21 de mar. de 2010

mater dei



A que me trouxe ao mundo há um bom tempo se foi restando apenas lembranças. Nunca fui muito de reviver os mortos posto que eles pouco podem fazer pelos vivos. Se um dia tirarei isso a prova e se aquela que me pariu virá me cobrar por não ter lhe prestado homenagem póstuma como devido é assunto a ser ainda revelado e que não poderei, creio eu, compartlhar convosco salvo algum mediúnico o que, acho, não farei pois uma vez morto certamente terei mais o que fazer do que falar com os vivos.

Enfim, isto me inspirou a lembrar de quando meu armário foi aberto. Hoje com mais de quatro décadas nas costas parece coisa distante, quase fictícia mas aconteceu mesmo. À época, eu beirando os vinte anos acho eu, pouco menos, conhecera uma cara do sul, nos escrevíamos com frequência (sim, sou desse tempo) e depois de várias missivas nos encontramos em SP. Foi algo meio abstrato pois ainda que não tenhamos tido nenhum contato físico seja por minha inexperiência então ou pela dele (não me lembro direito, deveria ter minha idade ou pouco mais velho) algo deu liga e adorávamos estar um com o outro.

Ele passou uma semana em SP e nos vimos todos os dias, íamos a shoppings, lanchonetes e lugares assim pois, ao menos para mim, o mundo guei não existia e nem mesmo me usava o termo por não saber se podia fazê-lo. Um dia antes de ir, ele me pediu que fosse com ele, que em Porto Alegre ele poderia me bancar e que poderíamos viver bem o que me apavorou e deixou encantado ao mesmo tempo.

Eu fiquei, como poderia ir? Como lidar com minha familia? Nem mesmo sabia o que era amor...Enfim, ele se foi e as cartas pararam como deveria ser mas mantive nosso histórico guardado entre a coleção de Monteiro Lobato numa antiga estante em casa o que me parece hoje algum tipo de simbologia.

Ainda apegado ao que se rompera, resolvi ir, pouco tempo depois, à casa de um amigo meu da época que morava no interior (e que era um fuck buddy mas essa é outra estória) para mudar os ares e fuder com ele para apagar o gaúcho de mim. Fui e lá fiquei uns dias.
Quando de minha volta, resolvi pedir que meus pais me pegassem na rodoviária e já ao telefone senti que a voz de minha mãe não era a de costume. Havia algo estranho e se os pais conhecem do avesso aos filhos, o contrário também é verdadeiro vide que um e outro são entranhas mútuas. Não dei atenção e peguei meu caminho de volta.

Chegando na rodoviária, estão lá os dois a me esperar no carro. Entro e o clima é ártico, digo oi e eles respondem com uma falsa calma. O caminho pra casa é alongado pelo silêncio e, ao embicar o carro na garagem de casa sou interceptado por uma pergunta sem arestas:

'Achamos suas cartas, daquele rapaz do sul..' diz ela. Eu não tinha o que retrucar, parecia impossível que estivesse acontecendo, ela continuou 'É verdade?'

Meu pai permanecia com o carro ligado como que para evitar que a conversa extrapolasse o interior do veículo e sem emitir um som sequer, os olhos fixos na porta da garagem.

'É' foi tudo que consegui dizer, não podia dizer mais nada.

'Seu amigo do interior' disse ela 'tem algo com isso?' perguntou ela desconfiada.

'Não! Ele é só meu amigo mesmo, juro!' disse eu apavorado que ela me proibisse de vê-lo.

'Filho' disse ela 'vamos ajudar você, no que for preciso, não sei, o que você achar que precisa e...' não completou a frase pois o choro rompeu solto e meu pai baixou a cabeça mas eu podia ouvir seus soluços baixinhos.

'Mãe' disse eu 'Não sei o que é mas sei que eu amo vocês dois do mesmo jeito e não queria que isso acontecesse, juro' já mal articulando as palavras entre o choro.

Pus o corpo para a frente e fiquei entre os dois, no espaço entre motorista e passageiro e nos abraçamos. Senti que naquele dia matara alguns sonhos de meu pai e desonrientara minha mãe e não sabia como seguir dali pra frente. Com a melhor das intenções, eles me colocaram na terapia o que só cimentou a certeza de que eu era mesmo guei. Quando isso não era mais inevitável, inegável ou contornável, minha mãe me disse:

'Filho, você vai ser feliz assim?'

'Sim' respondi 'é o que eu quero, mãe e até já tenho namorado....' arrisquei pois era muita informação para uma mãe recém sáida do armário.

Ela se resignou e disse 'Bom, se é assim, quero que você seja feliz mas tome cuidado..você nunca deixará de ser nosso filho'.

Meu pai a começo não quis tomar partidos mas ainda me tratava, na medida do possível, com o mesmo carinho e amor. Muito tempo depois passei a levar meu namorado à época em casa e eles o tratavam como meu namorado e não amigo e hoje, se apareço sem wans em casa o pessoal reclama e pregunta sempre dele pois sabem que é meu companheiro e moramos juntos.

Se a sorte existe eu a tirei quando nasci em uma família que, não sem traumas, me aceita e me entende, coisa sem preço e que não há quem ou coisa qualquer que compre. Disso tudo tive certeza quando meu pai, já com idade, um dia me perguntou:

'E o Wans, filho?'

'Não pode vir, pai' respondi.

'Ele é um bom moço, gosta muito de você, você deu muita sorte...'

7 comentários:

  1. Não posso falar, tô com os olhos cheios de lágrimas.

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  2. Amigos, tive a felicidade de conhecer voces pessoalmente [isto sim é que é sorte] e, naquela noite tivemos a oportunidade de falarmos um pouco de nós, de nossas intimidades, de nossas vidas. Na ocasião, um pouco disto deixamos transparecer não foi? Enfim, sorte ou não, mas também muito de luta e conquista de nossa parte, que fomos coerentes com a nossa verdade e não com verdade dos outros. Eu e o meu DD, fizemos quase que a mesma caminhada, claro que, tendo que vencer medos de ambos os lados, mas o resultado foi exatamente este ... Hoje somos um casal, aceito, respeitado, admirado como tal por nossas famílias e por todos os amigos héteros [que não são poucos] e suas respectivas famílias.

    Obrigado pela referência querido.

    Mello! Ler isto aqui hoje, foi muito bom ... tomara que muitos outros gays leiam e que percebam que, em que pese cada um ter a sua história, o bicho não é tão feio quanto pintam ou pintamos em nossas mentes. O caminho é este mesmo ... não abrir mão de suas próprias verdades e lutar com convicção para mostrá-la aos verdadeiros amigos.

    Wans! Também me derreti aqui ... isto é prova de que a união de voces é algo muito forte e muito lindo ... assim como a minha e a do DD ... que bom podermos chorar de felicidade não é?

    Bjux aos dois

    ;-)

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  3. Eita, lindo mesmo isso... :-) Parabéns pra vocês!!

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  4. tb tive minhas "cartas" encontradas pela minha família..mas a repercusão foi outra...mas deixa pra lá.

    adorei vc compartilhar conosco, estranhos, sua história de vida.

    Bjão e todo amor do mundo pra vc e pro Wans

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  5. Esse texto diz muito de ti também! Apaixonei! Parabéns para seu e sua mãe - onde quer que estejam - pois fizeram um ótimo trabalho: você!!! Hugz!!!!

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  6. putz, minha familia também é show comigo! adorei o relato!

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  7. E lá se vão 13 anos. Disse eu aos meus pais que estava saindo com um amigo gay. Eles não entenderam direito mas como se tratava de um ser lesado como eu eles abstraíram.
    Um dia, não esqueço, depois de bebermos a noite inteira e tomarmos café da manhã juntos, o Melo me deixou em casa, minha mãe estava no portão saindo para comprar pão. Assim que o carro partiu ela disse"Nossa, ele é tão legal com você, vocês parecem irmãos."
    De alguma forma, a partir daquele dia senti que ela aceitou nossa amizade, por mais que não entendesse nada, ela o olhou com respeito.
    Este cara dono deste blog aí, sem saber, influenciou mais do que imagina.

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