A menina não acreditava ou acreditava mas não queria ou fazia que sim mas na verdade nem sabia se deveria mesmo acreditar em tudo aquilo e munida dessas incertezas resolveu que para matá-las precisava era sair dali e ver com seus próprios olhos para não ter de usar os dos outros que poderiam ser mentiras feitas apenas para enganar.
Num momento de distração, burlou a vigia severa dos pais e ganhou a rua que já ia escura mesmo que ali dentro a diferença entre dia e noite fosse imaginária e determinada pela intensidade das luzes artificiais.
Poucos ainda zanzavam pelas ruas, voltando para suas casas depois de mais um dia de trabalho ou do pouco trabalho que ainda existia entre eles. Verificou a pequena mochila que carregava onde uma pequena ração de alimentos deveria ser capaz de lhe sustentar até atingir seu destino, comida era luxo por ali e desde que se dera por gente sabia que racionar era viver.
Atenta, seguiu seu caminho sem dar olhar a quem cruzasse seu caminho, despertar interesse ou perguntas era perigoso e poderia aguar seu plano de fuga. Lembrou repentinamente de um livro que lera, há tempos, um dos poucos que ainda circulavam por ali, ela uma das poucas que ainda conseguia fazer sentido das palavras escritas, os mais novos desconheciam a utilidade dos livros, julgavam um prazer mórbido lidar com papel.
Pensou como a história do livro era parecida com a sua, com a deles, com a de todos ali mas moveu o pensamento pois tinha mesmo de focar em encontrar o caminho para fora dali, aquela história de pessoas presas num parque no meio do país e forçadas a crer que o tempo ali havia parado era apenas isso, uma história, nada mais.
Para achar seu caminho foi folheando a memória, andar com pedaços de papel era um risco desnecessário então, havia memorizado a rota que descobrira num pedaço roto de papel que descobrira por acaso entre as coisas dos pais.
Foi seguindo seu caminho até dar de cara com uma porta de aço. Parou. Pensou. Voltou a folhear a mentelivromapa. Arregalou os olhos como quem lembra de um detalhe importante subitamente. Apertou o botão que se escondia sob camadas eternas de pó e ferrugem.
Um gemido de estômago vazio de séculos se fez. Ela assustou e pensou correr. Olhou para os lados e para trás mas ninguém parecia ter dado fé do barulho. O gemido foi se tornando um ranger fino como se alguém descascasse metal com uma lixa, depois como se alguém tentasse escorregar por cabos com as unhas e finalmente cessou.
Uma porta se abriu a sua frente, Escuro dentro e ela mesmo com medo olhou para trás e entrou. Quando entrou uma luz meio morta de tão velha meio que acendeu e ela, assustada, olhou ao redor. À sua direita uma placa de aço carcomido lhe dizia zero um do s tres q tro cinco s is ete oit nov dez. Vasculhou novamente a mentemapa e apertou o último botão.
A coisa gemeu de novo como se tentasse acostumar com ela dentro de suas entranhas ou fosse devorá-la e ela se encolheu num canto. A porta se fechou com um ruído ríspido e a coisa começou a subir devagar como se não desejasse sair de onde estava.
Sob a luz morta dentro subindo, ela ficou pensando em como seria ao sair, o que seria ao sair, quem seria ao sair. Seria tudo como havia pensado, como havia falado com aquelas pessoas, como sonhava quando os pais a punham para dormir e ela dormia acordada sonhando com aquele outro lugar?
A luz deu um lampejo mais forte e do outro lado da coisa ela pode ver um cartaz meio rasgado velho e descolorido onde se podia ler algo como BR S L ACIM DE UDO, EUS AC MA E TO OS. Franziu o cenho, lembrava vagamente daquilo, como se fosse algo enterrado que nos deparamos sem querer ao remexer em coisas velhas demais ou mortas. Riu.
A coisa parou. Chiado forte. Gemido de satisfação como se tivesse lembrado qual sua função e estivesse feliz por executá-la. A porta soltou um silvo longo e abriu como se estivesse sussurrando. Uma luz clara, leve e quente atingiu seu rosto junto com uma lufada de um ar que ela nunca havia respirado, Puro. Sem contaminar, Incólume. Inocente. Intocado. Selvagem.
Ela saiu. A porta se fechou atrás dela com um silêncio solene.
A coisa começou a descer de volta ao seu leito profundo e ela começou a andar pelo país que nunca vira alguém nenhum.
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