29 de jul. de 2020

te pego lá fora



Onze e quinze e o sinal cantou bonito, fez gosto em por todos pra fora da escola, queria mais que eles fossem embora dali o quanto antes para lhe dar descanso ao menos até o dia seguinte.

Ele olhou para o relógio na parede e para o de pulso, só para confirmar que a hora não lhe ia errada e começou a arrumar seu material. Não era de bom tom chegar atrasado a encontro tão importante mesmo porque haveria plateia e não se pode negar o circo quando o pão já anda tão escasso.

Colocou a mochila nas costas, falou rapidamente com alguns amigos e ouviu deles palavras de incentivo, que devia seguir em frente e não esmorecer como se todos ali, ainda contando os anos com uma única palavra, tivessem grandes planos para o mundo.

Hesitou ao sair da sala, e se o outro lhe acertasse logo de cara um no queixo e ele nem conseguisse revidar? E se o outro usasse algum truque sujo? E se usasse algum pau ou arma que fosse? E se? Deveria ter evitado o conflito através do diálogo? Poderia ter solicitado a mediação de um professor?

Não, certos assuntos se resolvem assim, entre homens e sem recorrer a ninguém mesmo. Os de sua classe estariam lá para ele e imaginava que os do outro também fossem estar, a roupa suja seria lavada ante todos e, no fim das contas, era com sangue que ela precisava ser limpa.

Andou pelos corredores fazendo um caminho mais longo do que de costume, não era medo, que é isso! Apenas traçava sua estratégia para a hora do ataque. Passou pelo banheiro, ouviu mais frases de apoio e sussurros de como ele seria vencido facilmente pelo outro. Molhou o rosto e mirou-se no espelho por instantes tentando achar a coragem que precisava. Recuou quando percebeu que o reflexo lhe olhava de volta com ar estranho, meio de galhofa, lhe tirando assim sem mais nem menos. Saiu do banheiro ainda respingando e seguiu seu caminho rumo a saída da escola.

Não havia mais volta, era ali mesmo, seu ringue estava armado e ele ouvia a multidão lá fora gritando seu nome ou os nomes de amigos ou de suas mães e pais que tinham vindo lhes buscar. Fechou os olhos, repassou cada passo de como seria sua estratégia de luta, ensaios de alguns golpes, kung fu dos tolos, caratê dos ansiosos, boxe dos anjos e cortou as asas que ameaçavam sair na parte de trás de sua camiseta do uniforme.

Saiu. A luz do dia lhe franziu o cenho e ele, aos poucos, viu a lona armada no concreto da calçada, o público ao redor e quando este, apercebido de sua presença fez-se Mar Vermelho, pode ver do outro lado seu oponente.

Mediu-o bem, analisou cada parte do outro buscando suas fraquezas, onde atacar primeiro e sentiu que o outro também o escrutinava sem dó. O círculo se fechou e agora estavam um em frente ao outro e a distância foi diminuindo conforme o público ia se fechando sobre eles que ainda se analisavam, olho no olho, aferindo-se, imaginando-se em combate.

Finalmente o espaço interno os fez ficar cara a cara e o silêncio da plateia indicou que começaria a luta e, se não começasse logo, latas de refrigerante, salgadinhos, cadernos e livros voariam pois a massa queria o show que lhe fora prometido e a voz da massa é o molho de tomate servido dos ferimentos dos gladiadores.

E eles se pegaram de vez e a massa recuou, abriu-se o círculo, de forma abrupta, quase em reverência não fosse pelo silêncio pasmo expresso na cara de todos ali presentes quando finalmente, ao dar-se espaço suficiente, pode-se ver os dois num beijo profundo, em carícias, rolando pela calçada.

O público se desfez, sem pressa foi cada um para seu lado e os dois lutadores se amaram na calçada quente sob o sol do meio dia.

28 de jul. de 2020

Sin Estésia

e o sol veio manso devorando as frestas das venezianas, fazendo furos de luz que aos poucos iam caleidoscopando as paredes, mordendo a penumbra do quarto, lutando e vencendo cada pequena partícula de escuridão que guardava em suas moléculas o cheiro da noite passada.

aos pouco divisei sua forma, o ar se desprendia de sua pele soltando microscópicas porções de você que eu, de olhos fechados, sorvia feito incenso monástico. queria seu aroma mas só vinha em cada narina um odor diferente como se cada uma dela captasse o cheiro de cada um de nós e não o nosso.

senti um aroma de relva úmida, achei que fosse teu mas era de fora, trazido pela manhã que vencia fácil a guerra contra o breu do quarto. parecia que sua pele se desprendia cada vez mais dissolvendo-se na luz que ganhava mais espaço a cada ressonar seu, temi que sua mortalidade estivesse condicionada a ausência de luz, quis puxar as cortinas, fazer dali nosso mausoléu mas sua decomposição era tão doce e cálida que nada fiz ou poderia fazer.

e quando resolvi tocar, ainda no medo de desfazer em pó tudo aquilo que você era ou estava, vi que eu também me desfazia lentamente em meio à luz do quarto, por isso minhas narinas sentiam cada uma um aroma diferente, lá dentro, na mente, o aroma se juntava em nós e eu entendia isso perfeitamente.

por fim, a luz deu o golpe final e o quarto ficou claro como uma estrela nova, estamos dissolvidos já, misturados entre as partículas de poeira, pele e ar que flutuavam livres pelo quarto e começavam a sair pelas frestas das venezianas.

aspergidos pela cidade, amamos, nas cinzas de nós.

27 de jul. de 2020

sobe


Chegou aos bafos, relógio gritando, lhe apontando o indicador e ponteiros esbugalhados. 

Chama elevador, demora, demora, demora, pés ritmados no chão, pescoço de ventilador, buscando salvação. Ele chega, as portas se abrem, sai gente, entra gente, sai gente, eu quero entrar, pressa, muita, relógio faz cara de 'se fudeu!' pra ele. Dentro ele acha ele. Novo, não estava lá no dia anterior, pergunta os andares, ele fica sem saber o que falar, '10º?' Não era mas ele faz que sim, dez era ele, décimos de segundo até que eles se despedissem. 

Sobe, pára, desce, sobe de novo, pára, sobe mais, sai gente, entra gente. 10º, só os dois, os números no painel ansiosos, eles se olham, o botão da emergência pula na frente dos demais gritando 'sou eu! sou eu!'.

O beijo sobe, não ia pra andar algum, pede pra esperar o resto que vinha correndo pelo corredor, já ia chegar, segura a porta! Então, apertaram todos o botões, e nunca mais voltaram.

24 de jul. de 2020

para quem carrega um cobertor



dia dessas, veio uma lembrança de assalto, do nada, dessas que saem de algum lugar do cérebro que parece ter a única função de acomodar memórias ladras e soltá-las para nos pegar desprevenidos, pensando o que teria causado aquela recordação, incapazes de entender qual gatilho foi responsável como se fôssemos animais de laboratório que não conseguem ser condicionados.

quando comecei a arranhar a superfície de minha sexualidade, imberbe de vida e de idade, a primeira experiência foi com um amigo de escola. não sei quais caminhos ele seguiu pois nos perdemos nos meandros da vida, se abraçou sua sexualidade, a sublimou sob camadas de normatividade, passou por essa experiência incólume, não sei dizer e, às vezes, bate um desejo de saber-lo, ver como a vida o tratou, o conduziu e se aquilo que vivemos ainda lhe causa esses roubos de memória ocasionalmente.

foi o primeiro beijo (beijo apenas porque beijo não precisa ser guei, hétero, bi ou seja lá o que for, beijo é beijo, conjunção de bocas sedentas, nada além disso), a primeira masturbação, o primeiro sexo oral, aprendemos às cegas, colocamos os paus nas bocas e eles ficaram lá, flácidos, inertes, que fazer depois de por na boca? era uma época de inocências, lembro de colocar seu pau na boca e ter ficado esperando que algum milagre acontecesse, nos olhávamos como a esperar algum tipo de revelação mas nada aconteceu, fui correndo lavar a boca porque então, associava o pau com algo sujo, o pecado plantado, a ciência de que era errado ainda que quisesse ser certo. com o tempo, fomos descobrindo que o prazer não acontece caído do céu, há de ter certo trabalho assim como praticamente tudo na vida.

não diria que nos amamos pois éramos novos demais e amor era uma palavra estranha em nossas bocas ainda mais aquele amor que nos apavorava ante sua descoberta e em ser descoberto mas, acho que de alguma forma fomos importantes um para o outro. certo dia, estava em casa depois da escola e ele me liga (era tempo de telefone fixo). atendo e ele diz estar sozinho em casa, nossos encontros eram assim, nas frestas, nos espaços de tempo que tínhamos sós, encaixando nossos corpos entre minutos e segundos para caber um desejo que vazava, me troquei e fui para sua casa que ficava relativamente perto da minha.

chegando lá, toquei a campainha, ele atendeu, acho que pude ver um brilho em seus olhos mas hoje não sei dizer, podia ser apenas tesão. entramos e a ansiedade do momento era palpável em nossas peles, a casa era grande e estava vazia, ele me conduziu por cômodos decorados com uma sobriedade que apenas famílias antigas sabiam emprestar aos seus lares. chegamos na sala que estava a meia luz, lembro das cortinas meio cerradas e pelo espaço aberto entrava uma lâmina de sol leve caindo sobre o sofá e dividindo a sala em duas partes escuras e, naquele meio de luz solar, no chão sobre o tapete, estava um cobertor jogado no chão, talvez fosse uma daquelas tardes de outono ou inverno onde o sol tem de trabalhar dobrado para aquecer a gente.

nos deitamos no chão e nos cobrimos com o cobertor e ficamos ali, quietos a princípio mas depois nos beijamos. não lembro de houve sexo, tenho quase certeza que não, apenas ficamos ali nos beijando e acariciando, trocando peles, trocando desejos, trocando tesão, trocando olhares e acho que naquele momento nos amamos sem nos darmos conta disso.

não sei ao certo quanto tempo ficamos ali mas sei que é a primeira lembrança clara que tenho de estar no amor de outro homem. se tivesse de traçar meu caminho de volta até o momento em que tive certeza de que não apenas o sexo mas o amor de outro homem me completavam, acho que acabaria nesse momento, naquela sala, debaixo daquele cobertor, com aquele garoto que me olhava com uma estranheza sagaz e um desejo terno e com meu olhar incerto de não saber o que era aquilo.

queria que fosse possível a viagem temporal não para alterar passados ou conquistar futuros mas apenas para voltar àquele momento e ficar ali observando o nascimento de um amor que não sabia estar nascendo, olhar e apenas contemplar e talvez dizer ao garoto que fui que tudo bem, tudo ficaria muito bem.

23 de jul. de 2020

meu nome é jonas



meu nome é jonas. eu sou uma baleia.

já faz algum tempo que vivo aqui, no estômago desse homem. não sei dizer ao certo quanto tempo, podem ser dias mas acho que são semanas, podem ser semanas mas acho que são meses, podem ser meses mas acho que anos, podem ser anos mas acho que são décadas, podem ser décadas mas acho que não sei.

lembro de quando ele me engoliu. eu nadava tranquila no oceano que é onde as baleias nadam, tem baleia que nada em outros lugares mas não as chamamos baleias porque só podem ser baleias as que nadam no mar, salgado, frio e quente, sujo, de plástico, migrando conforme a necessidade. enfim. nadava, estava lá subindo e descendo, esguichando, comendo krill quando ele me viu, perseguiu, fisgou e engoliu.

não sabia que um homem poderia engolir uma baleia mas aquele engoliu. achei que iria me matar, tirar as carnes de meus ossos, fazer óleo de minhas vísceras, vender os ossos mas não, ele abriu uma bocarra e me vi assustado ante dentes brancos de um branco que já vira dias mais brancos. não sabia que homens tinham dentes, eu não tenho então acho estranho quem tem, não confio em criaturas com dentes, os usam para ferir, morder, veja só os tubarões, homens são tubarões eu acho, só que vivem fora d'água.

mas o homem não mordeu, passei pelos dentes e ele fechou a boca enquanto punha a cabeça para trás para facilitar me engolir. não é fácil engolir uma baleia, somos grandes, temos cracas na pele, barbatanas espessas mas, ele me engoliu, fiz com que engasgasse, ele tossiu quando eu entalei em sua garganta mas ainda assim me engoliu e fui parar direto no seu estômago

nunca tinha visto o estômago de um homem, só conhecia os das baleias. o dele era pequeno e custei a me encaixar ali, ele arrotava enquanto eu me debatia buscando alguma posição ali dentro até que finalmente me acomodei e ele parou de arrotar. fedia ali dentro, será que o estômago de todos os homens fede assim? nós baleias não temos estômagos tão fedidos ou talvez sim e tenhamos nos acostumado ao cheiro.

olhei ao redor, nada demais, havia alguns restos do que supus serem alimentos e achei muito estranho porque nós baleias não comemos comida de homem, não sabia dizer o que era digerido ali mas, comecei a ficar com medo de fosse digerida também só que não sentia nada, estava acomodada e não parecia que o estômago do homem fosse capaz ou estivesse interessado em digerir uma baleia.

fiquei ali e a fome começou a apertar. como fazer? será que o homem saberia que baleias também precisam de alimento? que temos fome e sede? mexi um pouco e ele arrotou forte e qual não foi minha surpresa quando senti que algo descia pela garganta do homem e, de repente, caiu sobre mim algum tipo de pasta estranha acompanhada de um líquido de cheiro forte. consegui me mexer e comer um pouco daquela pasta e beber um pouco do líquido, quase vomitei mas fiz força para não fazer isso porque tinha muita fome e sede.

o tempo foi passando e comecei a perceber que a intervalos regulares, o homem entregava alimentos, pensaria na baleia que carregava dentro de si? talvez. ou talvez apenas tivesse fome também e precisasse comer, igual a uma baleia e, sinceramente, aquele homem comia muito. acabei me acostumando com a dieta estranha humana e sabia meio de cor o que cada dia da semana traria de refeição.

ficava ali, pensando coisas de baleia mas começava a pensar coisas de homem, talvez por estar dentro de um, por estar me alimentando como se alimenta um, dizem que somos o que comemos. às vezes, acho que conseguia sentir o que o homem pensava só pelo tipo de comida que ingeria ou pela ausência dela, talvez ele também conseguisse sentir o que eu pensava ali dentro de seu estômago, talvez pensássemos juntos a mesma coisa, eu pelo estômago e ele pela boca.

então um dia, o homem começou a tossir muito, sem parar, eu já vivia nele há algum tempo e aquela tosse não era normal. já ouvira muitas coisas, ele vomitar, cagar, mijar, roncar, arrotar, cuspir mas, aquela tosse parecia algo vindo de outro lugar do corpo humano que eu não conhecia e como poderia? vivia no estômago, esse era o máximo de conhecimento da anatomia humana que possuía. para mim, o ser humano era feito de boca, dentes e estômago, se havia mais eu desconhecia.

a tosse foi aumentando e eu, ali no estômago do homem, comecei a sentir convulsões estranhas, achei que finalmente ele iria me vomitar e me veria livre daquela prisão estomacal mas não, ele ameaçava mas eu não saía, ficava ali, presa.

até que ele parou de tossir. e não apenas de tossir mas de fazer qualquer coisa. nada. sem comida, sem água, sem bebida, sem ar, sem tosse, sem nada, absolutamente nada. é o fim, pensei, ninguém jamais saberá dessa baleia que foi engolida por um homem, não haverá histórias a respeito, não será lenda ou mito, não será repassada como anedota, fim, frio e estomacal fim, as coisas começam pela boca mas morrem no estômago.

e então, senti uma lufada de ar fresco e uma fina lâmina de luz que se abria pelo ventre do homem que tinha engolido uma baleia. me assustei, sobrevivera aquele tempo todo dentro do homem, vivera com ele, comera de sua comida, bebera de sua bebida, trocamos fluídos e pensamentos, fomos gastronomia um do outro e agora, o fim seria besta, outro homem abriria meu homem e acharia uma baleia, de certo que a comeria ou engoliria e eu passaria o resto da vida assim, entrando e saindo dos estômagos humanos.

mas não. barbatanas delicadas separaram as carnes humanas e me tiraram de dentro do homem, lavaram minha pele suja de homem, minhas feridas gástricas, e massagearam meu peito para que  buscasse o ar puro, livre dos cheiros internos do homem.

olhei ao redor e só via baleias que, juntas, choravam e se prostravam diante mim. confusa, perguntei do que se tratava tudo aquilo e foi quando elas me disseram que eu era o deus-baleia, gestado na carne humana como provação e, tendo sobrevivido, estava apta a ser a divindade.

então fez-se uma luz, cetácea, azul do oceano e, num esguicho abençoado, ascendemos todas ao céu, onde as baleias nadam sem medo, sem rumo e sem serem engolidas por ninguém.

22 de jul. de 2020

quando será o agora?*



'..so you go and you stand on your own, and you leave on your own, and you go home and you cry and you want to die'

Por esses dias, vi um mini documentário explicando como 'How soon is now?' do The Smiths é um marco musical e não apenas musical mas de uma geração que encontrava nas guitarras de Marr e letras melancólicas e ácidas de Morrissey um espelho fiel para suas angústias.

Eu era dessa geração.

Quando comecei a tatear pelo campo do 'ser gay' não havia referência, não havia modelo, a internet ainda era pensada em alguma garagem obscura e vídeos e streaming e redes sociais eram conceitos que habitavam apenas a ficção científica. Era preciso tatear com cautela, buscar pelos 'entendidos', os iguais e que podiam ajudar na descoberta do munda guei, seus códigos, regras, costumes e ditames e, na maioria das vezes, tudo era feito na base da tentativa e erro, mais erro que acerto mas, é errando que se aprende a errar.

Nunca fui dos grandes clássicos associados ao mundo guei ainda que os valorize e reconheça. Habitava e ainda habita em mim só que hoje domesticada uma sensação de inadequação ímpar, um desejo que arde mais forte talvez pela necessidade de me expressar e isso acaba levando por vias que não são as mais percorridas fazendo de mim o fora do eixo entre os fora do eixo.

Parte disso veio das humilhações constantes pelas quais passei na adolescência, essa fase em que todos são maus por natureza e prazer puro, adultos são maus porque escolhem sê-lo mas crianças e adolescentes o são pelo simples prazer de ferir, magoar e humilhar. Nunca fui dentro de qualquer padrão, fosse qual fosse e isso seguiu verdade quando entrei na horrorescência e comecei a tomar contato com outras realidades e lidar com desejos que eu não entendia de onde vinham.

Aí, você encontra uma banda que fala exatamente disso, dessa inadequação e exclusão e um clique súbito é acionado em sua mente e corpo e coração e você passa a entender que tudo está no lugar certo e que por mais que você seja a exceção dentro da exceção, há algum tipo de esperança sem sentido nessa busca doido por um lugar no mundo.

Quando namorei um homem pela primeira vez, tínhamos gostos similares mas musicalmente, eu ia por um caminho mais obscuro e perturbador enquanto ele seguia por outro não tão soturno. Ainda que o passar do tempo em que ficamos juntos tenha misturado nossas essências e influenciado nossos gostos mutuamente, eu ainda me sentia um pária quando íamos nos clubes e boates onde ele se encaixava mais no modelo esperado enquanto eu lutava arduamente por isso.

E não apenas quando íamos juntos mas quando ia sozinho, a ânsia do ir e quem iria me aceitar era algo que me tirava do eixo, aquele processo de ir num lugar e ser selecionado, eleito, escolhido e a consciência de minha total incapacidade de performar corretamente o papel que deveria performar naquele ambiente. Quantas vezes não fui para esses lugares e incapaz de me sentir aceito ou acolhido acabei voltando para a casa sozinho, vazio, triste e certo de que a falha estava em mim e não em outro lugar.

Lembro de muitas outras vezes e lugares que fui e em que o resultado final para qualquer gay jovem seria um saldo positivo e, no meu caso, saía devendo até a alma porque não conseguia nada. Uma dessas vezes me é clara feito um dia de verão, tinha ido numa das paradas LGBTQ e, à época, eu e o homem que namorava estávamos separados, fui obstinado a encontrar alguém, ao menos ficar com alguém, um beijo que fosse já me faria sentir válido como vivo mas, ao final, estava sozinho, sentindo como se fosse algum tipo de refugo tóxico quando vejo passar o namorado que não era mais acompanhado e aquilo destruiu as últimas forças que tinha. Lembro de voltar para casa me sentindo péssimo e, ao chegar, ir direto para meu quarto, deitar e desabar num choro convulsivo e que parecia não ter fim.

Hoje, tudo isso me parece exagerado e até estúpido mas não é porque eu sei que ainda há muitos de nós que passam por isso quando confrontados com as regras do mundo guei, seus padrões e ilusões mas, se há algo que me ajudou e pode ajudar quem ainda passa por isso são aquelas músicas que nos encontram no fundo do poço e dizem que tudo bem, que um dia vai ser melhor e que ser desajustado entre os desajustados não é crime algum muito pelo contrário, é um certo privilégio pois sentimos tudo de forma muito mais intensa do que aqueles que se deixam levar pelos comportamentos de manda.

Então, se você também se pegar perguntando quando será o agora, eu lhe respondo que o agora já é, já está aqui e que você precisa apenas pegá-lo pelo pescoço e não deixar que ele escape de você jamais.

*o título da canção em Inglês é 'How soon is now' que pode ser entendido literalmente como 'O quão cedo é agora?' mas, preferi traduzir assim pois me soou mais correto.

21 de jul. de 2020

a vida como um instantâneo

Este sou eu e eu lembro de quase tudo.

Se a vida fosse uma URL, ao digitar na barra, onde ela nos levaria? Somos apenas álbuns de fotos tiradas em filme e o tempo vai, aos poucos, comendo as cores pelas beiradas deixando tudo em escalas de cinza até que, finalmente um dia, haverá a ausência total de cor.

Nossas mentes são seletivas e talvez isso seja bom pois o acúmulo dos anos traria a insanidade devido ao tanto de lembranças, mesmo as mais ínfimas. que carregariamos dentro de nós. Mesmo assim, um aroma, um gosto, um lugar, uma frase, coisas assim meio sem sentido são plenamente capazes de nos remeter a tempos passados e, por vezes, trazer aos olhos lágrimas mostrando que esse acúmulo é histórico e só não é histérico porque, inconscientemente, armazenamos tudo que nos chega pelos cinco sentidos (e fora deles) guardando, como disse, selecionando, apenas o que realmente deve ser guardado para acesso imediato quando preciso.

Olhe para trás e tente imaginar quantos caminhos não foram trilhados, quantas escolhas foram feitas e quantas não foram, como poderia ser cada momento que foi/não foi realizado, provado. Talvez o resultado final acabe sendo sempre o mesmo ainda que outras realidades resultantes de outros passos dados pudessem trazer outros cenários.

Ver minha vida como resultado da de outros; as nossas vidas não são, na verdade, nossas, eram de nossos pais até o momento em que viemos ao mundo e então, numa simbiose nefasta, tiramos deles que sorriem enquanto o fazemos, a vida que será nossa e talvez esse caminho não seja assim tão árduo quanto o fazemos se pensarmos que depois disso, de extrairmos de nossos pais a vida, muitos de nós terão as suas removidas em cirurgia pelos filhos que virão ou pelos amigos, família escolhida, escoltada por nós pela vida afora, esse amálgama de nós mesmos que vai se moldando enquanto os anos vão gastando nossas tintas.

Temos essa ideia falsa de identidade mas, no fundo, vejo a mim como réplica melhorada, na medida do possível, de meus pais, mimetismo singular, vejo/faço. Esse óleo invisível liga a nós e a eles e aos que cruzam nosso caminho, não há mesmo um eu e se houver talvez seja apenas nos ossos e quando a terra lambe os beiços depois de nos devorar de volta. Isso não é ruim, esse não ser, acho que é bom enquanto sabemos usar essa bagagem toda que vamos guardando vida afora e, no final, o que conta mesmo não são as marcas materiais que deixamos mas as pessoas que tivemos em nossas vidas e as vidas que tivemos parte tanto para o bem como para o mal, há que se acertar o preço da parte má quando cobrado ainda que a contragosto.

Como o sonho dentro do sonho dentro do sonho, acordamos dia a dia tentando achar a saída mas ela apenas dá em outro sonho e esquecemos de que o sonho em si é bom e que nos move adiante, para aquele lugar, lá, onde tudo deve ser melhor, acordar e fechar os olhos para isso, preferir não ir adiante e escolher o mais fácil e simples do que o mais trabalhoso e árduo mas que trará a recompensa final que costumamos chamar felicidade.

Não sei, há fotos antigas onde vejo meus pais sorrindo, em poses imortais de um momento que me foge o significado e que talvez não guarde significado algum. Há ainda fotos com amigos e pessoas que nem mesmo aqui estão mais e num ímpeto desespero tento relembrar do que sentia naquele momento, às vezes sei, muitas vezes não me lembro e penso se as fotos antigas, de antes de mim ou de quando eu não conseguia guardar lembranças, não são invenções, manipulações de um passado que não é meu mas de meus pais mas, isso pode não ser verdade uma vez que, como disse, eu mesmo não me recordo das fotos que eu mesmo tirei ou em que estava então, como saber o que é mesmo minha memória ou de outros?

Gostaria que a vida fosse uma seqüência de fotos sem fim e que, ao final, pudéssemos rever cada uma delas para saborear novamente momentos que foram tão ternos que pareceram ter durado décadas e outros tão efêmeros que podemos duvidar de sua existência. O tempo vai passar e assim como meu velho pai está hoje vivendo de lembranças embaralhadas, plantadas em cada ruga de seu rosto senil, eu mesmo irei embaralhar as minhas e talvez às dele sem saber, ao final, de quem são afinal.

Não me assusta envelhecer, até me atrai, me adoça a boca e o passar dos dias deixa um gosto de tudo ter tido sentido, propósito, razão. Quero envelhecer podendo ver as minhas fotos com carinho, ainda que não saiba se fui eu ou outros que as tiraram, só me assusta e muito perder a referência de quem são as pessoas nas fotos, esquecer ou não mais lembrar e há uma diferença grande entre as duas coisas.

Quero estar ali, com minhas rugas e o meu amado ao meu lado e ainda ser capaz de olhar para ele e para mim e para nossos álbuns e ser capaz de ligar uma coisa a outra pois mais do que morrer, que não me é assustador pois todo livro tem de ter um final, me apavora ter o amor ao meu lado e ser incapaz de reconhecer que ele esteve lá por anos, pela vida toda, sempre e temer a morte não por ela em si mas por ter passado uma vida sozinho.

20 de jul. de 2020

esse ônibus não passa mais aqui...

Despertador toca mas eu não me toco e sigo naquele estado saindo do sono entrando na realidade ou seria o contrário?

Despertador toca de novo e então eu me toco mas custa tocar a vida, custa acordar, custa sair da cama, custa por os pés no chão, custa tomar banho, custa escovar os dentes, custa fazer a barba, custa coar um café, custa cortar o pão dormido, custa passar manteiga rançosa, custa jogar tudo na pia de pilha de louça arqueológica, custa vestir a roupa, custa calçar os sapatos, custa encontrar as chaves, custa sair de casa, custa pegar o elevador, custa engate de conversar sem sentido com gente, custa dar bom dia, custa olhar pra rua, custa andar até o ponto, custa chegar lá e ver que o ônibus que precisava pegar já passou...

17 de jul. de 2020

a vida, esse sopro

hoje não tem conto.

só vou falar da fragilidade de sermos. da vida. desse evento fortuito que a gente não sabe como começa mas sabe muito bem como acaba. 

hoje, dezessete de julho, lá se vão treze anos do acidente da LATAM (então apenas TAM) quando uma de suas aeronaves 'varou' a pista do aeroporto de Congonhas e chocou-se contra o prédio da TAM CARGO. não vou tecer teorias ou apontar culpados, só vou contar minha história que, de forma indireta, está relacionada com esse evento triste.

trabalhava na TAM na época, aviação sempre foi minha paixão e área de atuação muito provavelmente por causa de meu pai que trabalhava com isso e me levava para ver aviões como diversão. estava na empresa fazia pouco mais de um mês, havia sido contratado por um colega meu da antiga VARIG que estava na TAM e trabalhávamos exatamente no prédio que foi destruído no acidente.

no dia em questão, eu aguardava esse meu colega para conversar sobre alguns assuntos que trataríamos numa reunião no dia seguinte. era já começo de noite e uma chuva constante já caía sobre a cidade dese alguns dias. meu colega estava ocupado em uma reunião e como não desse sinal de que sairia tão cedo e como os assuntos que queria tratar com ele não era urgentes, resolvi ir embora e conversar com ele no dia seguinte antes da reunião.

peguei minhas coisas, disse até amanhã a quem ainda estava por lá e fui embora. na rua, fui para o ponto de ônibus que ficava de frente para a cabeceira da pista do aeroporto, chovia não muito forte mas persistentemente e eu aguardava o ônibus com mais algumas pessoas. o ônibus chegou, embarquei e tomei o rumo de casa, fui ouvindo música e olhando a cidade molhada pela janela embaçada do coletivo.

cheguei em casa, disse oi ao meu marido e ficamos conversando sobre amenidades, coisas de casal, simples rotina que agrada pois sabemos que existe alguém ali para ouvir sobre seu dia, são as pequenas coisas que, ao final contam. toca meu celular (vale dizer que era uma época antes de whatsapp e outros tipos de mensagens ou conexões, os smart phones não eram assim tão smart) e era meu irmão esbaforido a gritar você tá onde? e o aeroporto? e o avião da TAM que caiu? E eu oi? que avião? to em casa, acabei de chegar. Ele o avião, porra! caiu o avião! Eu que avião? acabei de sair de lá, tá doido? Ele LIGA A TV PORRA!

liguei e caí sentado. o prédio que deixara pouco mais de quarenta minutos atrás ardia em chamas. meu marido olhou para mim e eu lhe disse que trabalhava ali, naquele mesmo lugar que aparecia devorado pelo fogo e ele levou alguns segundos para processar a informação.

se tivesse ficado mais cinco ou dez minutos, não estaria aqui escrevendo. se tivesse ficado mais cinco ou dez minutos, não teria livro novo ou velho. se tivesse ficado mais cinco ou dez minutos não estaria ou seria. perdi alguns amigos naquele acidente, não muitos porque ainda era novo de casa e tinha feito poucas amizades mas, o colega que me levara para trabalhar ali morreu no acidente.

não sou muito crédulo mas, se há alguma coisa ou alguém que zela por nós de algum lugar, provavelmente foi quem me fez ir embora naquele dia. a vida é um sopro, um nada, achamos que ela dura para sempre, pura ilusão na qual nos apegamos para fingir que não sabemos que podemos morrer num piscar de olhos.

a vida é essa vela que a gente vai empurrando contra a borrasca, protegendo com as mãos em concha para ele não apagar enquanto a cera vai derretendo aos poucos e queimando nossos dedos.

estou aqui segurando a minha vela há cinquenta e dois anos. espero estar com ela nas mãos quando completar cinquenta e três.

16 de jul. de 2020

o lobo atrás da porta

cheguei em casa, chave na mão, chave na fechadura, chave gira, cling clang, destranca, mão na maçaneta e abre porta que depois fecha atrás de mim com um baque surdo de gente que fica do lado de fora, isolado, exílio interno para um mundo externo, morto feito flor de lápide e sem cheirar mal porque o que não teve vida não pode feder.

e vem o rosnado pelas costas, arrepio que sobe do calcanhar pelas pernas, quadris, ventre, peito onde vive um órgão inútil, pescoço que uma tosse sem fim aflige dia e noite, boca sempre seca porque nunca teve outros gostos, nariz que sente aromas imaginários, olhos que há tempos não enxergam quase nada mas veem tudo e cabeça que lateja direto mesmo tomando comprimidos que seriam suficientes para anestesiar um país.

não vou olhar, não deve ser nada, não seria a primeira vez que me prego peças, assim mesmo, peças, peço que seja mais uma e meio que já me acostumei com elas fazendo parte do meu cotidiano, sem elas o que já não tem graça alguma ficaria totalmente apático então melhor deixar que elas me peguem pelo menos emprestam algum sentido ao que não já não tem nenhum.

ele rosna mais forte, vou olhar, se ele ainda estivesse aqui ele diria que era coisa de minha cabeça fervente, igual aqueles chás que ele bebia toda santa noite e que empestavam a casa com um cheiro de mato queimado, incenso que me dava enjoo, eu ia ao banheiro vomitar dizendo que comera algo fora e ele dizia que eu precisava cuidar melhor da alimentação, como se alimentar fosse dar cabo de tanta fome desnutrida.

ele rosna alto, sinto que deve estar arreganhando os dentes, pronto para cravar em minha carne sem sal, se é sangue que deseja melhor bater noutra porta porque neste aqui o sangue virou farinha faz tempo. outro dia me cortei ao fazer a barba e não saiu nem um filete, fiquei olhando no espelho, esperando o vermelho aparecer mas nada, nem um pontinho, nada e então, cortei mais fundo com a gilete e mesmo assim nada, nem um jorro, olhei para meu reflexo e passei a lâmina no espelho, ele com certeza sangrou.

latiu agora, não aquele latido de cachorro feliz porque o dono chegou em casa, domesticado, feito a gente quando acostuma a ter outra pessoa em casa e abanar o rabo quando ela chega, ele abanava o dele, eu punha o meu no meio das pernas e a vida seguia assim entre rabos. não aquele latido, era de bicho feroz, selvagem, do mato, astuto, atento, que persegue a presa até que ela se canse e ele possa lhe devorar as entranhas.

senti algo roçar minha perna, umidade de vapor canino, me cheirava como a sentir se valia a pena comer ou passar fome mais uns dias ante carne tão decrépita. eu rijo feito um graveto exposto numa geada, não, não iria olhar porque dizem que animal assim se você olha nos olhos ele avança, entende que é desafio, igual a gente quando vivia aqui, não tinha olho no olho, um encarava e outro baixava os olhos, sem desafio, sem discussão, sem coragem, se era sua ou minha tanto faz agora que não tem mais onde por os olhos salvo no espelho, aquele que eu cortei e que até hoje estou esperando sangrar.

e ele deve ter sangrado porque o bicho sentiu o cheiro e cravou os dentes na minha perna, não sangrei porque a gente quando sangra sente o líquido quente escorrer e o corpo vai perdendo um calor igual aquele que a gente foi perdendo aos poucos até viver de invernos. também não doeu porque a dor, para ser sentida, precisa de alguém vivo e eu não era isso fazia tempo, estava vivendo mas não vivo, algum tipo de golem ou mortovivo que estava apenas procurando sua cova, quando achasse, deitaria solene em meu buraco.

e o animal foi devorando, me comendo todo e eu sem sentir qualquer tipo de dor, pânico ou desconforto. era tempo já, ele deveria ter chegado antes mas essas coisas demoram, eu sei, você sabe mesmo não estando mais aqui e fico pensando se não vai encontrar também um bicho desses atrás da porta e ser devorado junto comigo e virar repasto, seria bom, ser digerido contigo, algum tipo de bolo fecal seria feito de nós.

e o bicho me comeu todo, não deixou nem ossos para atestar que eu fora alguém porque ossos são isso, atestado cabal de que fomos, estivemos aqui, sem osso não somos ninguém, melhor que identidade, ossos são nossos ofícios, registro, evidência mesmo quando já carcomidos pelo tempo ou pelo desamor.

devorado, eu agora lobo fiquei ali esperando atrás da porta. quieto. calmo. reticente. sempre chega alguém para ser devorado.

15 de jul. de 2020

o drama que eu não sei por em palavras

quando eu te beijei e você me beijou e nós nos beijamos naquele pântano onde beijo era flor deixamos de ser sapos para nos tornarmos homens. não príncipes que isso é coisa de sonho, inventado, placebo para deixar a mente nervosa cheia de fantasias de amor dormido, comido, sonhado entre copos de café desses que ficam o dia todo na garrafa térmica e pães dormidos.

fica comigo você disse.

por quanto tempo eu perguntei.

pra sempre você disse.

eu ri porque ali nada era para sempre e tudo era para sempre agora, momento, passa, piscou já foi. quando a gente é jovem, para sempre é muito tempo. quando somos adultos, para sempre pode ser uns meses ou anos. quando somos velhos, bem, quando somos velhos para sempre já não existe mais.

nos amamos na carne, ali, em pé, quem ama como nós aprende a amar em qualquer posição porque não há disposição que nos permita amar em outras posições e nossa posição é não abrir mão do amor mesmo quado ele se posiciona contra a gente.

saímos de lá cegos, surdos mas de mãos dadas, não fisicamente mas em pensamento, tem coisas que a mente faz melhor que o corpo eu acho. bebemos alguma coisa num boteco qualquer e eu queria ser mais articulado para ter convencido a mim mesmo de que eu amava, mas eu era coito interrompido, você sabia eu acho, já era mais do que eu, tinha certezas que para mim eram rascunhos, eu ainda tateava no escuro do desejo enquanto você já tinha encontrado as saídas.

nos despedimos. ou não. não lembro ao certo, talvez, não sei. sei que uma semana depois estávamos juntos de novo, ou quase porque eu cheguei no horário àquele pântano com cheiro de desinfetante barato e semente de homens e não te vi ou não queria te ver, ou não queria te encontrar, ou esperava que não viesse, ou torcia para que se atrasasse além de qualquer espera razoável e assim, eu poderia ir embora tranquilo ou menos nervoso.

dizem que o que gente pensa molda o mundo ao nosso redor. você não chegava, eu resolvi ir embora. aliviado mas triste. aliviado mas com raiva, aliviado mas puto. aliviado mas decepcionado. ali viado. e quando eu ia entrar na estação de metrô dou de cara contigo. contágio, letárgico, pandemia, epidermia, taxidermia de sentimentos, gelei e você com olhos dizendo achei que você não viria mas você veio e eu me atrasei e você ia embora e eu quase te perco mas olha que coisa que nos trombamos assim então era para ser e a gente vai ficar então.

sim. o universo tem bilhões de estrelas, galáxias, constelações e tudo mais. deveria estar mais ocupado criando e destruindo mundo, sugando estrelas e parindo mundo mas, ele parece ter mãos invisíveis, milhares delas, milhões talvez e às vezes, ele pressente que num planeta besta como o nosso, cheio de gente que não vale a poeira de um estrela, alguém precisa de um empurrão, de uma ajuda, de um incentivo e faz das suas.

fez de nós. depois desfez porque ele tem dessas também, não se importa muito com a gente e da mesma forma que nos junta, nos separa sem muito pesar. é assim que funciona. é assim que as coisas são. é assim que a gente é, deixa de ser, fica sendo e nunca é.

até hoje quando eu espero alguém que se atrasa, penso no que esse atraso pode me trazer e tenho vontade de atrasar os ponteiros só para ver se acontece de novo mas aí eu lembro que os ponteiros do relógio medem um tipo de tempo e que o universo mede outro tipo de tempo e que nesse meio tempo quem está perdendo tempo sou eu.

e eu fico então só lembrando desse dia quando o tempo deu certo para nós dois e esqueço do tempo até alguém me lembrar dele...


14 de jul. de 2020

Rabiscos

fiz um rabisco na página limpa.

que virou letra que virou palavra que virou frase que virou parágrafo que virou página que virou livro.


a gente não sabe bem porque precisa escrever, tem gente que não escreve e é bem feliz até se bem que medir a felicidade é algo difícil já que a felicidade para um pode ser a tristeza para outro e, como disse aquele russo, os felizes são todos iguais e os infelizes são infelizes cada um a sua maneira.

a gente escreve porque se não escrever fica doido, a gente que escreve tem aqui dentro uma panela de pressão no fogo eterno, quando ela ameaça explodir a gente escreve e ela se acalma até a próxima ameaça. a gente escreve porque a vida é pouca e as frases muitas e a gente precisa emprestar delas um extra pra poder seguir vivendo mas acima de tudo, a gente escrever porque ama.

mas não se trata de infelicidade mas de celebrar porque esse livro levou tempo para sair, trilhou um longo caminho e nasceu graças a ajuda de muita gente. na primeira semana de lançamento ele vendeu bem e eu espero (e trabalho) pra que ele siga vendendo. hoje, não apenas aqui mas no mundo (vá lá, aqui é pior), livro não se vende sozinho salvo você faça parte do panteão dos grandes autores cujo nome se encarrega de vender por si.

então você tem de batalhar e fazer teu livro ser visto, lido, notado e isso dá um tesão foda porque meus amores, se você não der atenção ao seu livro, quem vai dar? se você não tiver tesão no seu livro, quem vai ter? milagres literários são raros e se você ficar sentado esperando um vai morrer esperando.

eu estou mais do que feliz com meu livro, com meu editoramigo, com as vendas, com o apoio, atenção e interessa que está rolando e espero agora ansioso pelas resenhas e opiniões. sei que vou ouvir coisas boas e não tão boas mas escrever um livro é dar a cara a tapa então eu estou preparado e seja lá o que venha nada vai tirar o prazer e orgulho de ver meu livro vivo, sendo lido, circulando e quem sabe, emocionando pessoas.

Eu ia falar um pouco dele mas vou deixar um trecho do texto de orelha que minha guru Cris Judar gentilmente escreveu para ele:

"A (r)existência queer dos personagens, fortaleza temática, anímica e estrutural deste volume de contos, é representada via riso, lágrima, fetiche, gozo e crueldade – apenas para citar alguns dos vieses característicos da literatura de Willer, desde a publicação de seu primeiro livro e ao longo dos últimos anos.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
O autor desliza do drama à comédia, do ceticismo à credulidade, do carnal à ternura, com a agilidade de quem está longe de se subjugar aos estigmas, padrões ou lugares-comuns, embora, quando é preciso, ele saiba usá-los, com prazer, para levar-nos para onde ele quiser.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
As imagens que essas dezesseis histórias nos trazem podem ser vertiginosas na intensidade das cores e na crueza dos traços, e, no instante seguinte, mostrarem-se como a tela de uma paisagem – mesmo que na representação de uma selva urbana e de seus habitantes – composta por pinceladas e tonalidades suaves, concluídas sem a menor pressa".

e quem quiser um exemplar pode comprar diretamente comigo por $39,90 com frete grátis para todo país mas CORRE porque são os últimos exemplares!

o livro também já está à venda no site da Folhas de Relva Edições.

viu só? tá fácil, só comprar e ler e deixar o autor feliz!

7 de jul. de 2020

Quando chega um presente



Aí, um amigo seu que é um ator de mão cheia, resolve ler um trecho de uma resenha que você fez para o livro PAI PAI do João Silvério Trevisan e o resultado é esse aí.

Só posso agradecer ao Marcio Gomes por ser um amigo e um ator foda, nada além disso.

E, para quem quiser ler a resenha completa, só clicar aqui.

6 de jul. de 2020

NUNCA MAIS VOLTEI



SAIU!

Para todos que me perguntavam, saiu o livro novo 'NUNCA MAIS VOLTEI' pela Folhas de Relva Edições do querido Alexandre Staut.

O lançamento será virtual pois não há como dar mole para a pandemia mas assim que tudo isso passar de alguma forma, faremos um evento como manda o figurino e será um prazer ver todos vocês e abraçar e beijar.

O livro pode ser adquirido comigo mesmo, basta entrar em contato comigo por:



E-mail: alewillermelo@gmail.com

Valor: R$39,90 

O pagamento pode ser feito via depósito em conta ou transferência bancária e faço envio para todo o país, frete incluso no preço.

O livro também estará, em breve, nas plataformas online para venda e no site da editora mas essa primeira fornada só com o autor mesmo.

E, além de devidamente autografado, o livro vai com ese carimbo fofo com arte que o Josmar Madureira fez pra mim:


Fofo né? Vai ficar sem esse mimo incrível? Não, né?

Sexta 10/07, no Insta do Alexandre Staut, faremos uma live às 21.00 para oficializar o lançamento, fiquem de olho e passa lá pra dar um abraço online na gente.

Um beijo a todos!

💜

3 de jul. de 2020

Que tal quebrar as barreiras?

Tenho feito, como disse em posts anteriores, um esforço pata furar a bolha literária e conhecer a escrita de pessoas que também estão lutando por seu espaço, voz e visibilidade.

O clube fechado do panteão literário precisa ser desfeito e deixar novos ares penetrarem, novas ideias, novas letras mas, sabemos que isso é missão complicada e mesmo assim, seguimos nela com força e fé. Claro, ser reconhecido, laureado, ovacionado, premiado, quem não quer? Até o mais sonso mas, parece que ao transpor esse umbral e passar para essa outro lado algo muda ou seria impressão minha?

Da mesma forma, alguns dos prêmios mais cobiçados da literatura parecem fazer questão de atuar como peneiras sociais vide o exemplo de um dos mais desejados que cobra um bom punhado de dinheiros em sua inscrição fora os gastos com a compra e envio dos livros para a comissão julgadora. Oras, num país sem governo, pandêmico, desigual até a medula, pedir aos autores que ao custo de muito suor e lágrimas desembolsem essa grana é vilanesco, concordam?

Há quem diga que isso separa o joio do trigo mas, quem é o joio e quem é o trigo? Um autor que escreve seu livros e luta para divulgar seu trabalho e vender seus livros quase de porta em porta tem menos valor do que o autor que consegue todo o aparato mercadológico? Obviamente que não sou hipócrita, adoraria ganhar um prêmio, quem não gostaria? É meio que uma ratificação de que somos realmente escritores, um reconhecimento perante nossos pares e, claro, reconhecimento financeiro que escritor tem conta para pagar sim senhor, igual todo mundo.

Precisamos dar espaço e dar valor aos nossos amigos que lutam conosco, que escrevem conosco e essa tarefa que tenho me dedicado. Não deixo de ler os 'grandes nomes' e penso que todos merecem seu lugar ao sol, ganhar prêmios e serem reconhecidos, é o mínimo mas, se está complicado para quem já tem uma carreira consolidada, imagine para quem ainda tem de matar um leão por dia para conseguir escrever?

Nesse intuito, deixo aqui dois colegas que recém descobri e que valem um minuto de sua atenção.



Esse moço André Amadeu escreve a real, porrada na cara, suas crônica são extrações de um cotidiano cru e duro, você ler minha resenha sobre este seu livro aqui.


Esse outro moço Kaio Phelipe traz uma boêmia concreta singela de boteco urbano asfalto doce amargo doente de amores perdidos achados encontrados e perdidos novamente com uma singela aquarela de inocência que está no seu final mas ainda se agarra aos ossos, você pode ler minha resenha aqui.

E busque, procure, leia autores novos e independentes!

Tem muita gente boa aí precisando ser lida e reconhecida.

2 de jul. de 2020

E a vida é um emaranhado de marés


No post anterior, falei do processo de feitura do livro novo 'NUNCA MAIS VOLTEI' que deve sair na segunda semana de Julho pela Folhas de Relva Edições e, ao falar dele, acabei lembrando inevitavelmente do meu primeiro livro 'MARÉ VAZANTE' que segue independente pelo Clube de Autores.

Domingo faço cinquenta e dois anos e pode até parecer pouco nessa idade um escritor ter publicado apenas dois livros, eu mesmo às vezes me pergunto porque não publiquei mais, teria procrastinado? Seria medo? Preguiça? Não sei dizer e também, ser prolífico não significa necessariamente ter qualidade e se antes eu me preocupava em publicar mais e mais rápido num afã de soltar tudo que tenho por saber que o tempo joga contra e não quero ser um escritor póstumo, agora me preocupo mais em ter escrito algo que valha a pena ser lido, que de alguma forma deixe algum tipo de marca mesmo que o reconhecimento venha depois de eu não estar mais aqui e sim, todos queremos reconhecimento, o que nos diferencia é a quantidade dele que desejamos.

Desde que a consciência de ser me tomou, sei lá quando foi isso e há diferentes opiniões sobre, ache a sua e a abrace, senti a necessidade de escrever. Lembro que os primeiros ensaios, tímidos, foram transpor para o papel a trama de um filme que tinha visto ou algo assim, tenho uma lembrança clara de um filme muito antigo cujo protagonista deve ter sido um dos meus primeiros amores platônicos, tomado desse amor fui escrever toda a trama do filme como se daquela forma pudesse tê-lo para mim, mais perto, coisa de amoreco infante.

Depois disso, lembro de ter um caderno on pregava recortes de jornal, fotos e outras coisas que me chamavam a atenção e onde, ao lado das fotos, deixava algum tipo de impressão sobre aquilo. Depois, quando tomei contato com a ficção científica que virou minha paixão, lembro de ter escrito uma cópia mal feita de Star Wars novamente para ter algum tipo de proximidade com o filme que cativara minha imaginação.

Infelizmente, como todas ou quase toda nossa memorabilia desses tempos, tudo se perdeu de forma que não sei precisar, uma pena pois seria interessante reler tais relatos inocentes e ver como germinaram nos livros que soltei e nos que ainda pretendo soltar.

'Maré Vazante' foi mais ou menos isso, eu escrevia nesse mesmo blog que já morreu e voltou dos mortos inúmeras vezes, tinha um apanhado de textos soltos e acabei tomando coragem e resolvendo publicar um livro. Não me achava escritor então, só alguém que escrevia e publicar um livro foi mais brincadeira que ofício, todo o processo foi feito de forma independente e tive ajuda de pessoas queridas que doaram seu tempo para tornar o livro real.

Eu achava que depois dele eu publicaria outros e outros mas não tinha uma ilusão de sucesso ou notoriedade, apenas fique feliz de ter publicado um livro e foi esse momento que me deu a noção exata de que eu era um escritor, de que eu achara meu caminho, se havia nascido para alguma coisa, algum feito, algum marco, era aquilo sem sombra de dúvida.

Aos poucos, fui galgando meu caminho no mundo literário, acertei umas coisas, errei outras tantas mas segui adiante e confesso que durante certo tempo, ainda que me entendesse como escritor, não agi com a devida seriedade quanto a isso. Eu tenho um péssimo hábito de ir deixando as coisas andarem por si, como se elas fossem encontrar soluções por si dependendo de mim apenas para, ao final, acenar satisfeito coma cabeça e aprovação mas, não é bem assim que funciona, não é mesmo?

Entre MV e este novo rebento segui escrevendo e, como disse antes, minha escrita e a forma como a trato mudaram  muito, eu amadureci não apenas como gente mas, através do contato com escritores, editores e gente que leva essa profissão muito a sério, acabei aprendendo muito e tornando minha arte mais madura e completa.

Pode parecer espantoso que um escritor já cinquentenário ainda aprenda essas lições, há um consenso em nossa sociedade que a idade implica uma ciência das coisas, um saber quase intolerável, mentira, quanto mais velhos ficamos mais descobrimos que sabemos porra nenhuma e, se não admitimos isso e nos abrimos para aprender aí sim, envelhecemos de fato, não confundam jamais amadurecimento com envelhecimento, o primeiro é um processo contínuo que independe da idade mental ou cronológica já o segundo, bem, todos sabemos como funciona.

Se pudesse, como gostamos de fazer, voltar e dizer algo ao autor de MV quando o fez e lançou, diria que para ele não parar de escrever e acreditar que a escrita é algo mutante, não restrito ao seu tempo e nicho. Escrever é uma arte e um presente, pode ser uma sina mas apenas para quem encara dessa forma, pode ser um fardo se você prefere ou um alívio se você sabe como enfrentar o processo.

Para mim, escrever sempre foi um prazer, um gozo, um mistério que me tira daqui e me leva para outro lugar onde tudo pode ser e acaba sendo, quando eu perder esse tesão, paro de escrever e vou fazer outra coisa.

1 de jul. de 2020

NUNCA MAIS VOLTEI






Custou mas saiu!

Melhor, vai sair na segunda semana de Julho meu livro novo ' NUNCA MAIS VOLTEI' pela Folhas de Relva Edições do meu querido Alexandre Staut.

Na verdade, esse livro está pronto faz um tempo já mas, por uma série de fatores, acabou saindo só agora, um hiato considerável se pensar que meu primeiro livro 'MARÉ VAZANTE E OUTRAS ESTÓRIAS' foi publicado de forma independente em 2010 e depois, pela Editora Escândalo em 2013 (hoje, está à venda no Clube de Autores novamente de forma independente).

Houve uma diferença considerável entre a feitura do primeiro livro e deste novo e em diversas formas. Além de ter amadurecido como escritor (não renego meu primeiro mas, penso em reeditar porque quando o releio, vejo que muito ali pode ser melhorado e não porque estava ruim mas porque hoje, sou um escritor mais formado, mais profissional), amadureci como pessoa, como ser humano e estou bem mais inserido no mundo literário.

Se antes eu encarava a escrita e a literatura como algo não profissional ou até mera diversão, o tempo e as pessoas que acabei conhecendo me abriram não apenas caminhos mas a mente e passei a tratar a escrita com a seriedade que ela merece sem perder o prazer em fazê-lo porque, caso contrário, eu certamente teria parado de escrever.

Ainda tenho imenso prazer nisso mas, aprendi que não é desculpa para descuidar da minha escrita, escrever é algo delicado e que demanda atenção, cuidado e um bom grau de cometimento e profissionalismo, coisas que aprendi com amigos escritores que me fizeram adquirir essa consciência e respeito pelo ofício de escritor.

Pode parecer, para quem está de fora, que escrever é algo fácil, simples e até mesmo um passatempo, um hobby, não algo que se deva levar a sério tanto que, muitas vezes, quando falamos que somos escritores invariavelmente segue a pergunta 'Mas, o que você faz pra viver?', como se escrever não fosse um trabalho, uma ocupação de verdade mas uma brincadeira, algo que fazemos no tempo livre mas não pode ser encarado como profissão ou ser remunerado.

Esse livro é para mim o resultado de todo esse processo de amadurecimento pois ele mudou muito desde sua versão original. Se antes eu o publicaria com um mínimo de cuidado prezando mais a publicação em si, o fato de ter publicado um livro, agora o trabalho foi de esmero, lapidação, olhar cuidadoso, revisão, releitura, adequação, profissão de fé e foi aí que me dei conta de que sou mesmo um escritor e que essa é a diferença entre ser um escritor e alguém que escreve.

Foi e tem sido uma jornada incrível e sou grato e muita gente que me acompanha e que não vou citar aqui porque já estão nos agradecimentos do livro, do Face e vocês sabem muito bem quem são e da importância que tem para mim nesse processo de me tornar um escritor e ter orgulho disso, de poder me chamar assim e de poder olhar para vocês e dizer isso com brilho nos olhos e sorriso no rosto.

Eu não seria o escritor que sou hoje e a pessoa que sou hoje sem a presença de vocês então, deixo aqui apenas um OBRIGADO a todos vocês que sempre estarão comigo e nas páginas que já escrevi e nas que vier a escrever.

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10 Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu nam...