19 de mar. de 2020

A festa das panelas

Pouco depois das dezenove e trinta começou, no convite dizia vinte e trinta mas os convidados chegaram mais cedo não que fosse problema, para aquela festa chegar antes não era crime mas sim chegar depois ou não chegar.

Primeiro aqui e ali um pam pam pam modesto, quase tímido mas decidido. Depois um outro talvez encorajado pelo primeiro e um outro mais convocado pelos já ingressos na festa que seria, excepcionalmente, feita das janelas posto que a doença real, não a imaginada, havia chegado também impondo uma clausura forçada aos convidados que, mesmo assim, não se intimidaram pois festa é festa não importa se na rua, casa, sacada, janela ou salão.

E o coro de panelas foi encorpado por gritos, palavras não de ordem mas de desgosto, gosto ruim de quem sabe que tudo está indo a pique mas não quer afundar sem proferir as últimas palavras nem deixar a música parar porque, como dizem, revolução sem música melhor nem fazer. Palavras de descontentes, que precisam gritar para que sua tristeza que não foi causada por eles seja ouvida e vista.

Já seria por volta das vinte e quinze quando a festa parece ter dado uma acalmada. Talvez uma pausa para engatar o grande momento, aquele em se apresenta a debutante nervosa que pela enésima vez tenta ser república, quando apagam as luzes para entrar o bolo cheio de velas ou aquele vídeo com memórias de um vida que parece nunca ter sido.

E então, vinte e trinta, tudo explodiu.

PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM PAM

E tudo virou orgia de gritos e panelas e janelas tocando Chico e pessoas mandando frases e gentes pedindo paz e vozes gritando fora e urros de jamais e berros de ele nunca e risos e choro e luzes e fogos e cacofonia de sons cofiando os ouvidos que gozavam de tanto ouvir o que já deveria ter sido gritado antes.

Não sei quanto tempo. Acho que foi muito. Deve ter sido pouco ainda. Aos poucos o povo janela foi se acalmando, voltando para a quarentenacional, campos de concentração de vinte metros quadrados e abastecidos de fome de sonhos de tempos menos caducos e cambaleantes, espirrando com o braço no cérebro e a boca aberta num esgar de alegria.

Recolhidos. Felizes. Fomos jantar e ver a quantas andava o vírus mandão que mesmo sem ter sido eleito passou a governar com dna de ferro nossas vidas. Pensando no que vamos estocar amanhã mas já estocados de um pouco de esperança.

Ao longe, algum iluminado sacou um trompete e mandou um olê olê olá lula lula.....

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