15 de jan. de 2020

Se fiquei esperando meu amor passar...

Ontem comentei neste post sobre HIV-AIDS que meu primeiro namorado muito provavelmente morreu em decorrência de complicações decorridas da doença. Sua família, compreensivelmente, preferiu ignorar tal fato e não cabia a mim contestar essa decisão muito menos confirmar que tivéramos um relacionamento já que estava subentendido e, se alguém deveria ter falado sobre isso, seria ele e não eu.

Enfim. O que desejo aqui é contar um pouco dessa história, será um texto meio longo ainda que me atentando apenas aos fatos principais nos quase cinco anos que passamos juntos, anos de altos e baixos, anos que foram ótimos, que marcaram a ambos e que ainda carrego comigo mesmo depois de tanto tempo, uma lembrança doce de um tempo que se foi e que, apesar dos pesares, continuam com um gosto doce de passado sutil que abriu portas para nós dois e nos fez talvez pessoas menos piores.

O conheci no mais improvável dos locais, Cine Art Palácio ali no Largo do Paissandu outrora cinema de família mas, como tantos outros da região, tornado cine pornô ante a total decadência da região. Nos tocamos e beijamos ali entre aquele odor de suor e sexo, desinfetante barato e travestis flanando atrás de clientes que escapavam para gozar alguns minutos naquele lugar onde sempre era noite.

Lembro que ao final de nos saciarmos um no outro ele me perguntou 'fica comigo?' e eu respondi, meio no descaso, 'quanto tempo?' e ele 'pra sempre'. Mal sabia que aquele pra sempre duraria cinco anos e que o pra sempre, sempre acaba. Saímos de lá e combinamos de nos encontrar na próxima semana ali mesmo no cinema, era um tempo antes da internet, celulares, redes sociais, apps e conhecer alguém estava restrito aos meios físicos e convencionais, humanos, reais, estar online era estar presencialmente na frente da pessoa.

No dia combinado cheguei e esperei, esperei, esperei e esperei. Bolo. Furo. Idiota. Imbecil. Fui embora e quando entrava no metrô, o universo, esse brincalhão sacana, disse a que veio pois dei de cara com ele que me explicou ter atrasado pois a condução estava péssima naquele dia. Fomos para o cinema e ficamos novamente, conversamos, rimos, ali era nosso lugar porque não havia lugar para nós, eram outros tempos e lugares para LGBTQ ainda que existentes eram esconderijos apenas conhecidos pelos iniciados.

Lembro de termos saído algumas vezes, coisas bestas como beber algo ou comer um lanche, éramos adolescentes, incautos, não sabíamos como lidar com aquele desejo que aflorava em nós, apenas sabíamos que um saciaria o desejo do outro. Gostos em comum, coisas em comum, e algo que era amor mas a gente não sabia chamar assim começava a abrir suas portas e convidar a entrar.

Descobrimos uma boite LGBTQ que ficava nos jardins e decidimos ir, não sei se nossos pais sabiam, provavelmente sim mas já éramos maiores de idade e talvez eles achassem parte da construção masculina sair para a noite sem saber que a noite era nossa capa e manto protetor para fazer nosso amor.

Chegamos cedo, a boite estava fechada e ficamos sentados numas escadas em frente ao clube esperando que abrisse. Quando abriu, onde estava a coragem de entrar no lugar? Ficamos ensaiando por vários minutos como chegar, como entrar, que falar, não era comum, não sabíamos como ser gays, não entramos, medrosos fomos embora e vagamos pela Paulista parando nas bancas de jornal vendo revistas importadas e conversando e rindo e nos amando pelos olhos e roubando algum beijo aqui e ali, não haviam lâmpadas criminosas, se haviam estavam longe de nós.

Acabamos indo em outra boite, desvirginados ao mesmo tempo e daí começamos nossa incursão no meio gay, aprendemos a ser LGBTQ na marra, não havia referência nem modelos, não tinha Youtuber nem Influenciador, não tinha blog nem Instagram, tudo que aprendemos foi na carne, no osso, na prática, empíricos de nós mesmos e da vida que se descortinava.

Amar assim tão jovem é foda, você acha que o mundo vai acabar, que tudo vai romper como um raio que parte um tronco ao meio, a vontade de comer o mundo e regurgitar outro é enorme e nossa fome era tanta que acabamos nos fartando de forma errada de nós mesmos.

Não sabíamos amar de verdade, o que pensávamos ser amor era algo diferente para mim e para ele, normal que cometêssemos erros, éramos jovens e ser jovem foi feito para errar e pensar em arrumar depois, guardar como botão de emergência para ocasiões futuras.

Saíamos muito, bebemos muito, fomos a clubes, shows, raves, varamos noites em lugares onde as pessoas não faziam questão de saber quem éramos. O tempo passava e as diferenças entre nós iam aumentando e nós, ao invés de saber que elas são parte do jogo e que devem ser aceitas como parte do todo, usávamos a elas como cavalos de batalha para justificar os erros que cada um cometia, feito agressão planejada, descaso, desprezo, mau amor que você não sabia como tornar bom amor.

Passamos a ter uma relação daquelas nada saudáveis, idas e vindas, períodos sem nos falar e um tal de correr um atrás de outro feito um revezamento bizarro que nunca chegava ao final. Chegamos a nos interessar por outras pessoas mas, quando um de nós sabia disso, fazia uma aparição surpresa na vida do outro para descompensar tudo e fazer voltar aquele amor que achávamos ter tecendo juras de vai ser diferente apenas para desmanchar tais promessas na semana seguinte.

Foi tanto o que vivemos que seria preciso mais de um volume para dar conta, lembro de quase tudo, outras coisas são tênues que às vezes penso ter apenas imaginado, cinquenta anos em cinco, nossas vidas estavam tão emaranhadas que era meio difícil saber onde uma começava e a outra acabava, amiga nossa dizia que nossa ligação era de outro plano e que nossas histórias ainda viveriam outras vidas além desta.

Mas, como diriam alguns poetas e trovadores, tudo tem começo e se começa um dia acaba e assim foi conosco. Depois de anos de uso contínuo, o desgaste atingiu seu limite, não havia mais para onde espalhar a geleia de ressentimento que nos cobria, não era mais uma relação mas uma simbiose nociva e um de nós precisava encarar o fardo de purgar essa patologia e buscar ares mais saudáveis e, (in)felizmente, fui eu a tomar essa decisão e promover esse afastamento antes que nossas vidas se deteriorassem além de qualquer possibilidade de reabilitação.

O corte doeu, não houve curativo grande o suficiente para cobrir o corte mas, com o tempo, ele foi cicatrizando e curando e acabei encontrando o homem que realmente era o amor da minha vida e com quem estou casado há dezoito anos e que desejo passar até o ocaso de meus dias, com ele aprendi o que era amor de verdade não querendo dizer que o primeiro não me tenha ensinado nada, tempos distintos, momentos diferentes, pessoas idem.

O tempo passou com sempre passa, vamos esquecendo as coisas e as pessoas que não mais fazem parte de nossos dias, as guardamos em algum lugar secreto dentro de nós para aqueles momentos em que um aroma, uma música, um filme, um livro ou qualquer outra coisa fará com que lembremos dela de forma cálida deixando nosso semblante com aquele are de nostalgia singela que apenas quem viveu o suficiente sabe.

Chegou uma data festiva, aniversário de alguém da família dele penso eu ou algo assim, não me recordo bem. Já estávamos afastados há anos então mas eu seguia muito próximo de sua família que havia me aceito como se fosse deles. Fui. Foi bom, conversamos, rimos, o tempo passou rápido e fui embora leve com um sentimento de graça e felicidade por ainda poder desfrutar da amizade daquelas pessoas mesmo não sendo mais algo de relevante para uma delas.

Dias depois, a irmã dele me liga e diz que ele, que não havia visto no dia da festa e tão pouco perguntado porque não estava lá, ciente de que eu iria, havia se trocado e esperado minha visita como se fosse certo que eu fosse ao menos passar para vê-lo - ele morava na parte debaixo de um sobrado onde a irmã morava, ela residia na parte de cima e ele e outro irmão na parte debaixo que ficava abaixo do nível da rua.

Aquilo reabriu feridas antigas e partiu meu coração já cicatrizado. Não havia ido com o intuito de vê-lo, já havia superado aquela história e não tínhamos mais nada a dizer um ao outro. O mal estar apenas piorou quando ele me disse que ele andava bem doente, tivera depressão e estava com algum tipo de infecção respiratória, aquilo me arrebatou e me fez chorar, dentro de mim revi aquele moço que me cativara, que quase perdi por que a condução atrasara e o amor que sentia por ele voltou não feito paixão mas como um presente que guardamos para abrir nos momentos em que precisamos nos recordar de algo bom.

Disse a ela que no fim de semana seguinte eu iria vê-lo, que ela por favor o avisasse. Contei ao meu marido - namorado então - o que se passara e que sentia que deveria ir vê-lo e ele disse que iria comigo.

No dia marcado, de coração na mão e garganta árida fui lá, cheguei e sua irmã me recebeu dizendo que ele me esperava. Desci as escadas em direção a sua casa com o coração engalfinhado com uma sensação de aperto e desespero, se por um lado eu queria realmente revê-lo, por outro eu queria enterrar tudo aquilo e não queria voltar a viver nada do que tínhamos vivido, era tudo passado mas por esse mesmo passado eu senti que devia estar ali para pacificar tudo aquilo que havíamos vivido.

O encontro foi breve mas bom, ele estava abatido realmente mas bem até onde pude ver. Nos falamos sem tocar em assuntos do passado, apresentei meu amor e talvez tenha sido o ponto final daquela história toda entre nós, ele intuiu que eu estava bem e amando e eu estava ali para lhe dizer que eu sempre o amaria pois minha vida iniciou com a dele e isso não era pouca coisa.

Ele nos contou que estava fazendo alguns trabalhos manuais e que precisava de materiais, me prontifiquei a levá-lo para comprar na semana seguinte com anuência do meu marido. Combinamos e em seguida me despedi prometendo voltar como combinado. Lembro de ter saído de lá leve, com um sentimento de dever cumprido e apaziguado e acho que ele também deve ter ficado assim, talvez pudéssemos erguer algum tipo de amizade dos escombros que sobraram de nosso amor.

Na semana seguinte quando deveria ir buscá-lo, um dia antes sendo preciso, recebo um telefonema. Do outro lado da linha um primo dele me diz que ele tivera um mal estar súbito e fora levado ao hospital e que infelizmente não resistira e morrera. Sua irmã me disse que ao ser levado de casa pelo resgate repetia seguidas vezes 'Avisem o Alexandre!'.

Talvez soubesse que não retornaria, talvez apenas desejasse me ver mais uma vez antes de partir, talvez fosse apenas desespero, não sei. O que sei é que nos vimos uma última vez antes dele ir e que foi o suficiente para que nos perdoássemos e demonstrássemos que havíamos nos amado e que de alguma forma ainda nos amávamos.

Há quem acredite em coincidências, destino e coisa e tal, eu não sei dizer. Às vezes penso que ele aguardava apenas esse ultimo encontro para poder ter seu descanso de alma tranquila e deixar a mim de consciência apaziguada, uma amiga minha acredita que nossas vidas estão entrelaçadas e que ainda nos veremos em outros planos e vidas, não sei também, quem sabe afinal?

O que acho saber é o fato de que vivemos intensamente um momento único e mágico e por mais dolorosas que algumas lembranças possam ser, o que resta mesmo são as coisas doces e o amor que tivemos um pelo outro, pode não ter sido ideal, pode não ter sido correto ou o amor que esperávamos mas foi o melhor amor que conseguimos nos dar quando a vida parecia não ter nenhum amor reservado para  nós.

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