiátrico ou psicológico a primeira questão é se ela está ou não em tratamento, se faz ou não uso de medicação e se, na ocasião, havia feito uso de álcool ou outras substâncias que poderiam ter atuado com a medicação e causado o comportamento agressivo. Se ela realmente sofre de algum tipo de transtorno, jamais poderia sair desacompanhada ou talvez nem mesmo sair de casa quanto mais consumir qualquer tipo de substância que pudesse causar um surto. Pelo que se pode ver no vídeo, ela não parece ter vindo de casa ou do trabalho mas indo ou voltando de alguma festa ou balada e, volto a dizer, como uma pessoa assim pode andar ou sair sem supervisão e consumir substâncias que podem potencializar efeitos de remédios pesados que devem ser tomados por pessoas que sofrem desse tipo de distúrbio? Se ela realmente sofre dessas doenças há um atenuante mas não se pode relevar o fato ocorrido e deveríamos ouvir as pessoas que são responsáveis por ela já que ela não pode ser responsável por si.

Isso posto, ainda eu sua condição possa ser algum tipo de atenuante não a exime de culpa pois seu comportamento, atitude e falas registradas em vídeo deixam claro que ela, ainda que em surtada, estava totalmente coerente e apenas livre das travas morais e sociais que a impediriam de fazer tal coisa em condições normais ainda que, nos dias de hoje com um governo que passa carta branca para esse tipo de horror, as pessoas sentem-se muito à vontade para proferir ofensas raciais, sociais, de orientação sexual ou gênero sem qualquer constrangimento ou seja, ela pode até ser doente mas não é louca e, em surto, deixou clara sua personalidade e modo de pensar.

Os cidadão do bem surtados tem esse tipo de comportamento comum, podem notar, sempre fazem das duas e depois metem o atestado de distúrbios e doenças emocionais e mentais e tentam virar o jogo para saírem como vítimas da situação e não como criminosos pelo simples fato de que dentro de sua lógica distorcida por toneladas de medicamentos e voto 17 eles realmente estão sendo perseguidos por não poderem ofender as bixas, as pessoas trans, pretas e toda e qualquer pessoa que não se encaixe no mundo binário e centrado que enxergam.

Eles desejam a liberdade de dizer o que quiserem sem o ônus de arcar com as consequências e aí, pagam de doidos, veja só! Em suas mentes, o que fazem não é ofensa e quando retrucamos e revidamos estamos tolhendo sua liberdade de expressão que na verdade não está sendo posta em cheque, apenas recebendo a reação contrária na proporção de seu ato horrendo, hão de entender de que para toda ação há uma reação na mesma força e medida e estavam acostumados a não serem questionados.

Não adianta vir de atestado, vocês podem até serem doentes e usaram medicamentos, hoje em dia quem não usa mas, não venham usar disso como muleta para seu comportamento escroto e lixo, isso não cabe mais no mundo e vocês não conseguirão mais virar o jogo e sair impunes, esse tempo acabou! Vocês podem se esconder atrás de seus atestados e laudos, de suas doenças e desculpas mas nunca mais conseguirão se safar da culpa por seus atos, vocês acham que podem usar de subterfúgios para isso mas não, não vão conseguir mais porque a gente deste lado aqui já sacou seu jogo e ninguém aqui vai mais baixar a cabeça e passar pano para vocês.

Podem se entupir de remédios e jogar todos seus atestados, nada vai colar quando a gente sabe o jogo de vocês e não vai mais engolir essas mentiras que vocês adoram contar porque não tem estrutura nem coragem para assumir que são sim racistas, machistas, homofóbicos e querem nos ver mortos.

Pode vir de atestado que a gente vem de perícia.

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

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