7 de jan. de 2020

O menino que falava em letras

O menino nasceu mudo, não por alguma falha congênita ou capricho de alguma entidade divina, apenas porque nasceu sem voz e o choro primevo que anunciou sua chegada ao mundo não consistia linguagem antes pavor pela expulsão compulsória do útero protetor.

Os meses após foram de expectativa, pais são criaturas ansiosas e antecipavam as sílabas como se fossem algum tipo de sorte grande, o menino balbuciava algumas coisas, dialeto que apenas as crianças ainda intocadas pelo vírus da linguagem humana entendem, mas papai ou mamãe não vinham, pareciam perdidos em algum lugar dentro daquela compacta massa de gente.

Aflitos, levaram o menino ao pediatra, exames, testes, esperavam o pior, menino quebrado, com falha, de quem fora a culpa difícil dizer já que genes não carregam RG mas já se olhavam de rabo de olho forjando teses para apontar os dedos. O pediatra trouxe calma, apaziguou a família, o menino nada tinha de errado, eram os pais que precisavam de se tratar, a criança faria tudo no seu tempo certo, não eram máquinas, eles que tivessem lá paciência e deixassem o menino seguir seu ritmo.

Assim foi. Passava o tempo e o menino apenas balbuciava algumas sílabas que aos pais soavam estranhas, em línguas mas pareciam totalmente razoáveis ao menino. No intento de fomentar a fala e assumindo que esta poderia ser instigada pela escrita o que, convenhamos, seria algo como perguntar quem veio antes, o ovo ou a galinha, lhe deram um conjunto de cubos letrados perfazendo o alfabeto inteiro.

O menino então transmutou-se. Ante as letras coloridas gravadas nos cubos de madeira do nada passou a compor palavras, papai, mamãe, cachorro, vovó, vovô, muitas vezes com erros de grafia mas as crianças estão isentas das normas cultas, ainda bem, pena que adultas esquecem disso.

Os pais seguiam ansiando pela vocalização, a palavra falada tem peso, força, forma e foco, a palavra falada é desencanto mas encanta as criaturas vocais, o menino seguia apenas balbuciando coisas e já fazia praticamente toda sua comunicação via os cubos. Vendo que mesmo mudo o menino seguia crescendo com saúde e, até onde lhes era permitido entender pela ausência de som, com seu intelecto preservado e faminto, resolveram deixar a medicina de lado e, após bençãos e simpatias darem igualmente em nada, abraçaram que seu filho era assim e que o mundo não carecia de mais gente falando.

O tempo passa. O menino foi para a escola, ler e escrever para ele foi algo tão simples quanto andar e respirar, lidar com outras crianças nem tanto pois seu mutismo era frequentemente causa de choro e brigas. Crianças são assim, há um tipo de maldade único nelas e que às vezes parece mais vil do que a maldade humana que permeia o mundo adulto, talvez por não possuírem ainda um sentido de bem e de mal, por não terem ainda uma consciência totalmente resolvida ou talvez por serem apenas más sem qualquer medo disso.

O menino depois de aprender a escrever passou a comunicar-se com o mundo dessa forma, em seus momentos de solidão arriscou algumas palavras mas elas lhe pareciam ecos horrendos sem sentido, brutas, ásperas, incapazes de traduzir com a profundidade necessária o que sentia. A voz lhe soava algo abominável, pensava em como era possível que as pessoas se comunicassem falando, usando recurso tão grosseiro e alto quando a escrita podia dar conta de tudo e ainda deixar ao interlocutor alguma chance de entender como quisesse a mensagem dada.

Os pais, já conformados, viam o menino crescer e tomara vida pelas mãos sem dar palavra, sua escrita comunicava os momentos de amor, raiva, tristeza, ódio, decepção, alegria, tudo de forma tão reveladora e intensa que as palavras dispensavam qualquer oralidade, conseguia fazer-se entender de forma que poucos falantes conseguiam ou até mais.

O menino cresceu, fez-se homem e foi ganhar seu mundo. Deixou os pais falantes chorando mas resignados pois não se cria um filho para que ele seja apenas a palavra dos pais mas o verbo no mundo.

Certo de sua sina, foi escrever, falar não lhe apetecia, escrever era apenas necessário, por onde ia e com quem tratava usava apenas um pequeno bloco para comunicar-se, alguns o tomavam por doido, outros portador de algum tipo de deficiência mas todos, ao lerem o que ele escrevia, eram tomadas pela surpresa ante tamanha clareza de pensamento e capacidade de expressar na escrita seus sentimentos e o de outros.

E assim, o menino já homem foi ser escritor pois era a única saída para quem tem na palavra seu meio de vida e fala, falar é a involução da alma pois a alma está dentro em algum lugar inexplorado e que apenas a escrita tem acesso e sabe como entender e expressar. A fala é um anacronismo, um resquício de uma evolução errada, nada mais.

Quando lançou seu primeiro livro, o menino-homem estava feliz, exaltado em ter conseguido colocar seus sentimentos em um tomo e poder compartilhar com todos tudo aquilo que ele sempre sentira. Mandou um exemplar aos pais que responderam com uma carta emocionada, ele percebia a fraqueza da escrita deles mas o carinho que lhes nutria suplantava seu preciosismo com a escrita que, para ele, era algo mais importante do que o ar que lhe fazia vibrar as cordas vocais aposentadas.

Mas o mundo oral é pérfido, as palavras faladas são distorcidas e recebem camadas de sentimentos que não deveriam estar lá e, ao invés de ter sua mensagem entendida, o menino-homem foi chamado de insensível, cruel, mórbido, ridículo e outros adjetivos orais e escritos que ele não soube entender já que apenas havia escrito sentimentos em sua forma mais pura, seria possível que ninguém estava preparado para isso?

Entristecido e decepcionado, foi perdendo a vontade de escrever, encontrando a cada dia menos e menos desejo de contato com o papel, a escrita foi enferrujando e tornando-se algo incômodo, um cancro que era atacado pelo oral toda vez que ele aina tentava dizer algo e assim, aos poucos, a escrita foi morrendo dentro dele.

Até que um dia ela simplesmente sumiu e ele, incapaz de se comunicar, viu-se forçado a abrir a boca e buscar dentro de si o som que nunca usara ou ouvira, a palavra morta que não queria mais viver. Abriu a boca um dia e num arrepio que rachou concretos e trincou vidraças soltou um gutural AHHHHHHHHHHHH.

Dedicado ao aniversariante do dia meu amigo Roberto Muniz Dias.

Um comentário:

  1. Que lindo texto. É pra poucos. Poucos entendem, poucos passam despercebidos. A literatura nos uniu e nos deu alegrias.
    Esse menino do conto vejo-o em reflexo de nossos rostos. A fala reprimida é o resultado das limitações. A escrita é o Pharmakón, aqui como antídoto; o bálsamo de nossa existência -- digo nosso, porque você é esse menino.
    Esse grito final é nisso também, que repercutirá nossa grande felicidade.
    Obrigado amigo por esse brinco de princesa.

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