29 de mai. de 2020

Vazando

Hoje acordei atrasado de um sonho sólido e me desfiz líquido no chuveiro enquanto batia uma e me esvai junto com a porra que íamos pelo ralo enquanto eu me escorava nos azulejos molhados com as mãos escorregando e o peito arfando e a água caindo na minha cabeça e correndo pelo pescoço braços tronco pernas pau e porra e fazendo um pequeno torvelinho no ralo que não dava vazão porque era muita água e muita porra e eu achei que estava me esvaindo em sêmen mas eu já tinha gozado então de onde saia aquela porra toda essa porra toda que todo dia é a mesma porra e que porra é essa que é sempre a mesma branca sem gosto sem cheiro sem cor ou branco são todas as cores não preto que é é mas porra que cor é todas as cores e porra que tem de ser a mesma porque não pode sair diferente pra gente poder ter algum gosto porra algum novo porra e eu tinha de tomar café e comer pão e fruta porque porra fibras e alimento é bom e tem de ser balanceado porra também (?) mas eu bato todo dia de manhã no chuveiro porque sempre acordo de um sonho sólido que eu queria que fosse líquido porque líquido se desfaz que nem eu aqui nesse chuveiro com a água e a porra ainda escorrendo meu deus estou vazando ou é porra que sai do chuveiro e água do meu pau ou essa porra toda está enchendo e o ralo não vai dar conta e vou morrer afogado num pequeno mar de água e porra grávido de mim mesmo e sem ter tomado o café da manhã que é a refeição mais importante do dia mas não do sonho aquele que eu sempre tenho sólido e me desfaço líquido quando tomo banho e já é assim faz um tempo mas hoje a água não para de cair e a porra não para de sair o chuveiro é um chafariz e meu pau também e minhas mãos vão escorregando pelos azulejos porque eu me sinto mole acho que vou desmaiar sem ter tomado o café da manhã o dia mais importante da refeição ou algo assim porra que vai saindo e água que vai caindo e vou caindo junto com água e porra e vamos caindo e o ralo vai nos engolindo porque o ralo também precisa tomar café da manhã que é a refeição mais dia do importante e vamos caindo no ralo

e sumindo

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28 de mai. de 2020

Elevado

Dia Quente Mormaço Suor Gruda Escorre Seca Debaixo do braço Dois estigmas Não Cristo Não Diabo Não Nada Só gente Seca Úmida Pegajosa Viscosa Velcro líquido Liquida Ação Morte em vida Se vê rima

Vai para a rua que vai para a o ponto que vai para o ônibus que vai para o aperto que vai para o cheiro de gente que vai para o ar estagnado que vai parar que vai descer que vai sair que pede licença que esbarra e xinga que sai amarrotado que vai para o ponto que volta para a rua que vai para o prédio que vai para a porta que gira e gira e gira e gira e vomita gente dentro e fora

Fila Elevador Imensa Gente atrás Gente Vai um por vez que é muita Gente que vai atrás Gente que vai indo que vai entrando Um por Um por Um por todos e Todos por nem um e vai a fila e Ele vai Indo Com a fila com o fluxo com aquela sangria de gente Com aquele rio de Morto por dentro Por fora também há mortos Por dentro há mais Por onde anda a vida e a Morte vai na fila Olhando cada um e Sentindo que chega a sua vez Entra no elevador Com mais gente Com mais morte Com mais ou menos Vai pedir o Andar da carruagem é lento Ele vai descer no Último andar que tem ali tem vista para cidade toda e sempre tem Gente que se aperta para chegar mais rápido mas o elevador Vai lento o dia ali andares que são meses ou anos e os Botões acendem e apagam enquanto as Pessoas esvaziam e são vazias e o elevador vai ficando Vazio é o que ele é Vazio é o que sente Vazio é o que ele quer mas o Elevador ainda está lá mas só com Ele que não chega no seu andar e as Luzes são brilhantes enquanto acendem e apagam e mostram Números que deveria ter pensando antes ontem semana passada e que deveriam estar no Relatório que o prédio come todos os dias quando ele e os Outros são quem? Alguém ou ninguém ou alguninguém mas Ele

Segue subindo no Elevador que vai mostrando as Luzes números quinze dezesseis dezessete dezoito dezenove Vinte desce porque não tem vinte e Um ar desespero porque vinte não para e o Elevador passa direto como se mais andares depois mas não tem Nenhum sentido e o elevador sobe e sobe e sobe e sobe e sobe e sobe e sobe e Sobre onde ele está? Já não sabe nem sobe ou vê qualquer coisa apenas sente que o elevador Sobe e sobe e sobe e sobe e sobe e sobe e sobe

Lá embaixo Gente olha para o Céu que tem azul e tem nuvens e tem Ele Elevador Elevado Num ponto que já não era mais possível dizer Quem o havia (e)levado?

27 de mai. de 2020

Quando tudo vai mesmo acabar

Eu sou uma pessoa curiosa e a que ama a ciência.

Se todos nós nos apegássemos mais a ela do que a religiões, talvez o mundo fosse um lugar menos sombrio e pouco favorável aos Bolsonaros da vida mas, as coisas são como são e a ciência também entende isso.

Não costumo pensar muito sobre a morte, algumas vezes mas não é algo recorrente e, quando tal medo me assalta, em geral não é pelo fato de minha existência cessar, temer pelo fim, medo da morte como algo aterrador ou nefasto ou um desejo inexorável de seguir vivendo e fazer qualquer coisa para conseguir isso.

Obviamente não digo que não a temo, não me agrada nada pensar que tenho data de validade e que minha inexistência será pouco ou nada percebido pela marcha do tempo e da vida e ainda assim, não é isso que me amedronta mas coisas simples como pensar em como ficará meu amor, meu marido que é parte de mim e de minha vida, se ele vai estar bem e poderá seguir com sua vida e não por algum tipo de egoísmo de que sua vida, sem  mim, possa ser um vazio completo, ninguém é tudo ou todo para alguém mas, me fere a tristeza que causarei não intencionalmente com o advento de minha morte.

O medo que fere mais fundo e me faz gelar órgãos internos é bem outro. É saber que o tempo seguirá seu caminho, a vida idem e que o universo fará o mesmo e que eu não poderei acompanhar fenômenos incríveis e aterrorizantes salvo minha consciência siga existindo de alguma forma após minha matéria não mais ser.

Assim, quando assisto um vídeo como este, um mix de pavor maravilhoso me toma, fico pasmo com os eventos que não poderei ver e que apenas o futuro longínquo será testemunha. Há poucas certezas universais, uma delas é que tudo, sem exceção, acaba e nosso universo não foge a esse lei incontornável e inexorável.

Eu tenho medo não pela minha morte mas pela morte que ninguém verá.


26 de mai. de 2020

Memórias elétricas

Não sei bem porque mas hoje, lembrei de algo que se passou comigo e meu pai.

Nada especial causou tal lembrança, ao menos não de forma consciente. Simplesmente a lembrança pipocou em minha mente. Deve ser efeito da quarentena, as pessoas andam sentindo, sonhando e pensando coisas bem estranhas esses dias.

A lembrança, a ela.

Meu pai trabalhou por grande parte de sua vida no Departamento Aeroviário do Estado de SP e parte de sua incumbência era, regularmente, viajar para inspecionar aeroportos pequenos e aeródromos no estado. Em tais viagens, a família quase sempre ia a tira colo pois a hospedagem era bancada pelo estado e, quando digo bancada pelo, estado leia-se que ficávamos em alguma casa ou apartamento fornecido pelo estado sendo todo o resto custeado pela família. Algumas vezes, na impossibilidade de acomodação de todos, meus pais pagavam o hotel de seus bolsos.

Fizemos muitas viagens assim. Lembro de uma feita de trem para alguma cidade do interior que me foge o nome, quando viagens de trem ainda existiam. As acomodações na cidade não eram das melhores mas lembro claramente da pista de pouso curta e levemente inclinada do aeroporto e de um dia em que um boeing 737 da VASP pousaria ali. Lembro de ter ficado ansioso, esperando o avião como se fosse o bom velhinho e, quando ele finalmente pousou, tenho clara lembrança dele percorrer toda pista e, ao final dela, manobrar para retornar e parar no local determinado.

Mas, essa não é a lembrança que me assaltou. 

Certa vez, passamos as férias em Ubatuba e meu pai aproveitou para inspecionar o aeroporto local que atendia, então, apenas aviões de pequeno porte. A pista era de grama e a o aeroporto em si consistia de uma casa de madeira que funcionava como balcão de atendimento, torre de controle e tudo mais. Ficamos alojados numa casa localizada dentro do terreno do aeroporto e no lado oposto ao da casa-torre de controle. A casa era bem simples, lembro vagamente minha mãe não muito satisfeita com as condições mas, tentando fazer de conta que não se importava.

Minha mãe nunca foi muito afeita a cozinhar, só quando realmente estava a fim de comer algo específico ou preparar um prato diferente principalmente doces. Acho que ela e meu pai tinham sérios problemas quanto a cozinha porque meu pai, vindo de uma família que se virava mais do que bem com as panelas, parecia sempre botar defeito nas aventuras culinárias de minha mãe até o ponto de ela dar um ultimato: se sua comida não lhe agradava ele que a fizesse a seu gosto e, depois disso, raras vezes minha mãe se aproximava da cozinha.

Em Ubatuba, a solução foi comprar as marmitas do Jorge, um senhor japonês que de segunda a sexta pontualmente ao meio-dia entregava o cardápio do dia naquelas marmitas de ferro encaixadas uma sobre a outra e presas por uma espécie de garfo de metal. As marmitas obedeciam uma ordem de cima para baixo: salada, arroz, feijão, mistura do dia. Aos finais de semana, comíamos fora, grande acontecimento.

Nos dias que passamos por lá lembro que meu pai meio que se tornou um tipo de caiçara. Andava praticamente o tempo todo sem camisa, trajando apenas uma bermuda surrada presa por uma corda na cintura - sim, uma corda - e chinelos. Minha mãe ficava horrorizada, talvez tivesse algum tipo de arrependimento do casamento se bem que eu já era meio grandinho e meu irmão já havia nascido então, qualquer tipo de arrependimento deve ter sido decorrente do tempo em si e tornou-se algum amargor tácito e controlado.

Nossos dias se resumiam a praia e ficar vendo os aviões saindo e chegando, os pilotos nos tratavam bem e eu sempre fui fascinado por aviões. Lembro que um deles, apelidado por meu pai de 'Zequinha Masca-fumo' pelo cacoete que lhe afligia e fazia parecer que estava eternamente mascando algo, nos convidou para ir até São José dos Campos fazer um bate e volta. Minha mãe não quis ir e achou meu irmão novo demais para tamanha empreitada então, embarcamos eu, meu pai e Zequinha no monomotor e partimos.

Quem nunca voou em aviões pequenos não sabe a experiência que perde. Se em grandes jatos a sensação de movimento é quase nula e não se tem noção de espaço já que estamos confinados, em um avião pequeno parece que flutuamos no céu, as nuvens estão ao lado e o avião parece sumir, você está voando sozinho, sem nada para lhe proteger ou auxiliar, foi uma das experiências mais belas que passei.

Mas, o cerne dessa minha lembrança não são esses eventos que relatei ainda que eles sejam parte da mesma narrativa memorial.

Um dia, em Ubatuba, fomos a um parquinho. Desses de cidade pequena, digno de filme de terror B e onde a segurança é um nome tão ou mais vago que um assobio que se perde no vento mas, quando se é pequeno numa época em que os perigos nunca foram mapeados ou pensados, tudo é mistério e aventura.

Quis ir no trem fantasma ainda que esse brinquedo me aterrorizasse, coisa de criança que tem medo mas não tem vergonha. Insisti e meu pai, quase sempre indulgente com minhas vontades, cedeu e decidiu me acompanhar.

Compramos o ingresso e fomos para a fila. Não lembro como eu estava vestido mas meu pai estava no seu uniforme caiçara: chinelos, bermuda cáqui segurada na cintura pela indefectível cordinha e sem camisa. Minha mãe ficou com meu irmão, seus instintos maternos proibiam que ele fosse naquele brinquedo, mães sendo mães.

Sentamos no carrinho e ele começou seu trajeto. Eu sinceramente não tenho lembranças do que vimos lá dentro mas, deve ter sido o padrão para trens fantasmas desse tipo de parque, alguns esqueletos, gritos, uivos, luz negra, teias de aranha, vampiros e múmias; portas batendo e abrindo do nada e por aí vai, sem surpresas.

Mas, em alguns momentos, sentia que meu pai dava uns sacolejares, como se realmente assustado ou tendo algum tipo de tremor. Não sabia do que se tratava, não lembro de fiquei com medo por ele poder estar passando mal ou, pior, estar com medo de algo que me apavorava afinal, se ele, adulto, estava com medo, o que eu, criança, poderia fazer?

Ao final do percurso, saímos do carrinho e lembro dele me perguntar.

Você não sentiu um choque?

Choque?

Sim, choque, bem leve, choque elétrico mesmo, não sentiu nada?

Não, não senti nada.

Acho que deve ser parte do show porque eu senti várias vezes.

Não lembro bem como desvendamos o mistério dos choques fantasmas mas, a causa deles era bem mais terrena do que pudéssemos conceber: meu pai estava com os pés e chinelos molhados, não sei porque enquanto eu estava devidamente calçado. Aparentemente, havia algum fio desencapado no carrinho que, em contato com os pés molhados de meu pai, fechou o circuito e deixou a corrente passar causando os choques.

Pode parecer uma lembrança besta mas, sei que rimos muito disso naquele dia e mesmo anos depois ainda lembrávamos desse incidente. Porque ele me pegou assim do nada? Não sei dizer, talvez algum evento randômico da mente, algo inconsciente, vai saber.

Sei que me lembrei e um pequeno sorriso brotou no meu rosto.

25 de mai. de 2020

O umbigo do mundo

Acordei. Pelo menos acho. Deve ser. Ouvi buzinas e não costumo sonhar com buzinas, já sonhei com cornetas, línguas de sogra que eram línguas mesmo mas, buzinas, nunca. Então estava acordado.

O quarto abafava o ar que entrava pelas frestas da veneziana. Eu olhava para o teto tentando sincronizar o som das buzinas com as sombras que eram refletidas. Nunca fui bom nisso, aliás, nunca fui bom em sincronizar nada, nado mas totalmente sem sincronia aliás, faz tempo que não nado, nada, meio que cansei, qual o propósito de ir de um lado para outro num mar de azulejos que não leva a lugar algum? Água não deveria levar a gente para algum lugar? Ar não que não se pode sentir, salvo o vento mas ar mesmo, não.

Levantei. E senti algo estranho escorrendo na barriga, como um vazamento, daqueles de pia, sabe? Fio de água que nunca se consegue descobrir de onde brota. Mas no meu caso sim, era do meu umbigo. Olhei para ele e corria um riozinho fino, passei o dedo e levei ao nariz. Umbigo tem cheiro, um aroma peculiar, característico, nenhuma outra parte do corpo cheira igual, talvez frieiras mas ainda assim não tem o mesmo buquê do umbigo. É um cheiro azedo que é rançoso que é doce que é patê que é queijo que é leite talhado que é algo sei lá. Pode ser algum cheiro que fica do cordão, cheiro uterino, de mãe, talvez as mães cheirem assim por dentro.

O meu não tinha esse cheiro.

Senti cheiro de água do mar, peixe vivo, aves marinhas, pescador, cidade de litoral, colônia de pescadores, velhas almiscaradas sentadas em varandas de jacarandá ao por do sol, cachaça correndo balcões de madeira, peixo frito e purê. Estranhei. Deve ser algum resquício de sonho, ainda devo estar no limiar, só pode, ontem dormi com fome, ainda devo estar sonhando com isso, comida, é isso.

Mas não.

Fui ao banheiro. Luz acesa, buzinas ainda lá fora e o teto fora de ritmo. Olhei bem, no espelho, e o fio de água ainda lá, corria reto do umbigo, passava pelo púbis e descia meio torto pelo pau até gotejar minúsculo no prepúcio. Olhei com mais atenção e assustei. Abri a gaveta e procurei uma lupa, quem tem lupa no banheiro? Eu. Às vezes preciso procurar algo que cai no chão e hoje em dia tudo é tão pequeno, cai e eu não consigo encontrar sem uma lupa então tenho uma, eu derrubo muitas coisas, menos a lupa.

Aproximei a lente do umbigo quase numa auto-felação. Meus olhos, melhor, um deles que fixava na lente, abriu feito um buraco. Ao redor do meu umbigo havia uma cidade. Sim. Uma cidade, dessas onde as pessoas vivem, nascem, dormem e morrem, não necessariamente nessa ordem. 

Pequenas casas ao redor do buraco do meu umbigo que lhes servia de baía. A água que escorria era seu rio, pequenos barcos subiam e desciam por ela, descendo iam até o final do curso na cabeça do pau, subindo, caiam dentro do umbigo para sempre. Engraçado. Eu nunca senti nada, tinha navios dentro de mim e nunca senti nada, nem uma âncora, nem um naufrágio, nada mesmo.

Havia também uma igreja, bem no meio se bem que é complicado determinar onde fica o meio de um círculo e o umbigo é um mas, ela estava lá, no meio. E havia um mercado e um bar eu acho. E pessoas circulando pela cidade, caminhando, empurrando carrinhos de compras, só não vi carros mas acho que ouvi vozes. Pelo menos acho que eram vozes. Tentei apurar o ouvido para captar o que diziam mas as buzinas lá fora não deixavam. 

Ouvi a igreja badalar os sinos, baixinho, como se fosse um ruído de algo muito distante que nem mesmo poderia lhe atestar a veracidade. Vi as pessoas indo para lá, missa provavelmente, os navios seguiam indo e vindo, entrando e saindo do meu umbigo, estariam levando ou trazendo coisas? Não sei qual dessas hipóteses me amedrontava mais, e se levavam para fora algo que me fizesse falta depois? E se estavam trazendo para dentro, não poderia ser algo que me fizesse mal?

Sonho, só pode. Fechei os olhos com força. Contei até dez e os abri. Olhei para baixo, pela lupa mas lá estava a cidade, deveria procurar um médico mas qual? Um clínico? Mais certo um psiquiatra, doutor, há uma cidade vivendo no meu umbigo. Curvei-me ainda mais em contorcionismo para tentar, através da lupa, divisar mais algum detalhe da cidade e seus habitantes, fiz tanto esforço que minhas costas estalaram e, repentinamente, senti como se fosse um tatu daqueles que viram uma bola.

Fui meio que desfalecendo caindo dentro de mim, no umbigo, sem lupa, já não a tinha nas mãos. Fui caindo assim no umbigo que era meu mas da cidade também até dar de cara com o chão de pele que tinha pelos por árvores. Levantei-me, limpei as mãos e meu corpo nu, estava nu, isso não são modos de se apresentar numa cidade que vivia no meu umbigo, tudo bem, o umbigo era meu mas modos são modos e eu os tenho.

As pessoas me cercaram, outras seguiam para igreja ignorantes de minha chegada. O fato de estar nu não parecia incomodar ninguém, as pessoas foram me acolhendo e me tocando, como se já soubessem quem eu era e esperassem minha chegada. Apavorado, nu e dentro de mim mesmo perguntei.

Onde estou? Que lugar é esse, por favor?

As pessoas que me cercavam olharam entre si meio que atônitas, como se a minha pergunta fosse descabida ou até mesmo absurda e então, uma delas olhou-me nos olhos e disse.

Bem-vindo! Aqui é o umbigo do mundo!

21 de mai. de 2020

Quem ri por último?

No dia em que batemos um recorde nefasto, mórbido e horrendo, em que aparecemos num terceiro lugar mundial pavoroso, em que uma criança foi morta por estar em casa e seu corpo vagou por uma cidade voando feito anjo esquivo e esquecido até pousar na gaveta fria de um IML.

Nesse dia horrendo que deveria ser banido para sempre de nossas lembranças e da história, o assassino da república riu ao vivo para seus asseclas e fez piada.

Sem medo. Sem vergonha. Sem culpa. Sem arrependimento. Sem mácula. Sem noção.

Riu de todos os mortos, de suas famílias, dos profissionais que estão lutando dia e noite para tentar frear essa doença. Riu de quem está passando fome, sem trabalhar, sem grana, sem esperança, sem família, sem vida.

Rasgou o país ao meio e limpou sua imundície na constituição. Tirou seu membro milícia verde amarelo pátria amarga brasil e esfregou na cara de todos nós. Rindo. Jocoso. Palhaço. Piadista. Gozou de todos nós sem qualquer vestígio de consciência ou pudor.

Mostrou de uma vez por todas que não é humano, nunca foi, nunca será. É um nada, um vazio, um oco, um buraco sem fundo onde tudo que cai é dissolvido e some para nunca mais. Nem mesmo animal ele é porque animais possuem inteligência, o assassino da república possui demência.

Riu. Riso frouxo de quem está feliz com as mortes de tanta gente. É o palhaço que ri do circo em chamas sem saber que depois vai ficar sem ter onde morar. Para ele, não existe outra versão dos fatos que não seja a dele e de seu clã abjeto e odioso.

O assassino da república riu. Está feliz. Está pleno afinal, todo bom sociopata sente-se bem ao caminhar em cima de cadáveres.

E nós? Como estamos? 

Estamos morrendo. Segundo o assassino da república, uns irão tomar cloroquina, outros tubaína e nós, bem, nós seguiremos tomando onde sempre tomamos desde que ele foi eleito.

Não vou compartilhar o vídeo do assassino da república pois não desejo dar a ele mais esse prazer.

Deixo então essa reflexão bela e atual do João Silvério Trevisan que é bem melhor.

A RESISTÊNCIA DOS VAGA-LUMES

"Vencidos o medo de ser e a resignação de antigamente, oprimidos em estado de purpurinização não precisam pedir licença aos guardiões do poder heteronormativo, nem bajular aqueles supostos parceiros, como se a sobrevivência dos nossos desejos, afetos e amores dependesse deles. Quanto maior for a compreensão de que no território do desejo não existem mestres nem patrões, tanto maior será a eficácia dos sujeitos em estado de construção de suas singularidades. Se existe a escuridão opressiva ao nosso redor, nossa função é brilhar. Exatamente como os vaga-lumes, que só brilham se houver escuridão e são tanto mais vaga-lumes quanto mais escuro estiver o entorno. Talvez pareça estranho que sua luz precise das trevas para ser luz (...). Mas aí exatamente se encontra aquela capacidade de renascer das cinzas, como fantasmas iluminados, que emitem sinais de liberdade na noite. (...) Não por acaso, é justamente no meio das trevas que se efetua a dança viva dos vaga-lumes. (...) Através da dança renitente de vaga-lumes purpurinados, diremos sim no meio da noite atravessada pela execração que os senhores do poder emitem para nos ofuscar. Assim, a opressão que tenta sufocar nosso desejo, ela mesma será o motor da nossa luz e da nossa dança de vaga-lumes na noite. Quanto mais escuridão dos opressores, maior será a luz emitida pela purpurina dos oprimidos."
João Silvério Trevisan
(DEVASSOS NO PARAÍSO, 4ª edição, pp. 577/8)

20 de mai. de 2020

Eglantina e Damásio

Damásio conheceu Eglantina na padaria, fila do caixa. Ela, desconcertada, abraçava o saquinho de pães como se deles dependesse a vida e rogava ao caixa clemência pelos dez centavos que faltavam para inteirar a compra pois, em casa, era aguardada com a encomenda para poderem tomar o café.


O caixa balançava a cabeça de um lado para outro já insinuando lhe tomar o embrulho quando Damásio, imbuído de caridade súbita alimentada pela beleza da moça, esticou a mão e pousou a moeda faltante no balcão. Eglantina, pega de surpresa, virou-se num mesclado de gratidão e desconfiança e, quando ia mencionar não ser possível aceitar tal generosidade, Damásio simplesmente ergueu a mão direita enquanto com a esquerda segurava o saquinho com seus pães e maneou a cabeça.


Ela, sem jeito e vendo que o caixa já contabilizava os centavos, agradeceu com um gesto tímido e um sorriso discreto. Damásio aceitou aquilo com leve gosto e disse que aceitaria, como retribuição pelo gesto, que ela tomasse com ele em outra ocasião já que era aguardada em casa, um suco ou um refrigerante acrescentando que ela não o tomasse por um galanteador barato ou oportunista, que lhe desse o valor da moeda pelo prazer da companhia, nada disso, o gesto fora de coração e ela que não se sentisse na obrigação mas que lhe faria muito gosto isso faria.


Eglantina sorriu e Damásio se apaixonou ali por seus dentes alvos, a gengiva rosada parecendo um manjar de cerejas e disse-lhe a moça que sim, que poderiam sair dia desses para tomar um suco ou algo assim desde que respeitadas as horas pois em casa elas eram contadas à risca e ela não era de expor-se na rua com qualquer um.


Acertaram o encontro para dali a alguns dias e se foram pois a fila já ia grande e o caixa da padaria começava a reclamar que ali não era lugar de romances mas de pão quente ainda que ambos sejam um conforto para a alma.


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Damásio já ia com Eglantina há alguns meses, foram aí muitos sucos, refrescos, refrigerantes e, num dia em que ousaram mais, um coquetel de frutas levemente alcóolico. 


Ela lhe falava da família, dos pais que ainda labutavam para dar aos filhos alguma condição mais digna e de como ela, enquanto mais velha de três irmãos, fazia malabarismos para conciliar estudo e trabalho, tinha sonho de ser veterinária ou enfermeira, ainda não se decidira mas temia pelo aborto de tais ambições caso a situação em casa não melhorasse a curto prazo. Os dois irmãos mais jovens ainda estudavam apenas e ajudavam como podiam mas de concreto mesmo, apenas os rendimentos que ela e os pais punham na mesa.


Damásio lhe contou como viera do nada, tinha apenas a mãe, pai era algo que ele sabia apenas a palavra, nunca a pusera em alguém. Estudou muito até concluir o essencial que lhe garantisse alguma estabilidade e que pulou de emprego em emprego até finalmente acertar-se onde estava. Tinha planos de voltar aos livros e tomar um rumo melhor, quem sabe advogado ou algo que lhe permitisse abrir seu negócio, tomar conta do próprio nariz e, quem sabe, arranjar alguém que lhe esquentasse os pés nos dias mais frios e aceitasse com ele por umas crianças no mundo, algo que desse fé de que por ali havia ele passado.


Eglantina corou de leve quando Damásio disse isso pois, entrelinhas, havia clareza suficiente para entender que era a ela que o outro almejava ter em tal conta e destino e, ainda que houvessem roubado intimidades um do outro, guardava à distância arroubos mais efetivos temendo que ele apenas estivesse a lhe adoçar a boca com agrados para, ao final, roubar-lhe o mel e ir pousar em outras flores.


Damásio, que sentia a relutância de Eglantina ante alguns de seus avanços, assegurava como podia à moça que suas intenções eram das mais ilibadas e que se às vezes era afoito, era tão somente pelo amor que lhe dedicava, que ela se sentisse à vontade para pedir-lhe qualquer prova disso e ele a daria num átimo, com um sorriso no rosto.


Eglantina então resolveu pôr à prova tal dedicação. Sugeriu que já passava da hora d'ele ir conhecer sua família e acalmar os ânimos dos pais que já tinham dado fé do ar enamorado da filha. Se Damásio realmente a queria tanto, agendaria o dia e ele formalmente iria cortejar a moça, como se costuma fazer quando as intenções são boas e o sentimento puro.


Eglantina esperava recusa e hesitação, havia preparado coração e alma para tal desgosto a partir do qual poria data de validade ao namoro mas, Damásio não titubeou e disse-lhe que marcasse o dia, preferencialmente um fim de semana para não atrapalhar aos empregos de ambos, que ele fazia imenso gosto de pedir a mão da moça aos pais e ter deles a benção.


Segurando um choro autêntico, Eglantina concordou e disse que marcaria assim que possível, olhou a Damásio nos olhos e deles viu que o moço era sincero, pegou em sua mão e deu-lhe um leve beijo na face.


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Damásio chegou cedo, muito cedo mesmo. Incapaz de ficar dentro de casa com mãe a lhe benzer e pedir calma, resolvera sair e ir ter com a família de Eglantina mas, calculando mal o horário em horas ansiosas, chegara muito antes e, receoso de passar vexame ou colocar sua amada em situação delicada, ficou perambulando pela vizinhança da moça para consumir algumas horas.


Temeu que algum vizinho o julgasse mal intencionado e chamasse a polícia afinal, era um estranho, bem vestido vá lá, mas ainda um estranho zanzando num  bairro que não era o seu. Por fim, parou num boteco que encontrou nas proximidades e, sentando ao balcão, pediu ao rapaz do outro lado uma cachaça, apenas um dedo que não desejava chegar a casa dos sogros cheirando a álcool mas, ajudaria a lhe acalmar os nervos que ameaçavam sair pelos poros.


E se não o aprovassem? E se não gostassem dele? E se o pai julgasse que ele não tinha como manter a filha? E a mãe? Se ela enxergasse nela qualquer falha que pensasse inerente aos homens e, evitando que filha cometesse os mesmos erros, barrasse a união? Que dizer então dos irmãos, se estes lhe fizessem desfeitas ou provocações as quais teria de aguentar sorrindo, não ficaria também maculada sua intenção de desposar Eglantina? De certo que era com ela que pretendia casar-se mas, no casamento, leva-se de brinde não apenas quem se desposa mas todo um corolário de parentes a quem, se a opinião não conta, faz valer a palavra mal colocada quando lhes apetece.


Despertou com o barulho do copo sendo colocado no balcão. Bebeu a cachaça de um trago, pousou o copo sobre o balcão, jogou algumas moedas ao lado e perguntou ao rapaz onde ficava o banheiro ao que este lhe apontou os fundos do bar. Damásio foi até lá mas não entrou no reservado, apenas apoiou-se na pia que ficava antes da entrada do mesmo, abriu a torneira e colheu um pouco d'água, fez um bochecho, salpicou um pouco no rosto, cuspiu a água e com as mãos em concha, sentiu o hálito, por segurança, compraria alguma bala na saída.


Saindo do bar, olhou o relógio e deu-se por satisfeito. Se não era demasiado cedo também não estaria atrasado, sempre pensou que o segredo das coisas era saber o momento exato de chegar e sair dos lugares, muito cedo ou muito tarde pode ser a diferença entre sucesso ou fracasso, ajeitou-se foi lá tocar a campainha da casa de Eglantina.


Tocou apenas uma vez, não queria ser considerado inoportuno e campainhas são coisas que tiram a paciência de qualquer um; quando desatinam a berrar através dos dedos alheios, põe doidos os donos da casa que já atendem as visitas com um muxoxo de reprovação. Depois de alguns minutos, a porta foi aberta e ali estava Eglantina. 


Damásio achou que talvez fosse o sol do fim de tarde mas ela parecia radiante, não teve dúvidas, era a mulher que amava e estava ali para fazer disso oficial e firme, reconheceria isso em qualquer cartório, daria fé e testemunharia em qualquer tribunal, abnegaria da própria condição humana para fazer dela feliz e poder tê-la a seu lado mas, quando aquela luz fulgida se dissipou, pode notar que apenas seus olhos a enxergavam assim. Eglantina estava cabisbaixa e evitava olhar a Damásio nos olhos, parecia surpresa por vê-lo ali ante sua porta e até mesmo desejosa de que ele ali não estivesse.


Sem saber ao certo o que falar ou fazer, Damásio mirou os céus como a buscar por aquela luz anterior que havia lhe dado tamanho vislumbre de um futuro promissor mas o momento se fora, pertencia a outro e agora, ele tentava decifrar aquela esfinge que ameaçava devorar sua alegria com sua tristeza. Questionou a Eglantina o motivo pelo qual se encontrava em tal estado de espírito mas a moça ficou muda. De dentro da casa vinha o som de risos e vozes, como se  a festa houvesse começado sem ele, ela e o amor dos dois, voltou a perguntar a moça que se passava e porque ela não o chamava a entrar, não estava ele ali para lhe provar que era sério e que suas intenções eram as mais elevadas? 


Ou ela demandaria alguma prova adicional? Que falasse qual era, ele a cumpriria à risca por mais estapafúrdia que fosse! Eglantina permanecia em silêncio, olhava para o chão e para ele apenas de relance, teria sido vítima de algum tipo de apoplexia? Damásio lembrou-se de uma tia que no dia do casamento, tomada por severa emoção, tinha sofrido algo assim e fora necessário adiar a cerimônia por meses até que os nervos da noiva voltassem ao normal.


Pegou Eglantina pelo braço e já começava a elevar o tom de voz quando o pai da moça apareceu por trás dela e a afastou com um gesto leve. Eglantina, sucumbindo à vontade paterna, encostou-se na sombra do homem e deixou escapar um suspiro leve. Damásio, sem entender nada, estendeu a mão ao sogro apresentando-se, um prazer estar ali e poder conhecer a família de sua pretendente mas, ficou com a mão planando pois a do pai da moça permanecia distante. 

Damásio, ciente de que todo pai zeloso sente ciúmes da filha e enxerga no homem que a corteja apenas o lobo que vem lhe comer as ovelhas, recolheu a mão e expressou sua preocupação com o estado de Eglantina, teria ela passado mal ou ocorrido algo inesperado? Se fosse o caso, ele, que não desejava meter-se em assuntos de família, poderia voltar quando fosse mais conveniente, não era problema algum.


Eglantina soçobrava ao fundo e seu pai, de soslaio, mandou que ela se retirasse e, olhando bem nos olhos de Damásio, disse-lhe que fosse embora, que não era bem vindo ali e que estava a atrapalhar uma festa de família para um primo que chegara a pouco de outro estado, que não voltasse a procurar a  moça pois ela estava mesmo era prometida a esse primo, um rapaz de posses e estudado, que poderia lhe dar uma vida decente e estável.


Damásio, pasmo, não sabia como retrucar tais afirmações, buscava por Eglantina por sobre os ombros do pai mas ela se fora para dentro. Por fim, sua boca ganhou vida e disse ao senhor que aquilo era um absurdo, que ele e Eglantina amavam-se e que ela o havia chamado para estar ali naquele dia para formalizar o compromisso, que ele poderia sim dar a ela uma vida decente, sem luxos, mas honesta, limpa e direita, era trabalhador e estudava, daria a ela uma vida melhor que sonhara para si mesmo.


Impávido, o pai da moça fez ouvidos moucos ante as alegações de Damásio, disse-lhe que a filha agira mal em ter prometido tais coisas que não lhe caberia o poder de cumprir e que ela sabia do compromisso assumido em família muito antes de ambos terem nascido. Ele, como pai, não poderia desgraçar assim o nome da filha e da família por um desconhecido, julgara que a paixão dos dois fosse algo ligeiro, que passaria como passam as chuvas da estação e que ele desconhecia o fato de que Damásio estaria ali naquela data para prestar seus respeitos e cortejar a Eglantina.


De dentro da casa ainda vinham risos e vozes altas, Damásio teve ímpetos de romper a cara do pai da moça, entra pela casa e raptar para si a amada, que a família lidasse ela com as promessas feitas ao primo abastado, sabia apenas de seu amor por Eglantina mas, a figura paterna à porta, parecendo intuir o rompante do pretendente enganado, fincou posição feito boi bravo, fechou a cara e ficaram ali em ameaça velada por alguns minutos.


Por fim, apelando para o amor que o moço parecia genuinamente sentir pela filha, pediu-lhe o pai abrandando o semblante que se ele realmente dedicava a ela tamanha afeição, iria dali embora e nunca mais a procuraria pois ela seria feliz com o primo. Que deixasse a moça usufruir de um futuro tranquilo e livre das mesquinharias que a vida de ambos tinha a eles reservado, pusesse de lado seu egoísmo e pensasse na felicidade dela e da família que seria desgraçada ante tamanha vergonha caso o compromisso não fosse honrado.


Desolado, Damásio cerrou os punhos, rangeu os dentes, deus as costas e partiu segurando um choro raivoso e sentido.


…......................................


O tempo é um curativo muito grande, tão grande que termina por cobrir quaisquer feridas que a vida venha a nos infligir. Acabamos esquecendo da ferida e quando tiramos o curativo ou alguém o faz por nós, em alguns casos não há mais nada, nem mesmo cicatriz que relembre o mal que foi feito mas, maioria das vezes, ao removermos o curativo, a ferida está lá, viva, respirando, pulsando e excretando seu conteúdo pestilento contido apenas por aquela fina camada de tempo e, exposta, volta a doer como fosse aberta naquele instante.


Assim era para Damásio. Seguiu sua vida escorado numa esperança de ver aquele equívoco desfeito, uma piada de mal gosto, certamente eram um família de brincalhões e lhe haviam pregado uma peça mas, os dias pariram semanas e estas meses que gestaram anos e Damásio assimilou que o curativo fora posto para sempre e deixou ele ali, quieto, haviam feito um trato de um não incomodar o outro.


Perdera entretanto parte do prazer em viver, trabalhava mas largou os estudos, não via razão em dedicar-se a algo para o futuro se este era apenas dele e não de Eglantina também. Só não largou o trabalho porque era dele que tirava o sustento e as doses de cachaça que bebia aos finais de semana. Para Damásio, a vida parecia um daqueles filmes onde os atores dublam sua própria voz por cima do som original, o som da voz não encaixa com o som ambiente e muito menos com o movimento dos lábios na tela.


Estava Damásio no bar num Sábado quando um amigo o avistou e foi sentar-se com ele. Logo após o fim de seu idílio, Damásio desfiava seu infortúnio a quem estivesse ali para ouvi-lo mas, com o tempo, tornara-se apenas uma pálida figura que respondia com sim, não ou apenas balançava a cabeça ante o que lhe diziam. 


O amigo ia ali discorrendo sobre as coisas da vida quando entre frases, Damásio jurou ter reconhecido o nome de Eglantina. Seguia o amigo falando de suas mazelas quando Damásio o interrompeu bruscamente perguntando se ele falara algo sobre Eglantina, o amigo desconversou, que não era nada demais e que ele nem deveria ter comentado com ele pois sabia de todo o ocorrido mas Damásio insistiu e como ameaçava alterar-se, confessou o amigo que Eglantina iria se casar dali a alguns dias com o tal primo, que soubera através de um amigo que namorava uma conhecida de Eglantina.


Damásio ficou mudo, olhou para o amigo que sentiu um calafrio lhe correr a espinha e então deu a Damásio todo o serviço sobre a cerimônia.



…...............................................


Eglantina era festa, podia não ser sincera quanto a ela mas assim como Damásio usara bem seu curativo, assim ela o fizera e, com o passar do tempo, acabou por emprestar a si mesma uma sensação de plenitude e calma, não poderia chamar de amor pois este sentiu apenas uma vez mas, era um sentimento que muito disso se aproximava e lhe dava o acalanto necessário para seguir com seus dias.


Depois do sim proferido de forma honesta mas pouco convincente a quem se atentasse ao sentimento, encarava a vida diante de si como um pequeno mar de rosas e alguns espinhos mas, estava determinada a fazer deles o melhor que pudesse e nas noites mais frias, quando o calor do amor comprado houvesse já arrefecido, ela teria em seu íntimo as lembranças de Damásio para aninhar-se e tomar algumas baforadas de vida que lhe emprestassem ânimo para seguir por mais um dia.


Saindo pela nave, ela e o marido iam sorrindo aqui e ali e, em certo momento, ela desconfiou de que estava realmente sentido-se um pouco feliz e que talvez, um talvez pequeno mas ao qual se agarrou com unhas e dentes, pudesse ser ao menos um pouco feliz mesmo que durasse pouco, melhor que nada ter e se há lição que devemos aprender na vida é a de fazermos com as migalhas que ela nos dá o pão nosso de cada dia.


Quando finalmente saíram da igreja, aguardavam que o arroz viesse do alto lhes desejar boa fortuna mas, ao invés de arroz veio foi um gelo súbito que lhe saiu do peito e entalou na boca ao ver Damásio na frente dela e do esposo novo em folha. 


Ficou lívida e olhou Damásio nos olhos, seu esposo olhou para ele e depois para ela esperando que alguém lhe desse alguma explicação, os convidados ficaram com as mãos presas dentro dos saquinhos de arroz, o suor frio cozinhando aos poucos os grãos, formando pequenos bolos de desconforto.


Como o marido lhe olhasse sisudo, Eglantina abriu a boca para pedir a Damásio que se fosse dali, que não viesse lhe arrancar o curativo que estava tão bem colocado mas, não teve tempo de completar a frase. Ouviu-se uma gritaria generalizada quando Damásio puxou sabe-se lá de onde uma faca longa e que  parecia ter o fio afiado o suficiente para cortar sentimentos, Eglantina arregalou os olhos e seu marido, temeroso de um tragédia iminente, pôs-se entre Damásio e a recém-casada.


Damásio deu um riso seco e escabroso, olhou ao redor, olhou para o marido depois para Eglantina e, de um golpe só, cravou em seu próprio peito a faca soltando um gemido que mais parecia um animal sendo abatido. 


Cambaleou e caiu de joelhos ante o casal, Eglantina fez menção de o acudir mas seu marido a deteve, Damásio então cravou ainda mais fundo a lâmina no peito e a foi torcendo, cada golpe um urro de dor que assombraria até os mais incrédulos, caiu para a frente escorando-se com uma das mãos no chão.


Eglantina lutava para ir lhe acudir mas seu marido novo em folha lhe tolhia os movimentos, o vestido agitava-se ao vento e o véu lhe cobria a face impedindo que enxergasse direito o que se passava com Damásio. Quando conseguiu finalmente tirá-lo da frente dos olhos, viu que Damásio voltara a ficar de joelhos, havia uma poça de sangue ao redor dele como a delimitar uma fronteira entre o amor que ele sentia e que ela imaginara.


Damásio tinha um dos braços soltos, lânguido e pendente e, ao final, a mão que segurava a faca vermelha do trabalho concluído. O outro braço ia estendido, moribundo mas rígido, esticado como algum tipo de régua e, ao final deste, a mão que amparava o coração que ainda pulsava.

19 de mai. de 2020

Around the world in a day




Muitos artistas, depois de um trabalho que os eleva ao patamar de super estrelas com aprovação de público e crítica, enfrentam o desafio ingrato de parir o próximo trabalho com a sombra do anterior a lhe fazer ameaça. Como se o artista fosse obrigado e repetir aquele êxito e fórmula para deixar não apenas fãs mas a indústria satisfeitos.

Prince ainda estava na ressaca de 'Purple Rain' quando, em 1985, lançou 'Around the world in a day'.

O disco anterior havia catapultado Prince para o olimpo estelar, o filme foi um sucesso estrondoso e a trilha sonora vendeu, na época, mais de dezessete milhões de cópias ao redor do mundo, ainda hoje é um dos discos mais vendidos. Price sentia sobre os ombros o peso de repetir o sucesso e o mundo e a indústria prendiam a respiração pois não eram poucos os casos de artistas que haviam naufragado gloriosamente ante tamanha pressão.

Mas, estamos falando de Prince, não de um pop icon qualquer.

Enquanto a gravadora cobrava pelo sucessor de PR, ele secretamente (mantendo segredo até mesmo de sua própria banda) compunha o sucessor do mega sucesso. Influenciado por uma mix tape que os irmãos de Lisa e Wendy haviam gravado inspirados, por sua vez, na fase psicodélica dos Beatles - sempre eles -, Prince começou a desenhar o que viria a ser ATWIAD e só passou a envolver a banda quando o disco estava praticamente todo concebido, típico, não deveria ser fácil trabalhar com Prince que tocava todos os instrumentos, arranjava, compunha, produzia, escrevia e tudo mais. Por outro lado, ter em seu currículo participação em qualquer trabalho com Prince era ambição de muitos músicos.

Reza a lenda que Prince concebeu ATWIAD como resposta a indústria da música e o sucesso estrondoso de PR, ele chegara ao topo e, pelo jeito, não havia gostado que tinha visto por lá. Indomável, recusou-se a fazer algo como PURPLE RAIN II, não era de seu feitio repetir fórmulas; para ele, cada trabalho era uma oportunidade de explorar outros ritmos e tipos de composição.

Já ao final da era PR, ele dava indícios de que a cultura pop que o endeusava não era suficiente para ele e, durante várias entrevistas chegou a informar que, ao final das turnês de PR ele se aposentaria para procurar pela escada (the ladder). Ao que parece, ele percebeu que havia chegado a uma encruzilhada: ou seguia pelo caminho de PR vendendo sua alma a indústria ou seguia seus instintos e fazia a música que lhe desse na telha.

Para nossa sorte, ele escolheu o segundo.

ATWIAD não tem absolutamente nada de PR, quem ouviu o disco esperando uma continuação com certeza quebrou a cara. Conheço muitos supostos fãs que torceram o nariz pois esperavam outro disco recheado de pérolas pop e grudentas. Lamento, exceto por RASPBERRY BERET e POP LIFE, o disco tem pouco a oferecer para ouvidos sedentos de canções fáceis ou baladas açucaradas.

O disco, a pedido de Prince, teve quase nenhuma promoção, ele estava determinado a fugir da bocarra da indústria que havia sentido seu gosto em PR e estava querendo mais. Esquece. Prince não ia se vender por tão pouco.

A própria capa já é uma afirmação, seu nome e da banda aparecem no mesmo logo da gravadora que acabar de fundar PAISLEY PARK, quase indecifrável e tanto ele como membros da banda aparecem em várias poses s situações remetendo ao Sgt Peppers e também aos temas abordados nas faixas do disco. Talvez uma das melhores capaz já feitas, arrisco dizer.

Musicalmente, ATWIAD mescla de tudo um pouco, logo de cara você é arrebatado por ritmos que vem talvez da Índia ou oriente médio mas a voz dele rasga tudo e o coro de fundo engata algum tipo de gospel, ele pede que você abra sua mente e seus olhos pois vai te levar para uma viagem.

Depois dessa abertura tapa na cara, ele passa o resto do disco falando de temas como sucesso, drogas, desigualdade social, sexo, Deus, tentação, redenção, amores perdidos e por aí vai.

Paisley Park é uma balada agridoce sobre encontrar um lugar onde podemos ser felizes sem ter que pagar por isso, quase se arrasta como um domingo de sol e preguiça.

Condition of the heart é uma balada jazz ácida onde Prince toca rodos os instrumentos e faz todas a vozes, uma das melhores que ele já fez.

Raspberry Beret, bem, dispensa comentários.

Tamborine, aqui ele liga o foda-se e traz uma das faixas mais experimentais que já compôs, novamente ele canta e toca todos os instrumentos num rap seco e cheio de conotações sexuais.

America é um rock simples e rasgado onde Prince tece um cenário real sobre os anos Reagan.

Pop Life é isso, um pop simples mas extremamente bem feito e que fala sobre as condições da vida pop que ele vislumbrou após PR e recusou a seguir.

The Ladder é seu momento de busca e reflexão, uma balada sincera e com teclados profundos e vocais simplesmente únicos, uma tristeza transpira pela música enquanto Prince canta sobre fazer escolhas que lhe permitam algum tipo de elevação espiritual.

Temptation fecha o disco num clima de funk pesado, sexual, luxúria pura, sujo e incitante mas que, ao seu final, apresenta como caminho a redenção sexual pela fé, como se Prince soubesse que para seguir na indústria da música ele não teria de necessariamente vender sua alma.

ATWIAD é uma pérola única que merece toda a sua atenção.

18 de mai. de 2020

Pilar e José

José parou, respirou fundo, deixou a frase que acabara de descer ao papel respirar também. Respiraram quase em uníssono mas passados alguns segundos, José percebeu a frase em outro ritmo, distinto de seu peito arfante, exausto pela tarefa de parir àquela e todas as demais antes dela.

Olhou para a frase ali quieta, respirando feito recém-nascido, quis lhe fazer um afago mas ela fugiu, só não foi mais longe porque havia um ponto que lhe segurou os passos e José, calmo, pegou a frase pelas mãos e disse ser aquele o final, ela deveria descansar pois não haveria mais nada depois, que se entendesse com as anteriores e, se houvesse inveja por ser ela a derradeira, que resolvessem isso lá nos idos do texto pois ele, pai, não poderia fazer distinção entre elas.

Pilar! Gritou.

Pilar! Gritou de novo.

Pilar! Gritou de novo mais alto.

Eu, José! Queres o que? Veio de algum lugar da casa a resposta batendo pelos cômodos.

Terminei, vens aqui dar uma olhada! Disse aos gritos.

Mas homem, tem de ser agora? Respondeu ela.

Tem de ser agora que está fresca a tinta e tem de ser agora porque é igual pão, só serve quente, saído do forno, oras! Retrucou ele.

A ouviu arrastando-se pela casa, os passos de Pilar eram frases escritas nas paredes de cada cômodo junto com os dele, passos pontuados por longas pausas sem espaçamento, vírgulas que saltavam vidas, parágrafos que falavam muito e não diziam nada, diálogos que diziam muito quando não falavam nada, pontos aqui e ali para dar um pequeno fim a momentos quase inexistentes, parênteses para guardar segredos de fora e colchetes para guardar os de dentro, sílabas átonas em palavras tônicas e tônicos para nervos que de aço, tinham apenas o nome, as vontades sim eram de ferro.

Arre, homem! É sempre assim essa pressa quando acabas, há de ter meus olhos para garantir? Os seus não foram bons o suficiente? Disse ela por cima do ombro dele.

Teus olhos são mais frescos e tem mais retina, os meus servem a mim ao contrário, enxergam para dentro e me ajudam e tirar de lá o que preciso colocar no papel. Depois disso, preciso de outros olhos para ter certeza de que o fiz bem! Disse José enquanto via Pilar sentar-se a seu lado.

Sentou e bufou, como se houvesse deixado algo importante por fazer, pela metade.

Dá-me aqui, então! Disse ela estendendo a mão e flexionando os dedos.

José pegou um calhamaço de páginas e as pousou sobre sua mão estendida, como a presentear um santo com um ex-voto.

Está aí, vais ler tudo, certo? Tens de ler tudo ou não vai prestar que me dês sua opinião. Disse sem soltar as páginas na mão de Pilar, olhava direto em seus olhos esperando a promessa.

Mas já li tudo antes, homem! Sei bem onde parei, me basta ler até onde tu acabaste de escrever, terminaste de vez, não? Disse inquisitiva.

Sim, terminei! Mas não me serve meia opinião, se for para isso eu mando a meu editor, tua opinião, afinal, é a que mais prezo. E fez olhar de quem ameaça engatar um choro.

Sabes que sempre leio tudo, me custa dizer não a ti mesmo quando não mereces meu sim mas, olha isso homem - e apontou para o vergalhão de papel no meio do caminho entre as mãos de ambos. Seja sensato, ler tudo isso de novo é penitência e eu só vou me confessar de novo daqui a dois meses que de pecados já estamos à míngua faz é tempo.

Vai, vai! Disse ele liberando as folhas com um muxoxo. Podes ler desde onde paraste, não me fica mal, fico assim de jeito mas não quero que te molestes por algo tão pequeno.

Ah, mas vem tu agora com essas manhas? Disse ela batendo com as folhas na mesa. Faz favor, José, que de filhos já tivemos cá a nossa cota e agora aqui em casa de criança só tem a ti e já basta! Chega de brincar de ser guri e vamos é ser gente, não é?

Ele resmungou algo enquanto ela separava as folhas buscando o ponto onde havia parado.

Aqui, achei! É daqui para frente, te dedicaste neste hein? Olha isso! E apontou para a resma de papel espalhada sobre a mesa.

Ainda falta revisar tudo, sabes que não é assim disse mal-humorado e cruzando os braços.

Olha, se te faz gosto eu leio tudo de novo. Disse ela pousando a mão sobre os braços dele. José a olhou de lado e sorriu maroto, ela aquiesceu e começou a ler enquanto ele ficava a seu lado apenas estudando seu rosto atrás de sinais que entregassem se estava ou não lhe agradando a leitura.

Passaram-se vários minutos, talvez horas. José tinha uma relação estranha com o tempo, ao escrever sentia como se fossem horas mas, ao apurar o tempo, havia passado dias. Ao pedir a Pilar que lesse o que escrevera, lhe parecia que passavam minutos quando na verdade tinham sido horas.

Pilar terminou e pousou a última folha sobre a mesa com a face escrita para baixo, um passarinho pousou no parapeito da janela da sala onde estavam, olhou para dentro e levantou voo. Um caminhão passou na rua roncando alto seu motor. Uma porta bateu no vizinho e alguém reclamou. Um vento leve fez as folhas sobre a mesa levantarem um pouco. Um cachorro latiu ao longe e outros responderam ao chamado. Um chiado estranho surgiu do nada, como se um rádio estivesse fora de sintonia. Um bater de palmas chamando por um nome veio da rua e uma voz feminina cantava alguma canção muito antiga enquanto fazia as tarefas do dia.

E? Perguntou ele com olhar ansioso.

Pilar esfregou as mãos nos joelhos, olhou para ele e depois para a janela onde o pássaro já não mais estava.

Que queres que eu diga? Está bom, tu sabes escrever, me irrita essa mania de não usar quase pontos e vírgulas e os diálogos misturados ao resto, há que ser muito bom leitor para entender onde começa e acaba, mas tu tens a escrita em ti. Sentenciou.

Só isso? Mais nada? Não tens nada para comentar? Sobre a trama, personagens, nada? Vais me dizer isso só? Disse ele apontando para a pilha de papel na mesa.

E tu queres que eu diga o que? Não sou tua editora, homem! Toda vez é essa mesma pantomima, tu escreves, eu leio, tu reclamas que eu não dou opinião, tu escreves de novo, eu leio, digo as mesmas coisas e tu reclama de novo, assim estamos há anos, José. Tu gostas que eu leia parece que para me humilhar ou porque precisa dessa ladainha para depois pôr nos eixos as histórias que tu inventas! Finalizou o discurso batendo as mãos enfaticamente nas coxas.

Já sei o que preciso arrumar, está claro! Disse ele recolhendo os papéis de cima da mesa e arrumando-os.

Se está claro, então vou é passar um café que essa leitura toda me deu foi cansaço! E levantou-se enquanto ele seguia pondo lá os papéis em ordem.

Foi para a cozinha, os passos remoendo cada palavra que sempre trocavam quando tinham aquele tipo de discussão. Passou o café, junto com o pó foi lá um pouco de tristeza e miudezas de uma vida de casal que, se não estava morta, ainda tinha algo sensível a se embrenhar em algum canto daquelas palavras que ele não escrevia e que ela não lia.

Queres, café? Gritou da cozinha.

Não houve resposta, de certo ele estava já a reescrever, pensou. Tomou lá seu café e depois colocou a xícara na pia, não se lavava nada ali na hora pois coisas lavadas limpam as ideias, há que deixar a sujeira assentar e depois ver se não surge dali nada interessante.

Foi-se para o quarto, sentou-se na cama e ficou ali a observar o teto e ver a luz do dia aos poucos fugindo pelas frestas da janela meio aberta. Já sentia o sono, mesmo após o café, lhe desarmando e ganhando espaço em sua corrente sanguínea, os olhos pesavam como se fossem feitos de mármore e a respiração ia arfando mais funda preparando o corpo para entregar-se ao dormir.

Já ia fechando a porta do mundo, em vigília, quando veio o grito.

Pilar!

15 de mai. de 2020

Telefonema às duas da manhã

Telefonema às duas da manhã.

Toca. Toca. Toca. Sai da toca do sono aos poucos, filhote de algum mamífero, arrastando o corpo frágil para fora da Toca Toca Toca. Abre olhos, escuro, medo que dá, medo que deu, medo. Toca Toca Toca. Procura o telefone Toca Toca Toca.

A  sono l muito ô muito sono.

Mudo, vasto mudo que se me chamasse mudo como seria se fosse mudo?

Alô - sem sono. Acordou. Já não filhote. Adulto, com raiva pelo sono cortado.

Alô - do outro lado. Voz conhecida, sintoma de sonho, talvez.

Pois não? - raiva do sono, oito horas por noite, mal havia dormido uma.

Ruídos. Migalhas do outro lado da linha. Comiam. Bolachas talvez. Biscoitos. Bolacha ou Biscoito? Regionalismos estão sujeitos ao onírico?

Quem é? - diz o sono cortado, quer dormir, todos queremos, há de se resolver isso logo.

Sou eu - outro lado, mesma voz.

Eu? Eu quem? Vou desligar, são duas da manhã! - reclama o raivoso do sono.

Eu sei. Estou ligando para te avisar - a voz, a mesma, conhecida, de quem?

Olha aqui, amigo, vai te catar! Duas da manhã! Que trote é esse? - há limites, há que respeitar. Ligar para passar trotes durante o dia vá lá que se perdoa mas, de madrugada?

Não é trote. Liguei para avisar, sou eu - insiste a voz que ainda lhe foge.

Eu quem? Vou desligar, lamento - cansa, discutir às duas da manhã, cansa.

Desculpe. Me apresentei errado, sou eu mas quis dizer que sou você, quer dizer, eu sou você, somos nós - a voz lhe parecia bem conhecida, piada essa, era assim que soava? Não, tinha voz mais bonita que isso, madrugada ingrata.

Que palhaçada é essa? É você, Artur? - o amigo brincalhão - Se é você eu te capo amanhã seu puto!

Não. Sou você, quer dizer, eu, quer dizer, só preciso avisar mais nada e amanhã já é hoje ou você está falando do dia depois porque, duas da manhã, entende? - voz cansada, mesmos tons, forma de puxar as sílabas, Artur estava caprichando.

Tá, Artur, tá. Desembucha logo que eu quero voltar a dormir, que tu quer avisar? - resignação, cansaço, são a mesma coisa? Ou estágios diferentes de uma letargia?

Já lhe disse, me disse, disse, enfim, não sou Artur! Sou nós. - um pouco de irritação, aquele tique vocal que lhe afligia quando irritado.

Tá bom, tá bom! E qual é o aviso? Pode dizer logo pra eu, você, a gente voltar a dormir - brincadeira tem hora, tem hora? Duas da manhã. Hora de brincar? De dormir? De brincar no dormir?

Não beba o leite - a voz dele, do outro, deles.

Oi? - Artur, ah, Artur, se lhe pego depois vai ficar só Tur porque Ar não vai ter mais.

Não / Beba / O / Leite - palavra por palavra.

Hum, ok, não beber o leite, só isso? Mais alguma coisa? - hora de brincar assim? Haja paciência.

Não beba. Eu, você, quer dizer, a gente, não beba! Por favor! - a voz quase lágrima, mesmo tom quando ele ficava choroso.

Tá bom, sem leite, prometo! Mais alguma coisa? - leite, coisa de vacas, sonham as vacas? Dormem? Fazem leite sonhando?

Não, apenas isso - voz cansada, a do outro, a dele, a deles, de todos, duas da manhã.

Ok! Boa noite então - desliga que duas da manhã já passara, aquele pedaço de tempo não seria recuperado, perdeu-se, ficou em algum lugar.

Toca Toca Toca.

Não o telefone, despertador. Acorda, sono ruim, sonhos, leite e vacas, elas dizendo que o leite bom deve ser quente, leite frio causa azia, má secreção, pedem que o leite seja santo, ordenhado com respeito e perguntam se o leite dos homens tem o mesmo gosto, quem sabe? Ordenhar um homem sempre foi tarefa meio inútil.

Água no rosto, bochecho tira o gosto de sonho da boca, cospe as vacas e seu leite na pia, escoam pelo ralo com aquele gosto de manhã regurgitada. Cozinha, café na máquina, pão na chapa, fruta cortada no meio que inteira não tem como entrar, tudo deveria ser ao meio, mais fácil para entrar.

Pega o leite na geladeira, cheira. Está fresco, as vacas trabalharam bem. Como faziam para gozar o leite nas caixas? Mira? Prática? Enche a xícara, o café quase pronto. Bebe o leite, depois beberia o café, café com leite é bom, leite antes do café, pode? A ordem da ordenha altera o desjejum?

Engasga, tosse, arfa, perde fôlego, tosse de novo, um esgar puxa a boca, bate no peito, tosse de novo, preso no peito, ar sem ar, regurgita uma saliva meio pálida, puxa o ar, não vem, tosse de novo, um ruído primal vem do seu âmago, macacos escondidos nos genes acordam quando a vida corre perigo, cai, tenta erguer, segura a cadeira, sente os olhos saltando, o ar que não existe, a tosse que trava a traqueia, a baba que começa a escorrer pelo nariz, os ouvidos fazendo zum zum zum, luzes que espocam nos olhos, quer gritar, não sai, um mugido estranho sai, quase um grito mas não, arfa, a língua fugindo para trás da boca, o ar não é mais ar, a massa que lhe tapa a garganta, leite, saliva, ranho, cuspe, morte lactosa, veio lhe ordenhar a vida, cai no chão, contorce feito uma salamandra epilética, arfa, arfa, arfa, o leite, o leite, duas da manhã, eu, ele, nós nos avisamos.

Um último suspiro, sai quieto da boca, foge e se mistura ao ar que existe sim mas fora dele. A caixa de leite, vazando seu líquido branco pelo chão, a lhe molhar os cabelos.

14 de mai. de 2020

Fim de quarentena

Quando acabou a quarentena. Não sabia se era exclamação, interrogação, vírgula, ponto e vírgula, reticências ou ponto final. 


Quando acabou a quarentena, sai correndo nu pelas ruas e fui preso por mãos afoitas que não sabiam mais como era tocar um corpo. Cumpri perpétua que durou até o primeiro gozo.


Quando acabou a quarentena, abriu aquela champanhe barata que guardava feito relíquia sagrada. Ligou o som, aumentou o volume e bebeu, cantou, gritou, da janela, em uníssono com todos os outros que também celebravam. Ébrio, dançou pela casa, rodopiou, derramou a bebida no tapete cansado de guerra, proferiu palavras de ordem e já se acercando do cansaço, masturbou-se e dormiu. No dia seguinte, acordou de ressaca. Banho frio, café forte, jornais matutinos noticiando a volta do normal. Vestiu-se e munido de ânimo,  abriu a porta para encarar essa nova normalidade que chegara, a vida morreu, longa vida a vida. Olhou para a rua e, com um tremor incontrolável, fechou a porta e voltou para dentro de casa. Despiu-se, encolheu-se no sofá enquanto a televisão lhe trazia aquele admirável mundo novo.


Quando acabou a quarentena, tomou banho, fez barba, escovou dentes, desodorante e perfume. Vestiu a melhor roupa, cueca nova, sapato novo, tudo zero afinal, ele a rua iriam desvirginar, carecia fazer a corte; há tempos estavam em namoro platônico, soltando suspiros pelos pulmões e asfalto. Deu uma última olhada no espelho só por garantia e, dono de segurança inabalável construída durante a quarentena, saiu ao encontro da amada. Morreu atropelado ao colocar os pés na rua, o sangue escorreu pelo asfalto quente, o trânsito nervoso saindo da quarentena reclamou, as pessoas aglomeraram para ver algo que não viam há tempos. Alguns juravam ter visto água correndo junto com o sangue. Talvez um encanamento aberto. Talvez a rua chorando o amado e pedindo desculpas afinal, era de sua natureza.


13 de mai. de 2020

LOVESEXY

Que Prince era um gênio não restam quaisquer dúvidas e talvez por isso mesmo, este seja um de seus discos mais subestimados.


Explico.

Em 1987, ele lançou 'SIGN O'THE TIMES', um sucesso retumbante de crítica mas comercialmente um 'fiasco' sim, entre aspas porque Prince, mesmo quando fazia fiascos (e SOT não foi um deles), ainda era melhor do que a média.

Alguns críticos, entretanto, teceram comentários pouco elogiosos ao disco - blasfêmia, o disco é foda - acusando Sua Majestade Púrpura de renegar a música negra e enveredar pelo mundo pop. Aqui começam as lendas ao redor de LOVESEXY e o disco que está entre ele e SOT - THE BLACK ALBUM.

A história 'oficial' é que o projeto inicial de Prince para SIGN O'THE TIMES seria um álbum quádruplo, sim, QUÁDRUPLO e material para isso ele tinha mas, obviamente, a gravadora engavetou tal absurdo, quem em sã consciência lançaria um álbum quádruplo quando a indústria da música passava por - mais uma - crise?

Prince lançaria.

Ainda no roteiro oficial, diz-se que BLACK ALBUM foram sobras de SOT e que ele se recusou a lançar optando por LOVESEXY que também era composto de sobras de SOT. A disputa deu-se porque Prince desejava que BLACK ALBUM fosse lançado sem arte de capa ou contra-capa, sem informações sobre as faixas, sem encarte, em nome do artista, sem nada, apenas uma capa preta e o disco dentro, como a gravadora jamais concordaria com isso, o projeto foi abandonado e LOVESEXY nasceu.

Bem, essa a história quase oficial. Eu prefiro outra que me parece mais condizente com a personalidade de Prince não que esta que contei acima não seja típica de seus rompantes ou rusgas com as gravadoras.

Reza a lenda que efetivamente, SOT deveria mesmo ser um álbum quádruplo mas que o terceiro disco (que seria o BLACK ALBUM) componente do projeto, era totalmente destoante do resto do material porque ele o usara como resposta aos críticos que o haviam acusado de ter esquecido como fazer música 'negra' e ter se rendido ao pop dando ao disco ares muito mais cáusticos, sombrios e pesados.

Como a gravadora abortou o álbum quádruplo, Price resolveu lançá-lo em separado em 1987, mesmo ano de SOT deixando a gravadora em polvorosa, nenhum artista poderia lançar dois discos no mesmo ano, lembrem, era antes do streaming e a facilidade de compartilhamento de músicas.

Mas, ele insistia que o disco fosse lançado como idealizado e ainda em 1987 e como disse acima, sem nome, sem informações, sem título, sem nada nem nome das faixas ou qualquer coisa ou seja, a gravadora surtou mas teria de lançar o disco por razões contratuais tentando negociar para 1988.

Nesse meio tempo, dizem que durante uma 'bad trip', Prince teve uma epifania e passou a considerar BLACK ALBUM como algo maligno, das trevas, fruto de uma influência nefasta que ele chamava de 'Spooky Electric' e que seria o diabo. Decidiu renegar o disco e, poucas semanas antes do lançamento oficial, mandou recolher as pouco mais de 500.000 cópias que já haviam sido distribuídas e destruí-las, o BLACK ALBUM fazia seu debut no universo de discos piratas mais cobiçados.

Há quem diga que na epifania, Prince teve algum tipo de revelação e foi a partir daquele momento que se converteu o que eu, sinceramente, acho pouco crível pois temas relacionados a Deus sempre permearam sua obra. Provavelmente, a 'bad' deve ter causado algum curto circuito e o BLACK ALBUM, que realmente era um disco pesado, funky, sombrio, pornográfico até acabou simbolizando para ele algum tipo de totem maligno e causador de desgraça a ponto de renegar sua obra.

O disco foi lançado oficialmente em 1994 numa tentativa de encerrar a disputa que se arrastava já alguns anos com sua gravadora mas poucas cópias foram disponibilizadas e Prince se recusou veementemente a falar sobre o disco, sair em tour ou qualquer tipo de promoção do álbum relegando-o novamente para a obscuridade tanto que nem de sua discografia oficial ele faz parte.

Em seu lugar, surgiu LOVESEXY que também eram 'sobras' das sessões de SOT revisitadas e finalizadas, apenas a faixa 'When 2 R in love' foi reutilizada do BLACK ALBUM. Lançado em 1988 como sucessor de SOT, mostra Prince refeito, renascido e passando uma mensagem de luta entre o bem e mal usando a sexualidade como caminho para atingir algum tipo de elevação espiritual.

Pessoalmente, acho que esse disco sofreu pela celeuma SOT/BLACK ALBUM e acaba sendo considerado como um disco menor de Prince. Ledo engano. O disco é uma gema de música pop, funk e rock com arranjos precisos e preciosos, construções vocais úncias e letras mais do que profundas discorrendo sobre amor, ódio, preconceito, guerra, solidão e como suplantar o mal que habita em nós se escolhermos o bem que também habita o mesmo espaço.

Prince desejava passar uma mensagem de esperança e fé, festa, positividade e LOVESEXY fala exatamente disso desde a abertura com 'EYE NO' onde explica saber que existe um céu e um inferno, passando por 'ALPHABET STR' (hit mas não é a melhor música do disco) onde há um dos melhores raps já feitos numa canção (o vídeo da música tem uma mensagem secreta onde se pode ler 'DON'T BUY THE BLACK ALBUM, I'M SORRY') e baladas como 'WHEN 2 R IN LOVE' e 'ANNA STESIA' onde ele novamente fala sobre a dificuldade de escolher entre o bem e o mal, o disco fecha com 'POSITIVITY' e sua mensagem de que aos escolhermos o mal, ele nunca mais nos deixará ir embora.

Um detalhe interessante é que a versão em CD e streaming do disco, as faixas não possuem separação ou seja, você é forçado a ouvir o disco como uma sequência única (no vinil há uma informação igual mas fica mais evidente a separação entre as faixas) parte da ideia de Prince de passar a impressão de algum tipo de obra conceitual que não se pode desmembrar assim como não podemos desmembrar nossas almas.

De qualquer forma, LOVESEXY pode não ser o melhor disco de Prince mas é um disco emblemático e testemunho digno de sua genialidade, apesar de já estar com o embrião do que viria a ser sua nova banda, NEW POWER GENERATION, em muitas músicas ele faz todas as vozes e toca todos os instrumentos.

No final das contas, ele fazia o que queria sem se importar com rótulos ou críticas.

 

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