24 de jul. de 2020

para quem carrega um cobertor



dia dessas, veio uma lembrança de assalto, do nada, dessas que saem de algum lugar do cérebro que parece ter a única função de acomodar memórias ladras e soltá-las para nos pegar desprevenidos, pensando o que teria causado aquela recordação, incapazes de entender qual gatilho foi responsável como se fôssemos animais de laboratório que não conseguem ser condicionados.

quando comecei a arranhar a superfície de minha sexualidade, imberbe de vida e de idade, a primeira experiência foi com um amigo de escola. não sei quais caminhos ele seguiu pois nos perdemos nos meandros da vida, se abraçou sua sexualidade, a sublimou sob camadas de normatividade, passou por essa experiência incólume, não sei dizer e, às vezes, bate um desejo de saber-lo, ver como a vida o tratou, o conduziu e se aquilo que vivemos ainda lhe causa esses roubos de memória ocasionalmente.

foi o primeiro beijo (beijo apenas porque beijo não precisa ser guei, hétero, bi ou seja lá o que for, beijo é beijo, conjunção de bocas sedentas, nada além disso), a primeira masturbação, o primeiro sexo oral, aprendemos às cegas, colocamos os paus nas bocas e eles ficaram lá, flácidos, inertes, que fazer depois de por na boca? era uma época de inocências, lembro de colocar seu pau na boca e ter ficado esperando que algum milagre acontecesse, nos olhávamos como a esperar algum tipo de revelação mas nada aconteceu, fui correndo lavar a boca porque então, associava o pau com algo sujo, o pecado plantado, a ciência de que era errado ainda que quisesse ser certo. com o tempo, fomos descobrindo que o prazer não acontece caído do céu, há de ter certo trabalho assim como praticamente tudo na vida.

não diria que nos amamos pois éramos novos demais e amor era uma palavra estranha em nossas bocas ainda mais aquele amor que nos apavorava ante sua descoberta e em ser descoberto mas, acho que de alguma forma fomos importantes um para o outro. certo dia, estava em casa depois da escola e ele me liga (era tempo de telefone fixo). atendo e ele diz estar sozinho em casa, nossos encontros eram assim, nas frestas, nos espaços de tempo que tínhamos sós, encaixando nossos corpos entre minutos e segundos para caber um desejo que vazava, me troquei e fui para sua casa que ficava relativamente perto da minha.

chegando lá, toquei a campainha, ele atendeu, acho que pude ver um brilho em seus olhos mas hoje não sei dizer, podia ser apenas tesão. entramos e a ansiedade do momento era palpável em nossas peles, a casa era grande e estava vazia, ele me conduziu por cômodos decorados com uma sobriedade que apenas famílias antigas sabiam emprestar aos seus lares. chegamos na sala que estava a meia luz, lembro das cortinas meio cerradas e pelo espaço aberto entrava uma lâmina de sol leve caindo sobre o sofá e dividindo a sala em duas partes escuras e, naquele meio de luz solar, no chão sobre o tapete, estava um cobertor jogado no chão, talvez fosse uma daquelas tardes de outono ou inverno onde o sol tem de trabalhar dobrado para aquecer a gente.

nos deitamos no chão e nos cobrimos com o cobertor e ficamos ali, quietos a princípio mas depois nos beijamos. não lembro de houve sexo, tenho quase certeza que não, apenas ficamos ali nos beijando e acariciando, trocando peles, trocando desejos, trocando tesão, trocando olhares e acho que naquele momento nos amamos sem nos darmos conta disso.

não sei ao certo quanto tempo ficamos ali mas sei que é a primeira lembrança clara que tenho de estar no amor de outro homem. se tivesse de traçar meu caminho de volta até o momento em que tive certeza de que não apenas o sexo mas o amor de outro homem me completavam, acho que acabaria nesse momento, naquela sala, debaixo daquele cobertor, com aquele garoto que me olhava com uma estranheza sagaz e um desejo terno e com meu olhar incerto de não saber o que era aquilo.

queria que fosse possível a viagem temporal não para alterar passados ou conquistar futuros mas apenas para voltar àquele momento e ficar ali observando o nascimento de um amor que não sabia estar nascendo, olhar e apenas contemplar e talvez dizer ao garoto que fui que tudo bem, tudo ficaria muito bem.

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