2 de dez. de 2020

as coisas embaixo da mesa

 



Dia desses lembrei de algo da infância, nem sei porque, apenas veio do nada, assalto de lembrança aleatória que acomete qualquer um de nós de tempos em tempos, a vida vai se embrenhando na gente de um jeito engraçado, vai cravando lembranças e memórias que nem parecem nossas mas de outras pessoas, quando acessamos, soam como algo distante, quase irreal e sem sentido mas então, aqui e ali disparam mecanismos que fazem uma associação súbita e sabemos que são lembranças nossas ou algo muito próximo disso.

Na casa dos meus pais havia uma sala de jantar, nem sei porque já que seu uso era algo mais raro do que passagem de cometa, sei que a sala que era de jantar depois virou de estar, acho que eles entenderam que ali não haveriam grandes jantares ou almoços, talvez fosse um desejo de ambos, ou apenas de um deles, aquele tipo de coisa que precisa uma casa precisa ter para ser chamada de casa, um símbolo de status, algo como 'chegamos lá', eram móveis de madeira, maciços, entalhados, rococó, a mesa de seis lugares, um guarda-louças logo atrás de madeira preta e portas vazadas guardados por cortinas de tecido azul imperscrutáveis guardando heranças que nem sei onde foram parar, um aparador ou seja lá que nome leva onde eu passei a guardar meus discos de vinil e onde, ao centro, duas portas de vidro zelavam por bibelôs e pequenos animais de vidro.

Debaixo dessa mesa que raramente era usada, eu costumava brincar, fechava todas as cadeiras o mais próximo da mesa quanto possível e fazia dali comando de naves, submarinos e aviões, também colocava carrinhos, de metal que se chamavam Matchbox e vinham em caixas de papelão, pré-hot wheels, em pequenas reentrâncias que haviam por debaixo da mesa e gostava de 'esquecê-los' por lá para, tempos depois, quando voltava a me trancar naquele espaço, reencontrá-los como se fossem relíquias sagradas há muito perdidas. 

Lembro que algumas vezes eu apenas ficava ali, embaixo da mesa, as cadeiras como algum tipo de portão ou muralha e eu quieto, apenas ouvindo os sons que vinham da casa, os passos pelo carpete, os ruídos que vinham da rua e uma sensação estranha e engraçada de me perder e me achar como se eu fosse um outro de mim dentro outro de mim em mim mesmo, um certo formigamento pelo corpo e no rosto enquanto meus olhos semifechados deixavam apenas o essencial de luz entrar para criar uma noção de espaço e tempo que não era ali nem outro lugar.

Depois de crescido, nunca mais entrei debaixo da mesa até o dia que ela foi embora, não sei direito para onde ou para quem, ela apenas foi assim como o armário impávido com suas cortinas azuis de tecido e seu conteúdo de tesouros inacessíveis e o aparador cheio de badulaques de vidro e pequenos animais que mais pareciam cansaços feitos pelo tempo.

Não sei porque lembrei disso, apenas lembrei e esse post é apenas sobre isso, sobre essa lembrança, nada mais.   

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