26 de jan. de 2012

a festa

aos amigos que sempre estão por aqui, volto dia desses, no meio tempo, algo que é fantasia mas também (foi um dia) real, bem real.



Lembro daquela festa, arrumamos tudo, idas e vindas levando enfeites, pessoas, bebidas. Lembro do posto de gasolina onde enchemos dezenas de bexigas pretas e brancas, o carro cheio delas, algumas fugiam de nós como fugimos de nós mesmos e corríamos para pegá-las mas a nós jamais alcançamos.

O carro lotado de bolas parecia algo saído de um circo, nós dois nos bancos da frente os palhaços, clichês de nós mesmos, rindo por fora e apáticos por dentro. Já não éramos, fazia um tempo mas a cola que nos unia parecia indissolúvel às promessas de separação e de mera amizade, esse tipo de lenda urbana que permeia os ex-casais.

Cordiais, mantínhamos um bom relacionamento sem dar o espaço e o tempo necessários um ao outro para que os laços efetivamente se rompessem e pudéssemos quem sabe num futuro nos olharmos com ternura. Éramos jovens demais, ignorantes desses procedimentos pós-amorosos e de alguma forma cármica incapazes de abrir mão um do outro ou ser, efetivamente, um do outro. No meio disso, achávamos tempo para sermos o que podíamos ser para nós mesmos e o sexo que brotava disso deixava um gosto amargo na alma depois do gozo.

Festa grande, estávamos animados e nem era nossa, de um amigo mas a tratamos como se fosse nossa. Você estava sozinho ou sem ninguém que representasse algum compromisso, eu estava iniciando algo com alguém que se não era você, o lembrava. Meio que o oposto do que eu (achava à época) que queria mas ele tinha um real interesse em mim e eu começava a sentir o mesmo por ele, não tinha parâmetros para comparar, você fora o primeiro e mais marcante, não sabia como escolher algo diferente de você no mercado, o diferente me assustava.

Tudo quase pronto, as pessoas começavam a chegar e eu precisava ir buscar meu moço, ia me acompanhar na festa, estávamos bem e eu achava que ia me libertar daquela simbiose meio nefasta que vivíamos. Fui buscá-lo, de quebra, trouxe o DJ que daria som na festa, conhecido nosso, me perguntou sobre você, no carro, eu já com meu moço e uma amiga deste, disse que estava bem mas que não estávamos mais juntos, clima tenso, o moço sentiu o peso no ar, desconversamos. Eu queria gostar dele apesar das diferenças que, se não eram intransponíveis, eram para mim gritantes mas havia mesmo um afeto brotando e o nutri crente de que faria tremer as barragens, imaginarias ou não, que punha entre nós, sentia um gosto de futuro, promissor, dali podia sair algo bom e isso me animava.

Chegamos, a festa já ia alta, muita gente. Acomodamos o DJ e expliquei ao meu moço que estava ajudando nosso amigo e que por isso, não poderia assim aproveitar a festa com ele como desejava. Vocês já se conheciam pois, no dia em que ele me abordou, estávamos juntos num clube, juntos, mas separados, achávamos que podíamos viver assim próximos mas sem nos amar plenamente, queríamos a companhia um do outro mas não o amor, não fechávamos essa equação, quando tentávamos resolvê-la, nos noves fora, acabava a conta não fechando e o final, apesar de sermos par, era sempre ímpar.

Mas achei que era diferente, abria-se o caminho para a libertação e acreditava mesmo que acharíamos nossos caminhos separados mas ainda juntos. Quisera eu saber naquele tempo que maquiamos essas mentiras tão bem que nos parecem verdades, hoje, já não aceitaria essa imitação barata e poria tudo em pratos limpos pois teria antevisto a dor e sofrimento embutidos, escamoteados em nossas aparências de maturidade e amizade fraterna.

Meu moço dançava, eu e você trabalhávamos. A certa altura, você me acua num canto, eu acho mesmo que estava a lhe evitar a noite toda, receoso do ar faminto que captara em você, confuso por não saber se não me queria feliz com outro ou apenas não me queria feliz salvo na infelicidade que compartilhávamos amiúde.

‘Você está me evitando a noite toda...’ brotou a acusação de sua boca e olhos cabisbaixos.

Emudeci, neguei mas era incapaz de fixar meus olhos nos seus.

‘O que você quer com esse cara?’ soltou você seco.

Não sabia o que responder, olhei o chão.

‘O que você quer com esse cara? Ele não tem nada a ver com você, como você pode?’ veio você mais incisivo.

‘E você que o que de mim?’ bruto ‘Não sei, o que você espera? O que quer? Não estamos mais juntos e ele gosta de mim’

‘Gosta?’ respondeu você ‘Mesmo? E você gosta dele?’

Fiquei mudo, esperava que o chão me ajudasse a responder.

‘E você? Gosta dele? Sério mesmo?’ insistiu você.

‘Sim’ sussurrei.

‘Olha pra mim e repete isso que você falou’ disse você.

Vai chão, me ajuda!

‘Olha pra mim, porra! E repete isso que você falou, diz que não sente mais nada por mim’ e com as últimas sílabas saiu um choro honesto, sentido. Antes que eu compartilhasse de suas lágrimas, saí esbaforido para encontrar meu moço. A festa seguiu, nos evitamos a noite toda mas de relance vi os copos e você em grande intimidade.

Chegava o fim da festa, pessoas indo embora e resolvo dar carona a você e outros amigos que moravam ali perto. Vamos, digo ao moço que volto logo, coisa de minutos, que me espere, ao sair, uma amiga nos vê e profetiza: ‘Não demora!’ com olhar de que sabia como se fecharia a noite. Saímos e um a um deixo todos em casa, você é a ultima entrega da noite.

Desço do carro, você está meio alto, digo até logo mas você me faz entrar, não queria, ou queria sem querer e dentro de sua garagem você me ataca, me aborda e eu ainda em abstinência de você não resisto e tenho uma recaída homérica, nos amamos com fome, desejo voraz, os beijos parecem tirar nacos de carne de nossos corpos, juramos amor, maldizemos a nós presos nesse moto perpétuo de desejo e necessidade absurda, gozamos avidamente e me sinto culpado.

Você entra em casa com reintegração de posse e eu no carro, volto para a festa e encontro meu moço dormindo, a amiga vidente que lê em minha face o que se passou, não tenho como negar, ela nos conhece bem demais para lhe escondermos o que somos, reprova, entende mas reprova, sei disso em seu silencio como veredicto.

Acordo o moço e o levo para sua casa, no caminho, seu sono me poupa maiores constrangimentos, estampada em minha testa a letra escarlate, inicial de seu nome, grita e ri apontando para o sonolento ao meu lado. Deixo-o, beijos e nos vemos amanhã.

Amanhã vira depois, depois vira depois de amanhã e assim vai até que não há mais como torcer esse parafuso e, espanado, solta-se em minha mão, incapaz de mentir mais sobre meu desejo ter voltado a quem lhe quer não querendo. Luta, raiva, tristeza e depois calmaria, o moço vai viver, sobreviver, eu não, nunca pois você não queria e eu queria não querer.

Volto ao mesmo esquema, somos dois mas nenhum, presos nessa metamorfose de amor que não soubemos moldar ou compreender e apenas felizes por não sermos um do outro e também de mais ninguém.

10 comentários:

  1. Um cenário que já vi tantas vezes...

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  2. Caraca! "Apenas felizes por não sermos um do outro e também de mais ninguém!" A maioria das epopeias amorosas chegam a esta encruzilhada. Isto pq o homem é cruel consigo mesmo, ainda se apercebe do amor como propriedade, como algo q se manipula, como algo q subsiste por si só. Não o amor é algo q se constrói e se reconstrói todos os dias. Ele exige oxigênio, umidade, adubo como uma planta q passa a todo o tempo germinando sem nunca atingir a maturidade...

    bjão querido ... muito lindo isto

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  3. aff
    minha tensão toda era pra saber se era real ou um conto...
    fiquei confuso até ver a tag...

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  4. Opa! Eu, rebelde sem calça e sem cachaça, vou peitar o desafio e fazer dar certo a amizade! Ou não, que hoje em dia não dá mais pra prometer "vida eterna" e "vai dar certo" a coisa alguma. "Enquanto dure" tem que bastar - e que dure bastante!

    Lindo conto - forte, verdadeiro, quase cruel.

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  5. Festinha agitada...
    Adoro festas, e com um bom DJ a coisa flui melhor...

    Os "pegas" foram envolventes...
    Gozar e sentir-se culpado...rs situação tensa hein...
    Abraços

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  6. uau!
    me deixou aqui sem palavras!

    lindo querido! lindo!

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  7. Eita... as prisões que escolhemos, até que... sei lá. Saudades. Bj

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Embora desconsertante o fato,
    Absurdamente bem escrito...

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one is the loniest number...

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