17 de dez. de 2020

pequenas lembranças aleatórias

 



O relato abaixo é real e se passou há muito tempo, quase igual ao preâmbulo de todos os filmes da saga Star Wars.

Estava solteiro, como não nasci para a clausura, buscava ocupar a vaga. O moço em questão, já havia cruzado comigo na noite em diferentes ocasiões mas, não o sabia surdo. Certa vez, estava na Vieira, no dia anterior ao G-Day Hopi Hari tomando meus gorós quando alguém chega em mim e diz: ‘Meu amigo quer te conhecer’, estando ele sozinho, ou o amigo era imaginário ou estava ele bêbado, destino ao qual me encaminhava à passos largos. Percebendo o ar de dúvida, apontou para um bar do outro lado da rua onde me encontrava, entendi que o moço estava lá e o segui até ele.

Chegamos, e não é que era o surdo que trocara olhares comigo tantas vezes antes? Ainda sem sabê-lo surdo disse oi e então, seu amigo (que ouvia muito bem) disse: ‘Ele é surdo’. Suspense, como se a revelação fosse o ultimo segredo de Fátima, tempos depois, entendi o porque quando, ao irmos numa boite com amigos dele e já o namorando, um desses amigos (também surdo e extremamente pegável) começou a trocar olhares com outro cara que, ao chegar nele e constatar sua surdez, deu-lhe meia dúzia de beijos para fazer tabela e, alegando o chamado da natureza, embarafustou clube adentro para nunca mais voltar. Fiquei chocado mas o rapaz que levou o fora assimilou bem e ainda me disse que era comum, que ele estava mais do que acostumado, eu não e ainda acho que foi uma das pires cenas que já vi.

Voltando a vaca surda, nos cumprimentamos e começamos a conversar ou o mais próximo disso dado que sou analfabeto de Libras e, encurtando, acabamos um na boca do outro, surdos são ótimos amantes, não perdem tempo com palavras ou aparências, dão valor ao toque e intuem tudo o que nós, falantes, dissimulamos entre as frases tornado o ato de ficar, gostar e amar algo complexo, jogatina e um absurdo de incompetência. Ao final, ele precisava ir e me disse que estaria no Hopi Hari no dia seguinte, nos despedimos calorosamente. Fiquei ansiando pelo dia seguinte, queria ir com ele mas respondeu já ter marcado com amigos e que nos encontraríamos lá.

Eu no parque louco atrás do moço, besta, não tinha marcado um lugar para nos encontrarmos e fiquei caçando o lugar todo por ele quando, finalmente, o vejo saindo do mesmo brinquedo em que eu acabar de andar. Para meu infortúnio, ele fez que não me viu quando tenho certeza de que o fez pois passei bem à sua frente mas, como nem mesmo fez menção de minha existência, esfriei meus ânimos e os cobri com desgosto deixando que o resto do dia se acabasse num amargo e triste fim.

Passou-se um tempo e nos reencontramos, dessa vez ele me viu. Veio falar comigo, desculpou-se, à época estava num relacionamento complicado e fora um erro alimentar minhas esperanças, estava livre agora e queria muito ficar comigo. Desacreditei, expus meus temores e rancores, ele ouviu calado (claro), só podia fazer mais desculpas as quais, ao fim de alguns drinks, aceitei. Se há fato mais verídico do que relacionamentos serem loterias, desconheço; porém, falhamos ao ler os sinais de que o prêmio se acabou e que precisamos voltar ao jogo.

Engatamos a coisa e conheci os amigos com quem ele dividia um apartamento, todos não surdos e muito simpáticos. Nesse dia, me contou já ter sido casado e ter um filho o que para mim nada mudou. Fomos nos afeiçoando, o sexo era fora do comum, fodemos com a boca, não com a genitália, a profusão de ais/uis e demais expressões inerentes ao sexo inexistiam ali dando lugar a um silêncio pornográfico e um sexo mudo mas arrisco dizer mais sentido do que o gritado entre unhas e dentes.

Conheci sua ex-mulher e seu filho, todos eram simpáticos e cheguei a apresentá-lo aos amigos pois a coisa ia séria. Fomos à uma festa de aniversário de um amigo dele e esta penso ter sido uma das experiências mais estranhas que já passei. Todos eram surdos, apenas eu ouvia; era uma festa, havia bebida, comida, pessoas conversando (em Libras, óbvio eu era o único que ouvia) mas não havia música e para que haveria? Porém, engana-se quem acha que eles por não ouvir, não sentem a música, quando íamos a boites, ele preferia ficar o mais próximo possível das caixas de som pois assim poderia sentir as vibrações da música e ‘ouví-la’ o que deve ter me custado alguns decibéis da audição.

Nessa festa, lembro do ar de surpresa quando ele me apresentou como seu namorado dizendo que eu escutava, incrédulos, me olhavam com um misto de surpresa e inveja do amigo que conseguira quebrar a barreira do som. Tudo ia bem e, como de praxe, tão bem que começou a azedar. Não emito julgamentos, não desejo isso para mim e nem tenho outorgado o direito de apontar o certo ou errado, cada um deve saber para si tais coisas e cuidar de sua vida, fosse sempre assim, o mundo seria um local agradável.

Não sei o que houve, pessoas são estranhas e reagem de formas absurdas ante os problemas da vida. Ele, vim a saber depois, passou a não cumprir suas obrigações para com os amigos que dividia moradia, descobri que seu filho usava por fraldas sacos de supermercado e que sua mulher ameaçava com a Justiça e guarda do filho, tudo culminou com uma ligação de seus amigos dizendo que ele sumira da noite para o dia levando o que podia do apartamento incluso alguma grana dos moradores e pertences menores dos mesmos.

Desabei, creio mesmo que seus amigos meio que desconfiaram se eu não o acobertava mas, acho que fui sincero o suficiente quando os encontrei e puderam ler em minha face a desolação do amor quebrado e convertido em drama. Não havia explicação possível ou plausível e as revelações do parágrafo acima se deram quando estes amigos dele me confrontaram. Saí de lá desolado e com a promessa de que caso ele fizesse contato, os avisaria pois eles pensavam mesmo em por a policia atrás dele se tivessem o cheiro de seu paradeiro.

Cai em mim e notei que além do desfalque na casa, sofrera eu um: relógio que gostava muito e que antes de sua evaporação lhe emprestara com juras de amor. Recriminei minha inocência sentimentalóide e assumi o prejuízo. Dias se passaram e recebo uma ligação dele (através de um amigo), estava no sul do país e viria a SP, queria me ver, devolver o relógio. Hesitei, não queria mais vê-lo, que ficasse com as horas que me roubara, as marcasse no objeto furtado mas, resquícios do amor falaram mais alto e cedi marcando dia e hora para encontrá-lo e tentar por senso em naquela comédia toda errada.

Fui ao encontro, não avisei aos amigos que o veria a pedido dele mesmo pois lhe dissera que lhe poriam a ferros se o vissem. Nos encontramos em Santana, rapidamente, não me lembro se houve alguma explicação, se houve a sublimei com o fato de que não teríamos mais nada. Acho que houve um pedido de desculpas, o relógio me foi devolvido e antes de nos despedirmos lembro-me de lhe ter dito que o gostava demais.

Acho que ele também pois seu ar era de devastação, não precisava ser surdo para fazer o silencio que seguiu. Ele foi embora e eu segui meu rumo, acabei falando aos amigos enganados que o vira o que serviu apenas para cortar nossos laços já frágeis, não acreditaram ou aceitarem que não os tivesse avisado sobre o encontro.

Nunca mais o vi.





Um comentário:

  1. Quando eu comecei a ler o texto, lembrei de três surdos com quem eu já fiquei em momentos diferentes da minha vida. Todos os três foram espetaculares, mais um deles foi muito especial. E toda vez que eu encontrei depois que paramos de ficar juntos, ele falou comigo e sempre tínhamos coisas boas a compartilhar um com o outro.

    Na continuação do texto fiquei muito triste por saber que ele é uma pessoa desorientada na vida, literalmente falida, e tendo a quem sustentar além de si mesmo.

    Me coloquei no seu lugar em relação à decepção.
    Já me decepcionei também em mais de uma relação, especialmente uma na qual apostei bastante, para não dizer muito, numa pessoa era desonesta, mas não parecia. Na outra, a pessoa era honesta, mas bipolar em relação ao que sentia e ao que queria da vida comigo. Depois que ele pediu para terminar comigo, ficou se lamentando que tinha sido a pior coisa que ele tinha feito na vida. Mesmo com duas tentativas dele de voltar a ficar comigo, eu disse não e cai fora . Posso perder o relógio, para citar o teu episódio com o surdo, mas não vou perder tempo duas vezes com a mesma pessoa.

    Ficaram as embranças, meu amigo, dos momentos bons e ruins.

    É preciso, acima de tudo, viver i presente, que, no.meu caso, tem sido muito melhor do que o passado.

    Um beijo para você e obrigado por compartilhar esse texto comigo.

    Beijos,
    Sergio Viula

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