10 de fev. de 2015

Bico doce



Alguns quadrinhos transcendem qualquer explicação ou emoção, são obras de arte que deveriam estar em museus, arrisco dizer. Nesse panteão, poucos subiram em minha opinião e não vou aqui fazer listas porque seria algo inútil e subjetivo, cada um de nós que aprecia a leitura sabe e tem lá os seus.

Recentemente, li 'Sweet Tooth' de Jeff Lemire e ao final chorei como não o fazia há tempos (salvo por situações não ligadas a leitura). A trama gira em torno de Gus, um híbrido animal/humano e sua jornada para conhecer de onde veio e qual seu papel no mundo pós-apocalíptico em que vive no que é ajudado pelo 'durão' Jepperd.

Há muita semelhança com 'The Walking Dead', não há como negar. A humanidade está em extinção vítima de uma praga incurável que dizimou quase todos e aguarda pacientemente para ceifar os últimos remanescentes de nossa raça. Os poucos sobreviventes lutam como podem para seguir em frente confirmando a máxima de que não há estrutura social que suporte a lei do cão, implantada por necessidades superiores à regras e costumes acordados tacitamente quando não há nada em risco. 

No lugar de zumbis, temos crianças e adolescentes híbridos de animais/humanos, os únicos imunes à praga, os zumbis somos nós mesmos vagando a esmo apenas aguardando a morte chegar, nem mesmo a sobrevida como morto-vivo é possível. Gus foi criado em isolamento pelo pai em fervor religioso pregando que apenas o lugar onde viviam era o novo Éden e o resto do mundo era fogo e perdição. Quando Gus vê-se forçado e sair desse paraíso, é na figura de Jepperd que encontra um protetor disfarçado de casca-grossa mas que, no melhor estereótipo possível, sob essa carapaça criada para defender-se de um mundo em frangalhos, ainda é um ser humano na melhor concepção da palavra, talvez sua única redenção ante o fim inevitável. Na jornada, Gus encontra outras 'crianças-bicho' e vai tomando conhecimento do mundo que seu pai demonizava perdendo aos poucos sua inocência e aprendendo como era o mundo humano antes de seu fim e como ele ainda, moribundo, se agarra às mesmas coisas tão moribundas quanto ele.

Não vou dizer mais para não estragar a surpresa de ler algo original, terno e extremamente bem feito. 'Sweet Tooth' é uma fábula sobre como deixamos tudo que é bom em nós morrer, como deixamos de lado as coisas que realmente importam em detrimento de valores e conceitos vagos e impostos pela sociedade. Também é uma fábula sobre a perda e o reencontro do que nos define como humanos e animais, como nos distanciamos de um e nos aproximamos do outro e de como a linha que separa os dois é algo extremamente tênue dificultando muitas vezes identificar quem é o animal e quem é o humano conforme a situação.

É também sobre esperança no futuro e como pode ser necessário destruir algo feito erva daninha para que do solo novo, nasça algo puro e revigorado. Nesse sentido é melancólico pensarmos que esse hoje que vivemos e prezamos tanto pode ser a semente de algo que não chegaremos a ver e há o medo que comungamos de ter passado por aqui sem deixar qualquer tipo de marca ou registro sendo, muito lá na frente, apenas uma lembrança vaga e quase inexistente, lenda pura.

Se você vier a ler 'Sweet Tooth', nas páginas finais vai entender tudo isso e ver que esses temores são infundados e apenas egoístas.


2 comentários:

  1. Uma das HQ's mais lindas que já li. As linhas de Jeff Lamire traçando a humanização em cada gesto de Gus é de encher os olhos. Uma lindeza sem tamanho que está sendo marcado em pele <3

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