Quando acabou a quarentena. Não sabia se era exclamação, interrogação, vírgula, ponto e vírgula, reticências ou ponto final.
Quando acabou a quarentena, sai correndo nu pelas ruas e fui preso por mãos afoitas que não sabiam mais como era tocar um corpo. Cumpri perpétua que durou até o primeiro gozo.
Quando acabou a quarentena, abriu aquela champanhe barata que guardava feito relíquia sagrada. Ligou o som, aumentou o volume e bebeu, cantou, gritou, da janela, em uníssono com todos os outros que também celebravam. Ébrio, dançou pela casa, rodopiou, derramou a bebida no tapete cansado de guerra, proferiu palavras de ordem e já se acercando do cansaço, masturbou-se e dormiu. No dia seguinte, acordou de ressaca. Banho frio, café forte, jornais matutinos noticiando a volta do normal. Vestiu-se e munido de ânimo, abriu a porta para encarar essa nova normalidade que chegara, a vida morreu, longa vida a vida. Olhou para a rua e, com um tremor incontrolável, fechou a porta e voltou para dentro de casa. Despiu-se, encolheu-se no sofá enquanto a televisão lhe trazia aquele admirável mundo novo.
Quando acabou a quarentena, tomou banho, fez barba, escovou dentes, desodorante e perfume. Vestiu a melhor roupa, cueca nova, sapato novo, tudo zero afinal, ele a rua iriam desvirginar, carecia fazer a corte; há tempos estavam em namoro platônico, soltando suspiros pelos pulmões e asfalto. Deu uma última olhada no espelho só por garantia e, dono de segurança inabalável construída durante a quarentena, saiu ao encontro da amada. Morreu atropelado ao colocar os pés na rua, o sangue escorreu pelo asfalto quente, o trânsito nervoso saindo da quarentena reclamou, as pessoas aglomeraram para ver algo que não viam há tempos. Alguns juravam ter visto água correndo junto com o sangue. Talvez um encanamento aberto. Talvez a rua chorando o amado e pedindo desculpas afinal, era de sua natureza.
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