8 de dez. de 2021

judas



Precisamos revisar o conceito de traição e tirar dele o peso moral, religioso e construído pela sociedade e urgente!

O que é uma traição?

A grosso modo, sendo bem genérico e amplo, melhor, usando o léxico:

quebra da fidelidade prometida e empenhada por meio de ato pérfido; aleivosia, deslealdade, perfídia; ou seja, algo muito ruim e passível de reprimenda ou, conforme o caso, até consequências jurídicas e legais.

Desde que Judas vendeu o Messias por 30 moedas e até mesmo antes disso, o conceito de traição existe com apenas um intuito: construir, limitar e ajudar a manter o tecido social assim como as pessoas sob controle e dentro de um regime de conduta ético e que ajude a preservar a estrutura social como um todo.

A traição enquanto conceito moral é válida e realmente ajuda a manter a sociedade coesa, sem isso viveríamos na selvageria se bem que muitas vezes penso se já vivemos mas, vamos dar o benefício da dúvida. É o conceito de lealdade que nos mantém unidos, que nos une em grupos, amizades, família e outros construtos sociais pois precisamos da segurança deles para sentirmos que pertencemos a um lugar e que teremos sempre - ou quase - quem nos ajudará e com quem poderemos contar nos momentos mais tensos.

Quando essa confiança se quebra, temos a traição e ela machuca pois a confiança é algo que demora para ser construída e se quebra com uma facilidade extrema. Somos criaturas carentes por excelência e precisamos confiar no outro para termos algum tipo de plenitude, completude e pertencimento e isso não é ruim mas, deveríamos antes sermos fiéis a nós mesmos e não deixar nas mãos dos outros, é muita responsabilidade para qualquer ser humano que tem em seu DNA o gene da imperfeição e traição.

A romantização da traição enquanto componente dos relacionamentos afetivos é responsável por sermos as criaturas neuróticas, paranoicas e controladoras que somos, a construção moral e social que se fez em torno dos afetos, amores e sexo colocou o que deveria ser natural como nocivo, pecaminoso e crime e a traição passou a ser hedionda pois fere uma construção feita para condenar e aprisionar a todos sob um peso imenso que nenhum de nós é capaz de carregar.

Somos sim responsáveis pelo afeto que conquistamos como disse aquele autor mas, não somos e não podemos ser responsáveis pelo peso imenso de dedicar nossas vidas e essências, isso é uma traição da pior espécie, a traição a nós mesmos e a nossa natureza enquanto humanos. Enquanto não desmistificarmos a traição e a tratarmos dentro dos limites que ele possui, estaremos fadados a sermos infelizes e miseráveis e a fazer os outros tão infelizes e miseráveis quanto nós.

Veja bem, volto a dizer que ao nos envolvermos com outras pessoas nos tornamos sim responsáveis por elas e elas por nós mas apenas dentro do limite do que nós, enquanto dentro do relacionamento, desejamos construir juntos. Nesse contexto, a traição engloba macular o que desejamos enquanto juntos, o não respeitar a vontade do outro e sua essência, impor padrões e tentar mudar que somos para agradar uns aos outros, isso sim é traição ou então, fazer oi desejar o mal ao outro, agir de forma a prejudicar física ou emocionalmente, tratar com desdém e pouco valor os sentimentos, isso é traição.

O conceito 'romântico' da traição carnal e emocional precisa ser banido ou então colocado sob observação para que possamos todos ter mais serenidade e liberdade de expressar sexual e emocionalmente tudo que somos, não somos nem fomos feitos para limitações, elas foram criadas para manter a todos sob controle e em ordem, questionar isso é questionar a própria sociedade e isso nunca é fácil ou aceito, somos taxados de pervertidos, não amamos de verdade, não sentimos nada, quem ama não trai e por aí vai.

São esses conceitos que precisam ser revistos e rearranjados para que possamos ter autonomia sobre nossos corpos e sentimentos, apenas nós somos responsáveis por eles, colocar sob responsabilidade do outro tais coisas é receita certa para o desastre e infelicidade eterna e esse é pior tipo de traição.

7 de dez. de 2021

herdeiros do vírus

Ontem, após longo e tenebroso inverno, revi amigos.

Não serei hipócrita, já estava saindo com alguma regularidade mas evitando grandes aglomerações e espaços fechados na medida do possível mas, estava sim saindo já porém, depois de quase dois anos, rever pessoas que eu não tinha mais visto foi algo mágico.

Um sentimento de sobrevivência que já vinha embrionando e agora se faz mais real, somos sobreviventes e quando tudo isso for estudado, se estivermos aqui ainda, poderemos testemunhar esse período que passamos e dizer que estávamos lá.

Sei que ainda não passou por completo mas, nós que ainda estamos aqui temos um certo tipo de obrigação moral em contar a história e fazer com que não seja esquecida e que não tenhamos mais governos negacionistas quando a próxima pandemia vier - e ela virá, infelizmente - somos herdeiros do vírus.

Ele levou não apenas vidas mas nossos abraços e beijos, nossos encontros e contato, nossa vida comum tornou-se algo complexo e cheio de rituais que precisamos executar antes de podermos fazer as coisas mas, como bons humanos que somos, nos adaptamos.

Voltar a ver com olhos e não fotos e câmeras quem amamos, abraçar, tocar e sentir que estamos vivos não tem preço, tomara que passemos a dar mais valor a essas coisas agora que passamos por tudo isso, que possamos colocar, na medida do possível, nossas diferenças de lado e entender de uma vez por todas que a vida é um sopro, um segundo, um nada, um cristal delicado que pode quebrar do nada.

Nunca pensei que teria esse sentimento de sobrevivência ainda que, em alguns momentos de minha vida sim mas, por razões individuais, nunca em escala tão grande.

Vamos então aproveitar a herança do vírus e fazer valer esse momentos que teremos pela frente.

6 de dez. de 2021

the sound of music

Fim de ano e todos os aplicativos fazem a já conhecido retrospectiva.

Fico imaginando se os aplicativos se sexo e encontros também fazem, como seria? Mostrariam todos que saímos, recusamos, ficamos, fodemos, curtimos, quais os mais woofeados, os menos, qual seu score no mundo dos apps mas, acho melhor que esse tipo de aplicativo não faça isso, seria um golpe fatal em muito egos já frágeis e combalidos e que não suportariam esse golpe virtual mesmo porque, pode ser que tal retrospectiva traga memórias não muito agradáveis então, melhor deixar as lembranças sexuais e eróticas para um segundo momento afinal, o que o sexo não vê, o coração não peca.

Pensei mais na música e nas retrospectivas dos apps que usamos para escutá-las e no algoritmo que a tudo vê, tudo sabe, tudo conhece, tudo acusa e tudo controla. Esse resultado pode representar, para o universo virtual, um recorte de tudo que ouvi no ano mas é apenas isso, um recorte, eu fiz e ouvi muito mais do que ali informa, não é só aquilo, aquilo é o que o algoritmo pensa de mim e não me contém.

Mas, o que mais me surpreendeu foi ler, nos comentários das retrospectivas gerais feitas nos feeds dos apps, gente reclamando e diminuindo as listas de artistas mais tocados expressando opinião de que o Brasil não tem mais salvação, país sem cultura, sem esperança e jogado na latrina da intelectualidade simplesmente por ter, nos artistas e músicas mais tocados, funk, sertanejo, sofrência e outros ritmos e músicas que não estariam no panteão da alta música popular.

Eu não ouço nenhum desses gêneros, sou chato para música e não gosto de boa parte da chamada nova geração da música brasileira e não por ser elitista ou metido a intelectual mas apenas porque essa nova safra não dialoga comigo, não diz nada que eu queira ouvir e não me agrada então, passam longe dos meus fones de ouvido mas, isso não quer dizer que não tenham valor, talento e que não representem a voz de uma geração.

Dizer que estamos na merda cultural porque os artistas mais tocados são do funk, sertanejo, samba, pagode, new drag music ou seja o que for é desmerecer a cultura nacional e sua representatividade, não é preciso diminuir uma geração para valorizar outra, o tempo é mestre e senhor e o que foi essencial para minha geração pode não ser para essa de agora, os valores são outros, as vozes são outras, as necessidades são outras e os espaços são outros então que tal respeitar o gosto alheio e pelo menos reconhecer que se não está sendo feito algo que nos agrade, está sendo feito algo que tem sim relevância?

Dizer que funk só fala de putaria e não tem conteúdo é uma diminuição grotesca de um movimento não apenas musical mas cultural, não me agrada mas é uma revolução e traz e dá voz a muitos segmentos sociais e minorias e, se fosse tão ruim assim, não teria caído no gosto da maioria ainda que se possa argumentar que 'toda unanimidade é burra'. Dizer que sertanejo e sofrência são ruins é igualmente desfazer de um movimento que trouxe sim ares novos e representatividade para a música assim como outros movimentos e artistas como Pablo e outros tantos LGTBTQIA+ que abriram e estão abrindo espaço em tempos de tantos retrocessos.

Precisamos entender que a cultura não é uma deusa intocável que só vive de elitismos e normas cultas mas uma entidade viva que precisa estar inserida em seu tempo e dialogar com as pessoas, ter a cara delas e deixar que se expressem e mostrem que tudo que é feito pela sociedade é cultura, desde os slams até os saraus, dos museus ao pancadão, tudo é manifestação cultural, precisamos parar de agir como someliers culurais dizendo o que tem e não tem valor só porque não caiu em nosso gosto ou não atende a uma norma pré-estabelecidada.

Quem estabeleceu essa norma e essa regra? Quem define o que é bom ou ruim culturalmente? Eu? Você? Não! Quem define isso é quem consome a cultura, quem precisa ver nela sua cara e sua voz e a cultura tem espaço para toda e qualquer manifestação, para todos expressarem sua voz então, que tal deixar que cada grupo ocupe seu espaço e viver de boas?

Se ficarmos torcendo o nariz para o vizinho porque ele não atende ao nosso gosto estamos fragmentando tudo e deixando espaço para o monstros dividirem ainda mais o que custamos tanto para conquistar....

2 de dez. de 2021

deus está morto(?)

O Deus combalido, fraco e falido acordou de seu sono quase eterno encharcado num suor de galáxias e zonzo de outros universos.

Havia tido um pesadelo horrendo. Ainda incerto de estar realmente acordado ou ainda preso naquele horror onírico, chamou pelos outros Deuses para lhes contar o que sonhara e pedir que lhe interpretassem, dessem algum sentido, ordem ou significado pois mesmo sendo Deus, quando nos domínios do sonho ainda se submetia aos desígnios de divindades muito mais antigas, anteriores e há tempos esquecidas e mortas salvo na mente dos Deuses novos que ficaram em seu lugar sem saber se eram filhos desses Deuses de antes ou Novos Deuses que criaram a tudo que existia.

Cercado já dos outros Deuses, começou a contar-lhes seu pavoroso pesadelo mas antes, perguntou por quanto tempo havia dormido. Os Deuses não sabiam responder ao certo, alguns diziam apenas dias, outros horas, uns diziam que talvez milênios ou milhões de anos mas o consenso era que não se podia dizer já que o tempo para Deuses fluía de forma distinta.

Conformado com tal ignorância, o Deus começou seu relato.

Não se lembrava de como tinha adormecido mas apenas de, sem razão aparente, ter sentido um sono incontrolável e dormido quase que instantaneamente. Deuses dormem ainda que seja um fato muito raro e que deva ocorrer, para colocar em termos humanos, como se uma pessoa dormisse durante todo o decorrer de sua vida apenas duas vezes antes do sono permanente que nem mesmo Deuses podem escapar ainda que para eles, tal sono seja outra coisa.

O Deus lembrou-se de que de início não havia notado nada anormal, Deuses sonham mas são cuidadosos ao sonhar pois às vezes, de seus sonhos podem surgir realidades inesperadas e incontroláveis. Disse que primeiro apenas sonhara, nada fora do comum, sonhos de Deuses são de certa forma parecidos com o humanos, mudam apenas em escala.

Lembrou-se de que tudo parecia correr bem enquanto sonhava até, em certo momento, passou do sonho ao pesadelo onde pessoas eram criadas a sua imagem e habitavam um lugar idílico onde tudo era permitido e concedido e a inocência reinava lado a lado com o conhecimento mas, a criação divina parece não ter ficado satisfeita com aquilo e queria algo chamado liberdade e acabou se rebelando e o Deus, ressentido, expulsou a todos do lugar concedendo a liberdade que almejavam mas advertindo que ela não viria sem um preço.

Dali em diante o pesadelo foi piorando pois as criaturas e o Deus nunca mais se entenderam e pensavam sempre novas formas de ofender um ao outro acarretando guerras, desgraças, fome, doenças, morte, extinções, horrores jamais imaginados e tudo só fazia piorar ainda que, de tempos em tempos, houvesse algum período de distensão como um tipo de fôlego que se toma antes de mergulhar novamente a cabeça na água.

O Deus lembrava-se de que mesmo tendo feito de tudo para ajudar as criaturas, sua relação com elas seguia deteriorando e cada vez mais tanto ele como elas estavam descontentes e sem encontrar uma solução para a relação já desgastada. Havia gente qua ainda tentava fazer com que as duas partes se falassem mas eram arremedos de profetas e enviados e só faziam mais mal do que bem até que, depois de uma doença que dizimou quase todas as criaturas e que não fora do feitio do Deus porque ele, apesar de tudo, amava as criaturas e apenas enviava castigos proporcionais a ofensa que um filho comete a um pai eternamente amoroso; o Deus resolveu que era tempo de encerrar aquele experimento falido e num estalar de dedos dizimou todas as criaturas e foi nesse momento em que acordou.

O Deus terminou seu relato e pediu aos outros Deuses que lhe interpretassem o sonho. Sem saber o que dizer, os Deuses ficaram olhando uns para os outros buscando algum tipo de informação que permitisse responder ao questionamento feito mas sem encontrar.

O Deus ficou impaciente ante a mudez dos Deuses e exigia que lhes dessem uma explicação para aquele sonho inquietante até que, entre os Deuses, um se levantou e aproximando-se do Deus pousou a mão esquerda em seu ombro e disse.

Mas Deus está morto! Nós não somos Deuses mas seus companheiros neste sanatório há anos já! Você morreu faz tempo e nós também morremos há tantos anos que nem mais sabemos contar mas seguimos vivos e sonhando que somos Deuses e que você é Deus porque estamos vivos nas mentes de quem ainda lembra de nós mas, fomos trancafiados aqui porque não somos mais do que lembranças mesmo e ninguém lá fora quer viver delas salvo esses poucos que nos mantém vivos. Nós morremos juntos faz muito já, apenas não fomos enterrados mas trancados vivos aqui para irmos aos poucos definhando até deixarmos de ser...

O Deus olhou para o Deus com olhar perdido e um pequeno fio de saliva correu do canto de sua boca, talvez fosse uma lágrima que incapaz de encontrar caminho pelos olhos acabou saindo por ali e, engolindo em seco disse.

Deus, estamos aqui então? Vamos morrer assim?

Todos acenaram com a cabeça e o Deus então deitou-se, encostou a cabeça no travesseiro e voltou a dormir.

1 de dez. de 2021

pequenas lembranças aleatórias

Dia desses, depois de uma sessão de terapia quando você abre portas que nem sabia que deveria abrir, lembrei de uma coisa distante, perdida nos neurônio combalidos aqui mas, a mente nossa é um emaranhado, um novelo que vai se desfiando com o tempo e às vezes achamos o fio da meada só para engatar em outro fio e depois em outro e depois em outro...

Sempre fui fã de Legião Urbana, o lirismo triste e amargo de Russo falavam com minha sexualidade latente e divergente que, então, não possuía voz ou amparo, eram tempos sem like, sem compartilhar, sem selfie, sem whats, sem nada, era a gente pela gente mesmo e às vezes nem isso.

Para encontrar outros era preciso esconder para achar, era preciso ler as entrelinhas, sinais e códigos, era preciso escutar atentamente, tempos em que talvez tudo fosse revestido de um romantismo cru, tristonho, meio sádico, um tanto masoquista, incerto e perdido em suas nuances de vida que se perdiam entre desejos que talvez nunca fossem concretizados ou, quando eram, sempre escuros, escusos, escondidos com medo de dizer seu nome.

E aí, o primeiro homem que amei de verdade e apresentou THE STONEWALL CELEBRATION CONCERT do Russo e deixou o cd comigo porque naquela época não tinha streaming a gente precisava comprar mesmo o disco e eu me apaixonei de tal forma que não sei como o cd ainda toca hoje em dia de tanto que o escutei e ainda estuco ocasionalmente.

Tanto que ele chegou ao ponto de comprar outro para ele e deixou o que era seu comigo de tanto que me apaguei ao disco, todas as músicas pareciam feitas para mim e para ele e embalaram muitos momentos nossos, bons e não tão bons, e embalaram minhas fossas quando nos separávamos e embalavam o som do carro quando o levava para sua casa dirigindo enquanto sua cabeça suave de leve descansava em meu colo entre minha mão e a troca de marchas, seu sono leve rompido apenas ao chegarmos em sua porta e eu despertá-lo para beijar e dizer até mais.

Aquele cd tinha um cheiro específico que ainda hoje está lá, mais fraco, diluído pelo tempo mas presente, basta respirar um pouco mais fundo com o nariz bem próximo que ele vem, forte e doce como se fosse algo saído do forno do ontem fresco. Dizem que o olfato é um de nossos maiores gatilhos de memórias e é mesmo, mesmo quando o cheiro não está lá podemos facilmente evocar sua presença e quem nunca se pegou estático em algum lugar ao ter as narinas assaltadas por um aroma que resgatou memórias?

Aquele cd era um pedaço de pele, de corpo, uma extensão do outro, era não, é porque ele ainda está aqui comigo e, de tempos em tempos, passo os dedos por ele como a refazer o caminho de minhas mãos num corpo que não é mais, foi-se para o eterno e etéreo ser de outras dimensões e aromas. Ainda há uma textura no disco que remete a um drive de computador onde ele tocava, um cheiro de nicotina preso entre as faixas, um bolor que impregnava sua casa e que misturado ao seu perfume eram uma identidade nossa que fazia de nós um casal quase improvável.

Aquele cd tinha um gosto, um paladar de risos e lágrimas, de sons esquecidos, de notas tocadas a esmo num amor que não sabia ser e de memórias que foram construídas por dois e hoje revividas apenas por um que ficou para atestar a veracidade desses fatos e as canções ainda soam tão reais e nossas quanto possível, elas não ficaram velhas, não estão datadas, ao menos não para mim porque eu posso ter envelhecido mas minhas memórias não então, aquele cd segue com minha juventude intacta, um pedaço de mim que traz uma história que talvez eu jamais esqueça.

Aquele cd tem uma parte de mim para sempre, quando eu me for e ele ficar, alguém irá tocá-lo e um pouco de mim, dele e de nós reviverá assim como acontece cada vez que eu o ponho para tocar...

30 de nov. de 2021

respect the office

Creio que todos tenham visto isso aqui.

Sentimentos dúbios, confesso.

Por um lado, eu mesmo tenho vontade de falar isso na cara desse sujeito e não preciso listar as razões aqui afinal, nunca um mandatário foi tão inepto, desrespeitado, odiado e nos fez passar tanta vergonha aqui e mundo afora. Bolsonaro entrará para a história (menos para seu gado) como o 'estadista' mais vexatório da história nacional recente, tomara que tenhamos aprendido a lição mas, acho que ainda não vimos seu final, ele será aquele fantasma de natais passados que vem sempre para nos lembrar dos horrores que tivemos.

Por outro lado, é triste vermos que por sua causa passamos a desrespeitar a presidência como instituição democrática incapazes de desassociar esta da pessoa que a ocupa, uma é fixa e estará lá até se sabe quando, o outro é temporário mas, o estrago causado é tanto que associamos a presidência com seu ocupante e assim, desrespeitar, xingar e ofender são encarados como normais, não estamos ofendendo a presidência ou a democracia mas o indivíduo mas, não é bem assim.

Ao ofender o homem que ocupa o cargo estamos sim ofendendo a instituição, esta é mais uma herança do Bolsonarismo, perdemos o respeito pelas instituições e fomos roubados do orgulho de nosso país, basta ver alguém defendendo a presidência como instituição e vestido com as cores nacionais para termos engulhos e isso é péssimo!

Explico.

Quando pegamos ranço como pegamos das instituições pátrias, seus símbolos e afins estamos abrindo mão de nossa identidade como nação, se não reconhecemos mais essas instituições como nossas então elas não nos pertencem mais mas sim a qualquer um que as tome de assalto, se não reconhecemos que elas são nossas e que apenas por um período de tempo elas estão sob controle de quem não comunga de nossas ideias e visões de mundo e sociedade, estamos deixando de lado nossa posse e abrindo espaço para que sejam destruídas.

O projeto Bolsonarista não é de resgate dos valores familiares ou pátrios mas da destruição de tudo isso para implantar um regime de terra arrasada no melhor estilo não vamos deixar nada para vocês quando sairmos e nós compramos a ideia e estamos jogando jogo muito bem então, quando xingamos Bolsonaro, por mais que estejamos nos referindo a pessoa, estamos cuspindo na instituição e removendo dela o respeito e valor que deveria ter mesmo porque, se não tivermos isso então de valem elas? Melhor abolir tudo e criar um estado absolutista e nem precisamos trocar de mandatário, podemos ficar com esse que aí está.

Frequentemente eu me pego pensando no que faria se, por acaso, desse de cara com Bolsonaro e, na grande maioria das vezes penso que minha vontade seria estapeá-lo, cuspir ou xingar mas então, penso no que isso me ajudaria e se não estaria agredindo gratuitamente o Brasil e, a bem da verdade, você meio que merece não é, Brasil? Não sei mas eu penso que se essa situação chegasse eu sinceramente o trataria com o respeito que a presidência merece e não ele enquanto pessoa pois ele não merece de mim nada a não ser desprezo.

Pode ser uma opinião errada, contestável mas penso que faria um esforço para tratá-lo como instituição e não como pessoa, acho que enquanto não soubermos distinguir bem um do outro estaremos fadados a tentar eleger o próximo mito....


29 de nov. de 2021

guerra santa

Dias atrás, escrevi sobre liberdade de expressão e a diferença entre isso e o discurso de ódio.

Obviamente, se você é Bolsonarista e conservador, dificilmente saberá a diferença entre um e outro e também se você é radical de esquerda porque o discernimento de ambos não escolhoe espectro político e é uma linha muito tênue entre um lado e outro, qualquer excesso é nocivo e descamba facilmente para o ódio se não for bem moderado e certo nas ideias e meios de expressá-las.

Precisamos tomar muito, mas muito cuidado com a cultura do cancelamento e polícia de ideias pois, como disse acima, basta um pequeno empurrão para perdermos a mão e passarmos a ser exatamente o que condenamos nos outros. Estamos tão radicalizados e isolados em nossas posições que ao menor sinal de discordância soamos os alarmes do cancelamento e execramos os outros por pensar de forma distinta sem tentarmos ao menos entender porque pensam de forma diferente de nós ou se suas ideias valem o argumento e debate, vivemos o clima de eles contra nós e disso, nada bom pode advir.

Obviamente que isso não justifica de forma alguma expressões que incitem o ódio, preconceito ou ataques a qualquer minoria ou recorte da sociedade, quando personalidades de qualquer mídia, esporte ou afins manifestam opiniões que incitam a discriminação, ódio e preconceito devem ser punidas dentro da lei e, quem sabe, aprender com seu erro ou, como é mais de costume, buscar refúgio sob as asas do conservadorismo que dia e noite reclama e esperneia que vivemos em constante patrulha ideológica e censura.

Pensemos, não há qualquer problema em um conservador expressar e defender suas ideias, ele tem esse direito, se é a crença dele, sua visão de mundo e como ele entende que a sociedade deve se organizar ele tem direito a isso por mais que suas opiniões não nos agradem e, antes que pensem que estou defendendo os conservadores, pé no freio! Estou apenas defendendo o direito de todos nós podermos nos expressar de forma livre, quando podamos a ideia do outro e impomos a nossa visão como correta não estamos agindo de forma melhor do que o mais ferrenho dos conservadores, estamos agindo igual, não há avanço possível quando nos colocamos em cantos extremos fechados e  nos recusamos a ouvir uns aos outros, isso cria um mundo de visões únicas e fadado ao marasmo a extinção.

Volto a dizer que ideias e expressões que incitem ódio e preconceito jamais devem ser toleradas, é tolerando esse tipo de coisa que abrimos espaço para sua normalização e expansão mas banir todo e qualquer pensamento diferente nos faz apenas ser tão fascistas quanto o outro que assim chamamos. Desaprendemos, eu incluso, a arte de dialogar, de debater, não sabemos mais escutar e ao menos tentar a visão de mundo uns dos outros, estamos fechados em nós mesmos e acusando uns aos outros de tentarem destruir o mundo sendo ele é um só para todos nós e, a bem da verdade, já éramos assim mas, fazíamos de conta que não, se há algo de bom que o atual governo fez foi remover de todos nós as máscaras que usávamos e deixar claro como cada um de nós pensa e, pior, como nos odiamos por sermos e pensarmos diferente uns dos outros.

A herança do Bolsonarismo é termos feridas que talvez jamais cicatrizarão, rompimentos que jamais terão reconciliação, separações que jamais terão volta e tudo isso porque descobrimos quem somos de verdade e como nossas diferenças são irreconciliáveis o que é uma tragédia sem precedentes pois Bolsonaro e seu grupo passarão enquanto nós ficaremos aqui lambendo nossas feridas para todo sempre.

Lamento muito quando vejo a todos nós procurando o próximo cancelamento, estamos vivendo uma nova inquisição e reforço, é bom que não mais nos calemos ante as injustiças e comentários depreciativos, esse tipo de comportamento não cabe mais em nossa sociedade e mundo e os opressores estão reclamando porque é difícil para eles aceitarem que não somos mais piadas e que não vamos mais aceitar tudo sem revidar mas, se não tomarmos cuidado como disse mais acima, acabaremos em mundo tão fechado e irreal que nada mais fará sentido, viveremos uma utopia que será maravilhosa dentro de nosso universo mas distante da realidade e a realidade é mutante e não poder única ou cobrará de todos nós um preço mortal.

Quando não sobrar mais ninguém para cancelar o que faremos? Vamos estar felizes e num paraíso e começaremos a cancelar uns aos outros até não sobrar ninguém mais? Quem vai apagar a última fogueira?

25 de nov. de 2021

é nem

 


Lendo isto aqui, fica muito claro qual a real intenção do Estado Bolsonaro e seus capachos.

Um ENEM com a cara do governo.

E qual a cara do Governo Bolsonaro? Fácil!

A cara do Governo Bolsonaro é destruir toda e qualquer possibilidade de pensamento crítico do meio acadêmico e estudantil pois não se pode controlar quem pensa, quem tem ideias e ideologia, quem sabe argumentar e questionar, um geração sem estudo e sem capacidade crítica está fadada a ser gado renovado.

A batalha ideológica que se iniciou em 2018/19 segue forte e em 2022 será guerra pois o gado bolsonarista vai pegar pesado e virá com sangue nos olhos para banir o comunismo e as ideologias de esquerda que ameaçam a família transtornada brasileira então, ainda que o 'Ministro da Educação' afirme peremptoriamente que não houve interferência no ENEM 2021 a reportagem deixa claro que as represálias sim ocorrerão e que houve, em maior ou menor grau, um direcionamento para evitar temas pouco afetos ao governo.

A lógica Bolsonarista é criar um universo paralelo onde a história só é válida se contada por ele e seus seguidores e tudo que for contrário a isso mesmo que fato comprovado e irrefutável está sujeito a revisão e ajustes no melhor estilo 1984. Quando você reescreve o passado, faz o presente e ajusta o amanhã, a mentira vira verdade e a verdade inexiste pois está mudando a todo instante e só é ratificada quando vem da fonte autorizada, tudo que vier de fora é invenção, ideologia e propaganda vide Alemanha por volta de 1939.

Desmontar o ENEM é parte do jogo Bolsonarista para destruir a única arma viável contra o fascismo, a educação! Quando temos uma educação forte e que fomenta o debate de ideias e o escrutínio da história, o argumentar, o dialogar e o contestar sempre pois não existem verdades absolutas, as chances de um mito-messias chegar onde chegou é baixa pois as pessoas não se deixam iludir por sua falácia e populismo.

O oposto disso é o que está acontecendo desde 2019 aqui com o aparelhamento do Estado ideológico conservador banindo tudo que fomenta o debate e ideias pois o fascismo não consegue ir para frente em ambientes onde isso existe. A praga conservadora assola nosso país e os estragos que estão fazendo levaremos décadas para corrigir se é que conseguiremos pois a tragédia é tamanha que não nos demos conta ainda do seu tamanho.

O ENEM que deveria ser a porta de entrada para a universidade segue extremamente importante mas precisamos vigiar para que siga promovendo questões que tragam o debate social e o questionamento ou será apenas um teatro de marionetes de um Estado totalitário que se faz de patriota e essa é a pior herança do Bolsonarismo, ter roubado de nós o orgulho de nosso país....

24 de nov. de 2021

consciência de quem

 


Sábado passado foi Dia da Consciência Negra.

Não postei nada, nenhuma foto engajada, nenhum comentário motivacional nem nada pelo simples fato de que entendi não ser apropriado enquanto pessoa branca, pensei que seria oportunista e não cabia fazer qualquer tipo de ativismo sazonal sendo que eu não sou um ativista da causa, soaria falso ou até sem sentido ainda que eu combata, da maneira que consigo, todo e qualquer tipo de preconceito.

Há um sentimento de culpa e remorso nisso, talvez eu pudesse fazer mais, atuar mais, combater mais e confesso que do alto do meu privilégio branco isso acaba se tornando um tipo de ação panfletária que eu não sei como conduzir ainda que saiba ser importante ou mesmo algum tipo de displicência já que sequer posso imaginar o quer é sofrer e passar por esse tipo de crime totalmente fora de minha realidade e esse é o perigo, quando nos indignamos com os crimes mas de forma 'social', expressando e condenando veementemente mas voltando à nossa realidade tranquila no momento seguinte.

Então, preferi o silêncio pois as vozes que precisamos ouvir falaram tudo que era preciso e acho que a nós cabe apenas escutar e dar espaço, usar dos privilégios que temos para fazer caminho a quem precisa cruzá-lo e calar porque não há como qualquer palavra nossa expressar uma luta que não entendemos porque nunca nos afligiu.

Isso não quer dizer calar ante as expressões e atos racistas, jamais, é calar para que as vozes que precisam falar sejam ouvidas e não calar quando testemunhamos qualquer crime desses, a conivência é meio caminho andado para o crime, suja nossas mãos tanto quanto as de quem perpetra o crime em si.

Eu já fui um 'racista' normativo, piadinhas e termos e tudo mais, quem de nós não foi? Aprendi, mudei, amadureci e hoje sei bem que esse tipo de comportamento não tem mais espaço no mundo em que vivemos e estou sempre aberto e disposto a aprender mais para que o outro sinta que eu respeito sua vida e existência e trajetória.

Há quem diga que isso é conversa de comunista, vitimismo, massa de manobra, em tempos tão radicalizados e de extremos, a ideologia que precisamos é combatida com força pelas pessoas que enxergam nela uma ameaça ao status quo, todos esse que apoiam o mito e entendem que esse papo de minorias, racismos, homofobia e afins é coisa para nos dividir ainda mais e que não é assim que vamos resolver esses problemas mas tendo uma visão e atitudes mais igualitárias e não combativas ou afirmativas a respeito deles.

Lamentavelmente isso não é verdade, os capachos da direita e algumas parcelas dos movimentos de luta que compactuam com essa ideologia torta seguem pregando essa cartilha mas ela é furada e falha.

Como não falar de igualdade e luta por direitos, de racismos e outros preconceitos numa sociedade que ainda não aboliu a escravidão ou os preconceitos? Que segue cortando oportunidades a quem não vai de encontro a norma? Somos o país que mais mata pessoas negras, pobres, LGBTQIA+ e outros, os casos de racismos brotam nas redes sociais, reflexo de um governo que escancarou o Brasil de fato, racista, conservador, machista, misógino, LGBTQfóbico, esse é o país de verdade!

Então é preciso sim termos um dia para cada preconceito ser combatido, um dia para cada consciência porque do outro lado não existe consciência, existe apenas indecência e a noção de que todos nós deste lado deveríamos ficar calados e aceitar as migalhas que conquistamos através do sangue de muitos.

Falar que não precisamos disso e que esse tipo de atitude e comportamento só faz aumentar as diferenças entre nós é uma falácia conservadora, uma aberração sem tamanho porque não condiz com os fatos, com a realidade dura e com as mortes e humilhações que todos os dias saem nos jornais isso sem contar as que nem ficamos sabendo.

Quando a sociedade se nega a ouvir essas vozes ou deseja calá-las porque fazem muito barulho é sinal de que estamos no caminho certo...



23 de nov. de 2021

para quem precisa?

  



Creio que todos tenham visto esse caso aqui.

Antes, deixo claro que não estou absolutamente defendendo qualquer comportamento violento ou abusivo da autoridade policial mas apenas encarando a profissão de PM como qualquer outra com seus problemas e dificuldades ante uma conjuntura social complexa e insana que acaba cobrando de todos nós um preço alto demais e inserida num Estado que valoriza acima de tudo a violência, a necrosociedade e a regra de que bandido bom, é bandido morto sendo que a definição de quem é ou não bandido fica critério deles.

Igualmente, não posso compactuar e justificar sob um aspecto humanitário e social a violência extrema que vivemos principalmente nos grandes centros, creio que todos estamos fartos de ler e ver notícias sobre sequestros, gangues, latrocínios e tudo mais, tudo desembocando numa sensação de frustração e impotência que permite ao Estado e a nós mesmos aplicar a lei do cada um por si e aí, meus caros, não há mais esperança de salvar quem quer que seja.

Por mais que nos sintamos indignados e com raiva, se deixarmos esses sentimentos nos dominaram perderemos o foco da raiz do problema, estaremos sempre atacando o sintoma e não a doença e a causa dela não é apenas a polícia mas todos nós que vivemos em sociedade.

A relação que temos com a polícia é uma relação de amor e ódio, precisamos dela e ao mesmo tempo a execramos, elogiamos quando nos atende bem e ofendemos quando age mal, detestamos precisar dela mas tememos não tê-la por perto e esse tipo de sentimento e comportamento paradoxal vai de um extremo a outro conforme a classe social em que vivemos, brancos classe média tem um tipo de visão e sentimento, brancos classe alta outro e pobres, negros e periféricos outra totalmente diferente e, a grosso modo, seria respectivamente algo assim: os primeiros querem proteção e segurança mas acham que ela exagera e que o problema é estrutural discutindo do alto de seu chão de taco e MPB descolada, os segundos acham que a PM é tipo o novo capitão do mato, feitor, tem de manter os pobres e demais longe e sob controle, sua milícia pessoal sempre disponível a um telefonema para algum deputado ou governante e os últimos, só sabem que ao ver uma viatura existe uma chance grande de serem presos, agredidos, humilhados ou mortos.

Essa relação complicada é herança da ditadura, as polícias eram braços da ditadura e, depois da abertura, seguiram impregnadas dos refugos do regime que, se não estão mais aí, deixaram as corporações abastecidas de suas ideias e comportamento que parecem ter sido inscritos em pedra sagrada quando não tem uma relação espúria com o crime e tornando-se algo ainda pior e mais perigoso, as milícias que estão devorando sem medo o RJ e começando a estender seus dedos para outros estados.

Mas não é só isso, uma profissão como PM é um trabalho ingrato além de extremamente perigoso, todos nós quando saímos de casa para trabalhar ou seja o que for, temos uma chance de não voltar vivos afinal, a vida é uma sacola plástica jogada ao vento mas, um policial tem essa chance aumentada de forma exponencial e isso para ganhar um salário que mal paga as contas do mês. Como pedir que essa pessoa entregue sua vida diariamente se ela mal consegue sobreviver dignamente? Da mesa forma que os professores são pouco valorizados e deles se espera muito, fazemos o mesmo com a polícia sendo que eles esperamos que morram para manter a lei e a ordem mesmo quando a lei e ordem parecem algo meio sem sentido.

Temos um perigo alto aqui não apenas por demandarmos que pessoas mal preparadas e mal pagas saiam armadas pelas ruas para zelar pela segurança pública mas por entendermos que seus excessos e truculência são justificados numa sociedade que só entende a linguagem da porrada, o malandro é sempre o outro e ele precisa ser detido e colocado atrás das grades mas, as mensagens que enviamos aos agentes da lei são dúbias, mate mas seja humano, bata mas seja doce, afaste o perigo mas o abrace, seja humano mas agressivo, zele por mim mas não espere que eu zele por você e, se você exagerar ou ultrapassar algum limite, eu vou te condenar mas lá no fundo eu te entendo e apoio, como fazer uma relação dessas funcionar?

Nossa relação com uma corporação que deveria atuar como ajudante de manutenção de algum tipo de tecido social é tóxica, tomamos as partes pelo todo e enxergamos na polícia algo a temer e crucificar porque são bestas fardados que o Estado usa para manter a ordem enquanto outros exaltam que a mesma polícia anda matando pouco e deveria mais é sentar o pau em vagabundo então, como essas pessoas devem se comportar se não está claro o que se espera delas? Sem contar que, socialmente, elas estão lutando para viver de forma digna, não tem estrutura física ou emocional para lidar com trabalho de altos níveis de estresse, tem a sociedade e lhe cobrar coisas distintas, não pode ser feliz em seu trabalho e tem de lidar com o medo da morte, que a todos nós parece algo distante, de forma muito próxima e quase certa?

Esse comportamento do PM da matéria acima não é então surpresa, é sim o normal, o esperado de uma pessoa que não tem claro seu papel na sociedade, não sabe ao certo como desempenhá-lo para contento de todos, não recebe o suficiente para isso, não tem preparo ou amparo para isso e acaba apenas reproduzindo o comportamento que essa mesma sociedade espera que ele tenha apenas para, em seguida, ser condenado por ter apenas correspondido ao que se esperava dele.

Antes de condenar a PM como um tipo de mal maior, deveríamos apontar nossos dedos para a sociedade e seus grupos que perpetuam os mesmos vícios e privilégios há séculos, se a PM é um monstro foi essa sociedade que os criou e alimentou, eles não surgiram do nada e se há truculência, violência, exageros e abusos não é por que eles são sádicos dementes, podem até ser alguns deles que são apenas humanos mas eles refletem apenas o comportamento dessa sociedade que os fomentou a agirem a assim.

18 de nov. de 2021

a liberdade de (ex)pressão

 



Somos livres ou quase ou nem tanto ou talvez ou não ou apenas um pouco, medir a liberdade é algo confuso, complexo e muito subjetivo, ser livre é uma ideia e ideias são construídas diariamente e não fixas e imutáveis e perpétuas porque se forem morrem, toda ideia arraigada num momento do espaço/tempo está fadada a desaparecer, precisamos ser ventiladas e adubadas e atualizadas ou viram verdades universais e, ainda que algumas delas assim sejam, fechar a possibilidade de progresso e mudança de ideias é dar tiro no peito da evolução humana.

Todos somos livres a nossa maneira, dizer que somos mais ou menos livres do que outros é errado porque a liberdade de um pode ser suficiente enquanto para outro pode ser pouco, liberdade pode ser apenas escolha ou determinação, pode ser ir e vir ou ficar onde se está, pode ser falar e calar e dizer e sentir e viver e amar, pode ser muito ou nada e pode ser tudo ou nada e pode ser quase ou nunca mas, ela é e existe e precisamos dela para seguir vivendo.

O problema da liberdade é que ela não é irrestrita ou sem fronteiras ou sem limites mesmo que você pense que as quatro paredes de se celular assim o digam, não, ela não é, essa sensação de livre e solto existe ali apenas porque você está confinado num ambiente que lhe proporciona 'segurança' e sentimento de pertencimento e não precisa expor sua voz e face e ideias publicamente no sentido físico e carnal da palavra, na internet somos anônimos conhecidos e na vida aqui somos conhecido anônimos.

Mas, acima de qualquer ideia ou conceito ou teoria ou imaginação, ser livre é ter liberdade para poder falar e pensar e dizer e expressar suas ideias e opiniões sem medo de represálias, censura, cancelamento, banimento, linchamento, ofensa ou qualquer ação, atitude ou ato que cerceie esse princípio mas, não sabemos mais onde começa a liberdade de expressão e começa o aprisionamento de ideias e existe uma diferença muito sútil entre eles que pende para um ou outro lado conforme convém a quem puxa a corda.

É óbvio que a liberdade de expressão não deve ser usada para disseminar notícias falsas, discursos de ódio, preconceito, racismo ou qualquer outra coisa que ponha em risco ou ofenda e ajude a humilhar qualquer um de nós seja por nosso orientação sexual, identidade de gênero, raça, estrato social ou seja o que for porque hoje, tudo que é diferente e que nos faz sermos únicos enquanto humanos pode ser motivo de exclusão.

Quando usamos do manto da liberdade de expressão para justificar ideias estapafúrdias, negacionismos ou a criação de uma realidade na qual apenas alguns de nós acreditam veemente e cegamente, estamos corrompendo a essência desse princípio em prol de uma narrativa distorcida e irreal que presta serviço a regimes totalitários, absolutistas e que temem a liberdade de expressão quando não ela não vai de encontro a expressão de liberdade entendida por quem detém o poder e, via de regra, ao serem confrontados com seus discurso torto e arbitrário, tais pessoas vestem o manto da liberdade de expressão e caem aos prantos dizendo que são perseguidas e que não podem, de forma livre, expressar sua opinião contrária, patrulha ideológica, esquerdopatia, comunismo e jamais será vermelha.

Liberdade de expressão é poder discordar do outro embasado em pensamentos e argumentos lógicos e dialogados, é discutir sua visão de mundo e opinião sem que seja preciso enterrar a opinião alheia sob uma pá de cal. É não pregar a mentira como se fosse verdade e não tomar a verdade por sempre mentira e metralhar quem expõe os fatos pois eles não são reais dentro de sua concepção de mundo, é compreensível que pensemos de formas diferentes, se todos pensássemos igual, o mundo seria um daqueles memes onde todos estão felizes e dando de comer a animais selvagens nas mãos, mansos e sorrindo num por de sol idílico.

E o que digo acima vale para todos e não apenas para quem se acha do lado certo da história ainda que, hoje em dia, seja fácil saber quem está do lado errado pois não há como não saber qual lado é o errado vide a barbárie e cascata de factóides que recebemos todos os dias. Quando promovemos a cultura do cancelamento, do banimento, da censura seja por qual motivo for, por mais justificado que possa ser, estamos agindo de forma idêntica a quem está do outro lado, obviamente que não há mais como aceitar certos tipos de ações, comentários e expressões de preconceito, passamos desse tempo em que aceitávamos rindo amarelo as piadas e ofensas mas, se não tomarmos cuidado, acabaremos vivendo numa bolha sem brilho e sem cor junto com nossos detratores pois, como disse, é uma fronteira desenhada a lápis entre um extremo e outro.

Não podemos banir ideias (ideias e não preconceitos ou outras manifestações afins) porque elas simplesmente não encaixam com a visão de mundo atual, precisamos debater, discutir, entender e então decidir se essas ideias merecem atenção ou devem ser descartadas pois não trarão nada de construtivo para nossas vidas. Ao simplesmente cancelarmos e banirmos tudo que nos parece errado sem tentar ao menos entender de onde saiu a ideia e o que a motivou estamos matando o livre pensar e fechando a nós mesmos num mundo incolor e sem vida, onde todos pensamos igual e estaremos fadados ao marasmo eterno.

Volto a dizer que isso não é abertura para o ódio ou justificativa para expressões do horrendo em nós mas um pedido para que sejamos mais flexíveis em ouvirmos uns aos outros, debater nossas ideias e posturas diferentes e sair disso com visões de mundo que sejam benéficas a todos e, se não for possível, que sejamos capazes de conviver com nossas diferenças respeitando que são elas que nos tornam especiais.

Ao banirmos o diferente estamos matando o que nos faz humanos e pensantes, nossa espécie não chegou onde está (ainda que aos trancos e barrancos) matando ideias mesmo que tenhamos tentado arduamente por toda a nossa história. Chegamos aqui justamente por termos debatido, discutido, confrontado, questionado, dialogado e estarmos abertos, mesmo que contra nossa vontade, a ideias e pensamentos novos.

Perdemos a arte do debate e diálogos sadios, melhor banir e ofender e bloquear e banir do que tentar entender o outro, porque ele pensa daquela forma e como e se podemos fazê-lo mudar de ideia ou chegar ao um meio termo, estamos cada um de nós cravados em nossos extremos e não queremos arredar o pé pois temos a certeza de que estamos certos e do outro lado idem e assim seguimos cada vez mais isolados e distantes e sempre achando que o problema é o outro não nós mesmos.

Liberdade de expressão é poder expressar sem pressa e sem pressão o que você pensa, sem medo de represálias, sem medo de escolher palavras, sem medo de ter ideias e, muito importante, de forma consciente e madura para os questionamentos, julgamentos e opiniões contrárias e, porque não dizer, consequências de nosso pensar.

Ao minar essa responsabilidade mental estamos matando lentamente o que mais precioso temos como humanos.









17 de nov. de 2021

heróis por um ou mais dias...

 


A jornada do herói já rendeu as melhores histórias escritas, orais e visuais já contadas.

É uma fórmula simples contada desde que aprendemos a arte de contar histórias para registrar nossas vidas e também emprestar a elas algum tipo de magia e graça, remodelada e revisitada desde sempre para ajustar os tempos onde se insere mas que, no fundo, consite dos passos básicos do monomito que dialogam com todos independente de cultura, sociedade, idioma ou distância, inconsciente coletivo e genético, com pequenas variações a mesma história pode contada nos grandes centros como nos mais afastados locais onde o homem pode chegar.

Estamos perdidos numa espécie de monomito pessoal desde que nos inserimos no mundo digital cheio de telas e cliques e likes e fotos com filtro, deturpamos a jornada do herói quando passamos a contar tal epopeia com vídeos de menos de um minuto e fotos com filtros, construímos uma realidade adaptada porque a jornada no mundo real já não atende, em seus doze passos, nossos sonhos, criamos uma jornada do herói digital onde os passos são encurtados e acelerados para chegarmos ao final apoteótico e revelador de forma instantânea.

Sim, este post dialoga com o de ontem.

Vejamos como alteramos um mito clássico para um mito midiático moderno:

Mundo Comum - O mundo normal do herói antes de sua jornada ou seja, nosso mundo antes de entrarmos de cabeça, tronco e membros no mundo digital.

O Chamado da Aventura - O herói recebe um um desafio ou aventura e pode recusar ou demorar a aceitar o desafio ou aventura, geralmente porque tem medo ou seja, entramos no on-line e achamos que não irá nos consumir e que saberemos lidar com ele com coerência e responsabilidade e maturidade e sabedoria afinal, somos senhores de nós mesmos, certo?

Encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural - O herói encontra um mentor que o faz aceitar o chamado e o informa e treina para sua aventura, pode ser qualquer influencer ou youtuber ou produtor de conteúdo que, saindo do nada torna-se referência para uma enxurrada de outros tantos.

Cruzamento do Primeiro Portal - O herói abandona o mundo comum para entrar no mundo especial ou mágico, sua vida digital começa a decolar e você tem seguidores e interage com eles e todos curtem o que você posta e compartilham e repassam e visualizam e viraliza.

Provações, aliados e inimigos - O herói enfrenta testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma que aprende as regras do mundo especial ou seja, aquela postagem infeliz ou vídeo desnecessário ou comentário fora de contexto ou memória digital de um passado que você não conseguiu apagar porque a internet não esquece jamais.

Aproximação - O herói tem êxito (ou não) durante as provações, pode haver redenção, cancelamento, banimento, expulsão ou até coisa pior.

Provação difícil ou traumática - A maior crise da aventura, de vida ou morte, aquela postagem, comentário, vídeo ou filmagem que expõe seu lado menos correto, aquele celular que gravou sua conversa, aquela piada condenável, aquele apoio indevido, aquela onda de linchamento e cancelamento virtual e real.

Recompensa - O herói enfrentou a morte, se sobrepõe ao seu medo e agora ganha uma recompensa, faz um mea culpa, grava vídeo de desculpas, faz ação de caridade, apoia uma ong, dá entrevista a canais para reparação, reconhece que está aprendendo e em desconstrução.

O Caminho de Volta - O herói deve voltar para o mundo comum ou seja enfrentar que o mundo virtual pega pesado com o mundo real.

Ressurreição do Herói - Outro teste no qual o herói enfrenta a morte, e deve usar tudo que foi aprendido, tudo bem, recaídas acontecem mas dependendo do caso não tem como voltar um tweet ou foto.

Regresso com o Elixir - O herói volta para casa com o elixir e o usa para ajudar todos no mundo comum, a redenção rara em código binário, voltam os likes e apoio, defensores entendem que você errou e que a internet é assim mesmo, todos se escondem atrás de um discurso de ódio mas muitos ainda não querem ver você nem pintado de Google.

A internet fez de todos nós mitos, heróis por um ou mais dias....

16 de nov. de 2021

harder. better. faster.

 



Ser gay pode ser maravilhoso na maioria da vezes (e realmente é), desfrutamos de uma liberdade ímpar quando comparados aos padrões normativos de relacionamentos sexuais e afetivos e possuímos uma visão de mundo única que nos permite lidar com as adversidades de uma forma, digamos, menos pesada do que a maioria das pessoas o que, se não é uma regra, é uma grande vantagem.

Somos livres (quase todos ao menos) dos ditames de moral e costumes que corroem a sociedade normativa até a medula e estamos sim remodelando como amar, transar, viver e conviver, é um movimento sem volta mesmo porque, ainda que ao nosso redor existam aqueles que desejam andar para trás ou nem mesmo andar, a evolução só tem uma direção e é para frente então, não adianta reclamar, melhor aceitar o novo porque ele sempre vem e o velho deve ser guardado feito doce memória onde esse novo nasceu.

Sinto orgulho de fazer parte de um tempo em que tantas coisas estão em cheque, questionadas, revistas, remodeladas, reposicionadas, atualizadas para refletir um hoje que não cabe mais em regras tão mortas e, modéstia parte, acho que consigo acompanhar até razoavelmente a velocidade de mudança, já fui um pensamento antigo e modelado pelos padrões em que fui criado assim como boa parte de nós o foi, não há culpa a ser atribuída ou dedo a ser apontado porque somos, além de criações de nós mesmos, produtos do meio no qual estamos inseridos então, se você consegue manter-se atualizado isso é uma vantagem imensa e não digo isso como algum tipo de febre incansável de busca pelo novo que o tempo vai construindo em nós conforme vamos saindo da curva mas como uma necessidade de manter-se dentro do mundo e não fechado em nossos mundos que é receita certa para morrer lentamente.

Mas, ao mesmo tempo, sinto que na comunidade gay (ao menos na masculina) esses ares de progresso parecem ter estacionado décadas atrás.

Explico.

Nós gays homens cis sempre batemos no peito e falamos que a liberdade sexual era a maior conquista, poder transar sem culpa, sem medo (até onde as DSTs permitem), sem neuras e sem ter de fazer análise depois deveria ser a grande herança dos homens gays mas, acaba sendo sua maior prisão e não digo isso de forma moralista ou para cancelar o sexo casual que nós, gays, conseguimos a um clique de distância.

Ao quebrarmos essas regras de acasalamento e remover a procriação deixando o prazer do gozo por ele conquistamos uma liberdade extrema que nos livrou do jugo social imposto pela cultura e religião, excomungados felizes que somos mas adentramos num purgatório cheio de divisões e subdivisões e códigos que nos fizeram perder a essência de sermos criaturas do gozo, do prazer e, porque não dizer, hedonistas.

Essa liberdade que tanto gritamos aos ventos se esvai quando os aplicativos de sexo possuem perfis tão complexos e excludentes que mais parecem bulas de medicação tarja preta, há tantas exceções e normas que uma coisa simples como o sexo torna-se trabalho de conclusão de curso, caso de estudo e o sexo casual vira sexo programado e regrado, se não encaixar nas regras não ocorrerá e não apenas neles mas na famosa noite gay esses mesmos comportamentos seguem existindo mesmo depois de tana luta e suor e lágrimas para conquistarmos a liberdade sexual.

São regras de vestir, olhar, comportar, falar, beber e gestual que implicam numa recusa imediata do outro, dá-se block visual pois se entende que aquele perfil não atende aos requisitos ou então, banimos o outro depois de procurar seu eu on-line e ver se realmente condiz com a realidade ou seja, o eu de carne e osso sempre perderá porque o eu digital é um padrão inatingível, perfeito e imaculado, não há carne, pau ou gozo que possa se comparar.

É triste ver que mesmo de depois de tanto tempo e tanta porrada seguimos numa cultura segregacionista, digitalizada para identificar padrões e descartar o não se encaixa neles ou não atende a um mínimo de requisitos que não se sabe de onde vieram ou quem os determinou. A vida e o sexo são coisas reais, não precisamos de regras para eles, deveria bastar apenas um papo, um olhar ou química para fazer acontecer e não likes, fotos, filtros e considerações sobre aparência.

Falamos muito sobre a 'uberização' de nossa sociedade, a era do delivery e estamos realmente nela principalmente com os aplicativos de sexo e baladas dedicadas ao sexo casual e, veja bem, não quero pagar de moralista, acho válido e excelente que possamos ter todos os meios possíveis de encontrar alguém para sexo seja on-line ou em clubes de sexo, longe de mim querer impor regras para isso porque a maior liberdade que existe é poder gozar sem culpa e sem medo, apenas pelo prazer em si mas, o casual não precisa ser impessoal, descartável, somos todos humanos e temos sentimentos e necessidade de troca com outros para além de fluídos corporais.

Quando descartamos o outro apenas por não estar no perfil, porque a noite é jovem e você ainda pode conseguir algo melhor (aí no final dela bate a neura e você acaba ficando com qualquer um só para não ir embora no zero a zero), esse desuso do outro é um desuso de nós mesmos, estamos esvaziando o que há de melhor em nós e levando junto o que há de melhor no outro via tela de celular e corredores escuros de bares e clubes, não há nada ruim nisso como eu disse mas, essa troca pode ser bem mais gratificante do que alguns minutos e depois nunca mais.

Há um medo do permanente, o descartável é melhor porque não implica em laços ou responsabilidades e sempre existe o próximos perfil, essa cultura de figurinha repetida não fecha álbum deixa a todos nós como álbuns incompletos, estamos cultivando vazios e ficando cada vez mais arredios e imediatistas, precisamos do agora e do próximos, não queremos um agora prolongado porque ele demanda atenção e mais de 140 caracteres e ninguém quer ter tempo para isso, precisamos apenas do rápido porque ele atende a urgência que criamos para nós mesmos, estamos indo cada vez mais rápido e, nesse ritmo, chegaremos ao final antes do tempo, casados, exaustos, com a impressão de que vivemos muito e bem quando na verdade vivemos pouco e mal.... 

19 de ago. de 2021

pequenos contos de isolamento

Quando acabou a quarentena. Não sabia se era exclamação, interrogação, vírgula, ponto e vírgula, reticências ou ponto final.


Quando acabou a quarentena, sai correndo nu pelas ruas e fui preso por mãos afoitas que não sabiam mais como era tocar um corpo. Cumpri perpétua que durou até o primeiro gozo.


Quando acabou a quarentena, abriu aquela champanhe barata que guardava feito relíquia sagrada. Ligou o som, aumentou o volume e bebeu, cantou, gritou, da janela, em uníssono com todos os outros que também celebravam. Ébrio, dançou pela casa, rodopiou, derramou a bebida no tapete cansado de guerra, proferiu palavras de ordem e já se acercando do cansaço, masturbou-se e dormiu. No dia seguinte, acordou de ressaca. Banho frio, café forte, jornais matutinos noticiando a volta do normal. Vestiu-se e munido de ânimo, abriu a porta para encarar essa nova normalidade que chegara, a vida morreu, longa vida a vida. Olhou para a rua e, com um tremor incontrolável, fechou a porta e voltou para dentro de casa. Despiu-se, encolheu-se no sofá enquanto a televisão lhe trazia aquele admirável mundo novo.


Quando acabou a quarentena, tomou banho, fez barba, escovou dentes, desodorante e perfume. Vestiu a melhor roupa, cueca nova, sapato novo, tudo zero afinal, ele a rua iriam desvirginar, carecia fazer a corte; há tempos estavam em namoro platônico, soltando suspiros pelos pulmões e asfalto. Deu uma última olhada no espelho só por garantia e, dono de segurança inabalável construída durante a quarentena, saiu ao encontro da amada. Morreu atropelado ao colocar os pés na rua, o sangue escorreu pelo asfalto quente, o trânsito nervoso saindo da quarentena reclamou, as pessoas aglomeraram para ver algo que não viam há tempos. Alguns juravam ter visto água correndo junto com o sangue. Talvez um encanamento aberto. Talvez a rua chorando o amado e pedindo desculpas afinal, era de sua natureza.

18 de ago. de 2021

as flores do jardim da nossa casa....

as flores do jardim da nossa casa...

morreram de saudade de você e eu arranquei todas e joguei fora porque pra morrer de saudade de você já basta eu.

17 de ago. de 2021

os morangos na parede

gosto de morangos. com chantilly? claro! não se pode comer de outro jeito. e leite condensado? tira o gosto do morango, muito doce, tem ser chantilly fresco porque mantém a acidez da fruta. e quem quer sentir o azedo? muito doce estraga tudo, tem de ter um pouco de azedo, igual estar vivo, se fosse doce demais não seria viver, seria estar morto. e morrer é doce? deve ser, só de não ter de amargar viver deve ser doce demais. e morrer com chantilly? ideal, completo eu acho. podia colocar chantilly na vida então. não, vida derrete qualquer cobertura, não rola, vida é azeda demais para qualquer adoçante, só adoça na morte. cruel isso. fato, simples assim. vamos comprar morangos então. com chantilly? não aceito se for de outro jeito.

estes estão bons. não. porque? olha a parte debaixo, podres. nossa, verdade. eles colocam os grandes e bonitos em cima aí você não vê e leva e depois fica só com três ou quatro que prestam. não tinha notado. você não tinha notado muita coisa. tipo? a gente por exemplo é uma caixa de morangos. morangos? sim. não entendi. a gente se compra pelo que vê por cima e depois quando abre a caixa vê que está tudo podre embaixo. eu não estou podre embaixo. pode ser mas o podre nunca está em cima assim logo de cara, sempre está bem lá embaixo, às vezes demora pra achar, outras nem tanto mas no fim a gente sempre acha. e faz o que, joga fora? depende, tem vezes que sim, tem vezes que a gente como estragado mesmo ou deixa mofar e apodrecer pra jogar fora só pra ver se de repente salva alguma coisa. e salva? nem sempre, nunca eu acho. quer chantilly? sem ele nem levo mas tem se ser esse aqui, fresco. porque? porque tudo tem de ser fresco, quando não é fresco não tem gosto. mas estraga mais rápido. tudo que é bom precisa estragar rápido, não deve ter conservante, não tem gosto, é imitação. fresco então? fresco então.

os morangos estragaram. não houve chantilly que desse jeito e mofados, apodreceram tudo ao seu redor. peguei a taça cheia deles e de chantilly azedo e joguei na parede onde você esteve e nunca mais está e eles estão lá, grudados, impávidos, mancha meio rosa esverdeada de um tipo de penicilina quem mata, alérgico.

os morangos na parede foi o que restou de você.

16 de ago. de 2021

o mundo é um polegar pra cima

o mundo é um polegar para cima, as mãos não tem mais cinco dedos mas cinco polegares, todos prontos para decidir entre vida e morte ou pior, esquecicancelamento eterno, hoje não matamos mais, pena de morte é obsoleta porque termina, acaba, fim da linha e não há mais como reviver ou condenar, morto não fala, pode ser crime ou vítima, foi-se, pode ser feito o que for e ninguém faz nada a respeito mas o vivo sim, sofre, carne e pele e ossos.

a necessidade de justiça expressa impera, impreca, cancelar é o esquecer sem deixar a memória ir embora e memórias foram feitas para serem diluídas, no tempo, depois virarem algo a ser degustado com gosto ou amargor mas não, no imediato que devora precisamos dos polegares e corações e ups, vida extra que compramos com os filtros e reels e memes e tiks e toks e tudo. entre like e dislike a vida vai correndo da gente porque ela virou algo que precisa encaixar e sempre foi de expandir, não foi a vida que ficou chata, pequena, iludida, falsa e sem sal, fomos nós imersos nas telas coloridas, pescoços curvados, olhos vermelhos, tela morta, sem descanso de tela, pausa ou break, enlatados, consumidos, engarrafados, consumo imediato, não consuma se o lacre estiver aberto, tudo precisa estar fechado, encapsulado, envolto em banners, anúncios, inserções e tempo para pular o anúncio.

e a hipocrisia enfim, igual ao meme, somos os memes que nunca param, fora do insta, do face, do tik, do pint, do tumb, tudo bem (?) sim claro porque não estaria (?) só pode estar porque a gente só fica sabendo através deles, não da gente mesmo, aquele ali não sou eu não, é uma cópia, esse aqui na timeline, feed sim sou eu, olha que beleza, olha como fico bem nesse filtro, com essa luz e esse bico, tem de ser com gesto senão não tem engajamento, engajar é preciso viver não é preciso aliás nunca foi, viver sempre foi impreciso porque se for preciso não é viver mas emular.

a vida que se emula é a vida que empaca feito mula.

12 de ago. de 2021

printing...

 


Quando você não tem mais certeza de que o jogo está a ser favor e não sabe o que fazer pois nunca foi e nem será um bom perdedor, o contrário disso, você só acredita na sua versão dos fatos, melhor estilo insista na mentira até que ela se torne verdade, o que você faz?

Aumenta a aposta pois não tem nada a perder e, se o circo pegar foro você vai é gostar.

Com o derretimento lento e persistente de sua popularidade, sustentada apenas dentro de um círculo barulhento de seguidores, a saída é colocar em cheque todo o sistema que colocou você onde está e se fez isso então qual o problema mas, lógica nunca foi nem será seu forte, não é mesmo?

Já que as certezas estão ruindo, coloquemos em cheque o sistema pois ele só pode ser falho se não corrobora sua versão dos fatos. O maior trunfo do Bolsonarismo é bater forte e com barulho sem precisar apresentar argumentos ou fatos, basta a palavra, basta o berro, basta suspeitar porque o bom fascista, além de cuzão, é um fanfarrão que só sabe atuar no grito, no latido, no berro, quando confrontado com suas falácias corta o papo, interrompe e sai sem dar satisfação porque não é ele que não tem embasamento, somos nós que não estamos entendendo e não queremos entender ou lhe dar ouvidos.

Com uma CPI nos calcanhares, Lula pairando sob sua cabeça feito ave de mau agouro e um governo débil e feito de fantoches, Bolsonaro faz o que sabe fazer melhor, grita, ameaça, faz a louca, prende e arrebenta, nada de novo, ele sempre foi assim, ele vai ameaçando para ver até onde pode ir sem ter de pagar o pato, distende as leis e a democracia para testar os limites e isso é um perigo pois essas coisas tem sim limites e, se não soubermos onde estão para impor, ele vai se aproveitar das brechas e entrar de sola com seu gado.

Bolsonaro conta com o caos, ele não zela pela ordem, deseja a bagunça, o barulho, a confusão porque somente assim ele pode seguir fazendo o que sabe fazer de melhor, mentir e enganar, onde há harmonia esse tipo de político não tem vez, fica de lado feito um palhaço que diverte mas, onde há desordem, ele se torna um animal perigoso, extremamente perigoso...

11 de ago. de 2021

retícula


Retícula película fina, segunda pele primeira, contato com o mundo de fora umbilicando sensações e sentimentos num mimetismo de mim que servia bem enquanto larva incubando.

Transfundindo através dessa tela fina, veio algo como luz ou que julguei ser luz pois não sabia ser esse o nome a lhe dar e como me pareceu esse, luz, bom, sonoro, justo, aplicável, usei. Daí, foi iniciar o processo de romper a pele casular e transmutar, nascer de novo para a vida que não era mais minha e parar de ruminar meus restos do outro que, em verdade, não mais alimentavam só me subsistiam.

A luz, sim, ela veio nos olhos, quis desviar mas ela é demais de bela, chama o nome da gente quando ninguém mais lembra dele e fui aos poucos rasgando a pela fina, de Hansen e ganhei de volta aquele mundo que eu havia me fechado no dia em que aquele outro me fechou o seu. Agora eu retornava mariposa única, ímpar e louco para voar não em círculos mas direto para a luz; a mesma luz de fato, não havia nela mesmo algo assim diferente mas meus olhos recém nascidos não viam assim, viam uma paleta de cores nunca vistas e que chamavam tão forte com som trovejando nos ouvidos sensíveis de inseto criança sedento da vida drosófila que me aguardava.

Fui, linha reta e entrei naquela luz e a devorei toda com a fome de quem ficou muito enclausurado apenas comendo o próprio corpo para não morrer na fome. Os náufragos aprendem a gerenciar seus recursos até o limite do suportável até que a humanidade descarta o humano e chama correndo o animal para fazer valer as leis mais antigas, com novo amor nunca foi diferente e a luz foi diminuindo aos poucos, assim apagando, perdendo primeiro viço e depois brilho, potencia até que era algo como vela lutando contra ventania pré-tempestade.

Qual a culpa que me cabe se estava faminto? Ou ser a sina do inseto chegar sempre assim tão perto da luz para queimar antes de devorá-la por completo? Quando ia saciar minha fome, me foi tirado o prato, acionaram o interruptor e a luz se foi deixando a mim cego, sem rumo e voando a esmo.

Sem luz, voltou a fome, ainda mais forte, viral, dentes arreganhados para mim que, cansado, podia fazer pouco para lhe atender os desejos salvo parar o voo e encontrar outro lugar para pouso e repouso. Isso feito, bastou trazer a fome para bem perto de mim, no colo mesmo, acarinhar e lhe dar aos poucos pedaços de mim para que ela regurgitasse uma resina fina, translúcida que fui aplicando sobre mim aos poucos até estar novamente no casulo protetor.

Agora, depois, através da pele fina que protege parece vir algo, não sei, difícil dizer ainda assim distante mas, acho que parece uma luz....

10 de ago. de 2021

a nudez do asfalto

nos amamos no asfalto quente derretendo piche e alcatrão em camadas de pneus rasgando peles e deixando os ossos a mostra para expor o tutano de amor que nunca fizemos, escuso, obscuro, escondido, de lado, não visto, sem nome, sem cara, sem cor, nafta feita de corpos e poeira de vida.

nos suprimos de vontade e desejo onde havia falta de sossego, ali no asfalto, com o inverno de faróis e luzes a esfriar os poros, com freios e embreagens mudando o ritmo da coisa, marcha lenta, marcha, em frente, soldado cabeça de papel se não marchar direito vai de volta para o umbral, armário, guarda roupa, cômoda, mesa de cabeceira, isolada, morta, feito asfalto abandonado em ruas nunca trafegadas.

as bocas lambendo o líquido quente, desviando dos escapamentos, eles estão ali para afogar, para matar, a faixa de pedestres que nunca usamos, o semáforo que nunca respeitamos, os bueiros que sempre usamos, os postes que sempre fugimos, na luz não há paz, só no asfalto, escuro, preto, espesso, grosso feito aquele leite que bebemos, daria para fritar um ovo, nossos ovos, nosso carne em bacon, nossa vitela vital servida para todos que por ali passavam.

e eu vi nosso sangue, e nossos pelos, e nossas mãos e nossos pés sem tocar o asfalto, quente, derretendo mas a gente não, lisos, sem mácula, feitos de um amor que tapa buracos, que derrete borracha, que amassa lataria, que faz ferver óleo de motor, que exala gás do corpo e inala gás carbônico.

nesse mundo feito de asfalto...

9 de ago. de 2021

seu reinaldo

seu reinaldo era um pai só que meu. ele me ensinou a cozinhar, a gostar de música, a gostar de comer, a gostar de comida, me ensinou muita coisa, deixou de ensinar outras tantas porque pai não consegue ensinar tudo, tenta mas não consegue porque nem ele sabe direito, faz o melhor, às vezes consegue, outras falha miseravelmente, assim é o jogo de pai e filho.

seu reinaldo tinha defeitos, muitos, mais do que eu consigo lembrar e contar, normal, pai não é deus ainda que ele seja chamado de pai, pai é gente, carne e osso que usamos como referência, como suporte, como adubo para o que crescemos. muitos de seus defeitos eu tenho, genética foda, perdoa não, outros eu aboli para deixar entrar os meus mesmo, adquiridos, criados, sou cheio deles graças a deus e ao pai, a maior dádiva paterna deve ser nos passar seus defeitos e com eles talvez a maneira de corrigi-los.

seu reinaldo fazia uma tora de palmito que eu aprendi a fazer também, até hoje quando faço acho que sou ele sovando a massa, preparando o recheio, abrindo com o rolo, forrando a forma e depois colocando alguma frase por cima com o que sobrou. acho que tem o mesmo gosto mas a dele tinha algo que a minha não tem pai, não sou pai de nada nem de ninguém, ele era, acho que isso ficava na massa e o sabor era diferente, de pai mesmo.

seu reinaldo tentou me fazer gostar de futebol mas não deu certo, eu já era viado desde cedo, desde pequeno, desde zigoto, acho que ele percebeu e nunca mais insistiu, acho que ele ficou triste quando assumimos nossa homossexualidade porque assumir ser gay não é só para você, é para todos, você sai do armário e leva família, cachorro, gato e papagaio junto, a família às vezes vem junto, às vezes não vem, fica no armário porque lá é mais confortável e a gente visita eles no armário de tempos em tempos, vê se eles querem sair, às vezes sim, às vezes não, tudo bem, deixa eles saírem quando for o momento.

seu reinaldo saiu comigo. não sei se ele aceitou bem, se gostou, se não gostou, nunca falamos muito sobre mas, ele sempre esteve lá, conheceu meus homens, nunca perguntou nada e os tratava como filhos, alguns pelo menos e sempre que percebia - sim, eles sabem - que era algo mais sério, admoestava o pretendente com a frase 'cuide bem do meu filho' deixando ele a e a mim em choque.

seu reinaldo já se foi mas ainda está aqui. eu sou ele. não há como negar. trejeitos, fala, maneirismos, gírias, já me disseram que eu sou ele e isso é bom eu acho. se temos de ser parecidos com alguém, tomara que seja com nossos pais tanto no melhor quanto no pior, melhor culpar a genética e a criação do que ter de aceitar que somos produtos falhos de nós mesmos...

5 de ago. de 2021

o canto mais escuro da casa

quatro paredes e um teto. janelas. portas. cimento. tijolos. vidro. alicerce de uma vida feita sob medida para medir tudo que tem medida porque a gente é de medir, tudo precisa de centímetros, milímetros, metros e termina em quilômetros. 

essa é a lei. essa é a regra. essa é a norma. essa é a carta magna que rege os corações magros depois de anos de alimentação desregrada, artérias cheias e sangue vazio, vermelho de raiva, não de vida. pulmões cheios de pó, o ar saiu e nunca mais entrou, resta esse pó que entra em cada fresta, tijolo e deixa os vidros com marcas de dedos, digitais, falas táteis de um mundo que não é mais.

paredes tem ouvidos. portas tem línguas. janelas tem olhos. da alma não sei. olham para o vazio dentro. olham para o vidro quebrado dentro. olham para as dunas, para os pratos e talheres, para os copos e carpetes, para os restos mortais de uma vida que se viveu não se sabe porque vida tem de viver e estar viva e não simulacro de viver, vida é viva, se não é deve ser não-vida.

o telefone não toca mais e se toca, canta sua música para um campo de mudez que rega os restos de realidade que pululam pela casa que de casa teve dias mas hoje é mais casamata, relíquia de uma guerra perdida e de batalhas que seguem dia a dia porque se esqueceram de que a guerra já terminou.

a tv não liga mais, nunca ligou mas agora não liga mais. o toca discos toca ar sem notas, ruído branco, ruído de ratos cochichando pelos cantos, ruído de gotas na pia do banheiro, cheio de cacos de um vidro estranho que partiu, partido alto, partido tanto de quebrado como de ir sem voltar, só de ida.

quatro paredes e um teto.

no canto mais escuro da casa enterrei você com o resto da vida dessa casa que não soube quando chegou o não.

4 de ago. de 2021

eu quero ser o que você não foi para mim

eu quero ser o que você não foi pra mim porque se eu for o que você foi pra mim então eu preciso ser o que eu não fui pra você.

o trago que alagou a garganta. o cigarro que queimou minha mão. o choro que eu não senti. o choro que você negou. o sexo que eu não vi. o sexo que eu fiz sem ter você. o você que eu fiz sem ter sexo. o macarrão que você fritava. o almoço que eu perdi. o ciúme que nunca sentimos. o ciúme que nunca sumiu. o beijo que não saía. o beijo que vazava. o beijo de outras bocas que nunca era o seu. o beijo seu que vinha de outras bocas. as separações que acabavam voltando. as voltas que acabavam separando mais. as festas que não eram nossas. as festas que eram nossas. as festas que a gente buscava. o que a gente buscava nas festas. o que as festas buscavam, o que gente nunca achava. o que as festas nunca traziam. o vício que nunca tivemos. o vício que tínhamos um no outro. as músicas que você amava. as músicas que eu odiava. as músicas que eu fingia odiar. as músicas que você me fez odiar. as músicas que eu fiz você odiar. as músicas que a gente gostava e odiava. as músicas que a gente descobriu juntos. o show que nunca fomos, o show que fomos e que nunca ficamos. os presentes que nunca nos demos. os presentes que nos demos e esquecemos. os presentes que dávamos porque achávamos que eram prova de amor. o amor que não precisava de provas. os filmes que a gente não viu. os filmes que a gente viu. os filmes que a gente podia ter feito. os filmes que nunca fizemos. os prêmios que nunca ganhamos. os prêmios que ganhamos e esquecemos. o choro que vazou. o choro que venceu. o amor que morreu. a morte que veio. a morte que foi. a morte que matou mas deixou você ainda comigo. a lembrança que os anos não levam embora. a lembrança que com o passar do tempo não fica amarela. as cores que ficam mais vivas. as cores que ficam mais fortes. as cores que vivem em mim. as cores que você viu. as cores que eu vi. o estar lá quando não há mais ninguém lá. o estar lá quando for de chegar. o chegar quando estiver lá. o chegar quando for o momento, quando o momento chegar...

3 de ago. de 2021

o tédio é coragem que matamos com a vida adulta

 



eu lembro de um tempo que era meu e de outros e que hoje pertence a quem lhe é de direito porque esse tipo de tempo passa rápido e tem dono por um breve período de tempo, não se submete a um único mestre, demanda que a cada ciclo novos senhores lhe ditem os rumos para poder falar de coisas e vidas que estão ali no momento e que precisam dobrar o espaço e o tempo para fazer do seu prazer a vida eterna que levarão até o final quando o tempo estender ante os olhos a manta costurada durante os dias que foram feitos com o desejo que nasce e morre para morrer nascido de novo com outras placentas.

talvez seja saudosismo, nostalgia, um tipo de saudade que a idade vai fomentando feito massa de pão que ela vai sovando quando somos imberbes porque sabe que a massa cresce mas leva tempo, muito tempo. talvez uma constatação de que os anos não dobram a gente, a gente é que vai dobrando os anos conforme eles se acumulam, vamos dobrando cuidadosamente um a um formando uma pilha de folhinhas amarelas que vão se amontoado num canto da gente feito poeira que a vassoura não consegue limpar.

tudo isso vai se formando num caldo que faz a gente começar a valorizar o que foi, não que o valor do que é não seja, não esteja e não valorize mas, o que foi parece feito de outra liga, material ou feitura, brilha diferente, tem uma luza própria que ofusca o agora com uma cegueira incapaz de ser curada, um perfume impossível de tirar do nariz, um gosto que não sai nem com água sanitária, um toque que não cicatriza mesmo depois de anos.

pode ser um atestado de senilidade ante a agilidade e rapidez que imperam, o hoje tem muito poder, o agora virou algo tão precioso, o momento virou um ouro raro, tudo tem de ser imediatamente processado, gostado, curtido, levado, sentido e tanta adrenalina vai para onde? cérebro fica encharcado de tensão e tudo precisa ser valorizado num segundo e seu milésimo e quando eu era das horas e dias as coisas pareciam durar mais, sentir mais, gozar mais porque não havia como saber e sentir sem arriscar, sem o medo de estar totalmente errado e sem qualquer tipo de manual, guia ou canal que pudesse dizer o que era e o que não era, vivíamos o mistério, o desconhecido, tudo se desdobrava a nossa frente como um tipo de véu espesso que íamos tirando apenas para descobrir outras camadas debaixo e não acabava nunca e a gente precisava ir tirando para saber o que viria depois.

eu sinto falta desse mistério, desse descobrimento, dessa sensação de não saber de nada e achar que sabia de tudo, dessa vida obscura que não se deixava observar, a gente precisava fazer a cirurgia de peito aberto e sem anestesia para senti o que estava acontecendo e depois resolvia o que fazer com a dor ou com o prazer que muitas vezes vinham juntos. sei que hoje esse mesmo mistério ainda está por aí, mesmo com tudo tão nas caras, mostra, vivo, aberto em milhões de feeds e likes mas ele está lá, o mistério segue firme e forte porque ele não tem medo de nada, nem do like nem do block, ele se reinventa e segue nos mantendo vivos porque sem ele a gente morre e se a gente morre qual vai ser o mistério?


2 de ago. de 2021

pequenos momentos rompantes

quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão descarreguei o pente no filho da puta porque de notícias suas eu quero é distância


eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo e eu mandei sacrificar porque cachorro sorrindo latindo não é coisa normal.


quando você se separou de mim quase que minha vida teve fim mas depois passou e dei graças e deus por você ter ido embora.


quando o inverno chegar eu quero estar junto a ti para ver você morrer de frio na minha frente.


eu tenho tanto pra te falar mas com palavras não sei dizer então toma aqui esse chumbinho que vai dar conta do recado.



29 de jul. de 2021

querência

olhei pela fresta, um fio de porta que deixava apenas uma parte do quarto na vista mas a parte que importava, a que me cabia, a que sempre usava quando ele chegava da rua com algum macho avulso, ele não era de macho fixo, só avulsos, dizia que de fixo já basta a vida, o resto tinha de ser avulso para não durar.

dizia que a porta tinha defeito, empenada, não fechava direito, só no tranco e depois para abrir era ruim demais então sempre deixava daquele jeito, meio aberta, meio fechada, fresta, um vão que saía dele para entrar em mim e eu via os machos e ele no quarto cavalgando feito cavalos no cio e aquela fresta me fazia feliz, eu guardava o gozo para ir junto com o deles e ele uma vez disse que teria de pintar a porta porque estava toda manchada, minhas manchas deixadas ali como evidência de um sexo que só fiz por um fio de porta, ri de nervoso, ele riu de sarro mesmo e piscou um olho como se fosse me dar algo em troca, algo que nunca veio.

aguardava ele chegar com os machos da rua, sabia até o peso de seus passos na escada, o ranger nos assoalho de madeira antiga carcomida por cupins e sexo, ele sabia, eu sabia, nós sabíamos e ele não fazia questão de fechar a porta quebrada, na verdade não estava, consegui fechar sem esforço e abrir da mesma forma uma vez, não era defeito, era safadeza mesmo, ele gostava que eu visse os machos que ele trazia para o quarto, queria que fosse os machos, queria que eu gozasse com os machos mas não sei porque nunca me fez isso.

uma vez eu perguntei.

ele disse que os machos eram avulsos e que eu seria fixo e ele não gostava de nada fixo, preferia que eu ficasse ali olhando, que fosse dele pelos machos e pela fresta, não queria que sua cama me conhecesse, queria apenas me sonhar e eu fiquei assim meio sem saber e evitei por dias presenciar os machos me sentindo mal por não ser eu ali, não ser o fixo, o avulso, não me importaria de ser avulso desde que fosse dele.

mas depois de uns dias, a vontade foi maior. fiquei esperando mas nada, só então me atentei de que não ouvia os passos na escada e no assoalho fazia um tempo, mergulhado que estava na minha infelicidade avulsa, nada dele nem dos machos que trazia, nada por dias seguidos, cansei de esperar e doido pelo desejo e medo de não ter mais a ele e seus machos, sai perguntando e soube que ele não mais vivia ali, ido, vazado, sumido, ninguém sabia como, onde ou porque, deixara o quarto vazio e a porta sem fechar, como a esperar que fosse lá ver seu sexo.

fui até o quarto, a porta lá nem aberta nem fechada, deve ser ruim para um porta ficar assim, porta foi feita para ficar aberta ou fechada, não no meio do caminho. olhei dentro e nada, empurrei a porta com cuidado e medo mas nada, o quarto seguia vazio, a cama no meio desfeita com lençóis tortos feito um instrumento de tortura, guimbas de cigarro pelo chão, um cheiro azedo vindo de não sei onde, um suor pesado exalando das paredes, sexo de todos os machos que haviam gozado ali, cheiro de todos os machos que haviam se largado ali, de todos os machos que haviam sido avulsos ali.

sentei na cama e toquei os lençóis sujos, não dava para sentir o tecido, haviam camadas e camadas de pele e sexo em cima, a cama era um depósito de vidas, um banco de sementes jogadas fora, um mar de pelos despregados de corpos tesos, um canavial de sexo e ali eu deitei e enfiei o nariz nas camadas de vidas e me enrolei nos panos com cheiro de sêmen e uso e gozei ali mesmo envolto num ar de machos de antes e machos que nunca vieram ou ficaram por pouco tempo, avulsos, nunca fixos.

levantei mole, melado, pernas bambas, sexo mole e pingando e fui até a porta que estava aberta, ao tentar fechar ela emperrou...

lembranças aleatórias não relacionadas com a infância

Lembrança #10 Lembro de uma festa ou rave ou balada que eu ajudei um amigo a organizar num tipo de sítio eu acho. Estava separado do meu nam...