Lembro de certa ocasião, há anos, quando eu ainda era um jovem despreocupado e amando outro homem de maneira louca e incerta, estávamos no meu carro que ia cheio de bixas e lésbicas.
Era um modelo que à época se costumava designar como GLS acrônimo de Grand Luxo Super até onde sei. Outro carro que estava cheio de amigos nossos emparelhou com o meu e o motorista daquele comboio hétero disse: 'E esse Fiesta GLS?'
Levei alguns segundos para associar o GLS do carro com o GLS de Gays, Lésbicas e Simpatizantes que então, abarcava com folga todo os segmentos do mundo gay e então, caímos na risada. Talvez essa piada hoje não fosse motivo de riso e certamente não faria sentido ante a sigla LGBTQIA+ ou qualquer outra que estejamos usado para designar todos os matizes do movimento.
Tudo isso me veio quando li matéria de João Silvério Trevisan publicada na edição 33 da Revista Serrote onde ele questiona os limites e limitações da sopa de letrinhas que passamos a usar para identificar as identidades de gênero e orientações sexuais.
Tomando como base essa matéria (cujo conteúdo pode ser visto aqui) surge uma provocação: até que ponto a extensão alfabética para dar voz a sexualidades e identidades não normativas ajuda a dar voz ou pulveriza a luta pelos direitos?
Há aqui um paradoxo, penso eu.
Ao adicionarmos mais letras estamos efetivamente dando voz, espaço e reconhecimento a cada segmento que surge e necessita, obviamente, de representação, voz e lugar de fala e não deseja e nem deve, penso eu, delegar sua luta a outros segmentos que não entendem suas demandas ou realidade.
A questão da representatividade deve ser respeitada pois se antes convivíamos todos sob três letras, GLS ou qualquer outra designação usada de fora para catalogar e identificar os gays, fazíamos isso como parte da maioria gay cis que adotava tal sigla como suficiente para determinar nosso clã enquanto as demais identidades e sexualidades seguiam marginais e sobrevivendo das migalhas que o GLS ia conseguindo aos poucos.
Com o avanço da luta pelos direitos gays, outras sexualidades e identidades começaram a sair da sombra generalizante do movimento e passaram a demandar direitos mais específicos que atendessem suas necessidades e anseios, nada mais justo e com isso, o GLS ficou pequeno para acomodar tanta gente a passamos o LGBT, LGBTQ, LGBTQ, LGBTQIA, LGBTQIA+ e outros mais que soam como algum tipo de equação matemática impossível de ser solucionada.
O outro lado dessa moeda é a pulverização da luta pelos direitos e isolamento de grupos o que acaba gerando uma fragmentação do discurso e rachaduras muita vezes irreconciliáveis dentro do próprio movimento enquanto, do outro lado, do lado normativo, seguimos sendo vistos apenas como viados, bixas, sapatões e travestis, não se iludam que eles saibam diferenciar cada uma das letras da sigla que criamos para nós.
Com isso, a vantagem acaba ficando totalmente do lado oposto que tem maior facilidade em legislar contra nós já que seu discurso sim é unificado e não reconhece nossas divisões e sub-divisões. Pensando assim, a provocação/sugestão de Trevisan de encontrarmos alguma outra sigla, palavra ou denominação que seja capaz de abraçar e representar todos nós em cada uma de nossas sexualidades e identidades e que ainda seja capaz de aceitar adições futuras é algo a se pensar profundamente.
Inclusive o termo HOMOSSEXUAL que carrega em si um machismo derivado além de estar estritamente ligado ao sexo e não a identidade de gênero, deveríamos repensar essa palavra, aposentá-la e colocar as cabeças pensantes de todo o movimento, TODO MESMO, para encontrar ou criar alguma outra que seja mais real e afeta a todas as matizes que compõe nosso arco.
Da mesma forma, precisamos repensar a forma de militância de modo a manter as individualidades de cada célula mas unificar o discurso para fazer frente ao avanço conservador que nos devora cada dia com mais voracidade. Não seria a hora de colocarmos as 'diferenças' de lado e fazer uma frente única? Recriar essa sigla extensa que para os normativos não faz sentido algum saindo com algo que fosse mais direto e representasse a todos nós independente de qual letra pertençamos?
Posso incorrer num erro grosseiro aqui afinal, sou homem, gay, branco, cis então me foge completamente a realidade de luta de outras sexualidades e identidades. Talvez meu discurso seja uma utopia ou até mesmo uma ofensa aos mais radicais ou puristas mas, expresso estas opiniões despido de qualquer desejo de roubar a luta de quem quer que seja e imbuído do mais sincero desejo de que nos unamos para lutar contra um inimigo comum que está se aproveitando de nossas rachaduras para infiltrar seu discurso de ódio e nossa destruição.
Não valeria a pena baixarmos as armas que estamos apontando uns contra os outros e apontá-las contra esse inimigo peçonhento que nos ameaça?
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