4 de mar. de 2020

Transparente

Creio que todos tenham vista a matéria do Dr. Drauzio no Fantástico de domingo último, caso não, clique aqui.

Não vejo TV aberta, não por preconceito nem nada mas simplesmente porque não há nada nela que me agrade ou mereça minha atenção, prefiro gastar meu tempo com outras coisas mas, eventualmente, aparecem matérias como essa que precisam ser vistas, compartilhadas e gerar uma reflexão em cada um de nós.

Depois de ver a matéria, a palavra que apareceu em minha mente foi PRIVILÉGIO. Sim. Essa mesma e em maiúsculas. Damos tanto por certo e imutável em nossas vidas que passamos a desvalorizar os pequenos milagres e benesses que usufruímos passando a um atitude de contestação permanente e insatisfação constante.

O carro que não temos, o emprego que não gostamos, o dinheiro que não temos, a roupa que não podemos comprar, a comida que não gostamos, as pessoas que não amamos, as filas que pegamos, o transporte que atrasa, a sociedade que não melhora, o governo que nada faz, futilidades que assomam um valor absurdo no mar de pseudo-problemas que gostamos de mergulhar.

Matérias como essa fazem pensar, provavelmente teremos esse momento de epifania por alguns momentos em que aquelas realidades tão desoladoras nos batem na cara para, logo em seguida, voltarmos às nossas lamúrias diárias e reclamações fúteis, normal, somos apenas humanos e eternamente insatisfeitos.

Mas, se pudermos nos apegar a esse sentimento e fazê-lo durar mais do alguns minutos, empregar o sentido de privilégio em nosso cotidiano e passarmos a perceber que fazemos parte da pequena parcela de pessoas que possuem acesso às oportunidades, vantagens e benefícios que a sociedade infelizmente reserva apenas a poucos, talvez possamos fazer nossas vidas e o mundo um lugar menos pior.

Pode parecer piegas, clichê, coisa de guru de auto-ajuda mas não, pense na história daquelas pessoas da matéria que, além de estarem encarceradas, são pessoas trans ou seja, carregam mais de um estigma que dificilmente a sociedade irá perdoar e, mesmo assim, elas estão vivas, tem alguma esperança e lutam para viver dia a dia pois para elas, o amanhã é algo tão incerto quanto o hoje e menos incerto do que ontem.

Para elas, as pequenas conquistas são de valor imenso, não dão nada por certo porque sabem que a vida, num estalar de dedos, pode fazer tudo virar pó ainda mais se você faz parte de qualquer minoria social que, tradicionalmente, terá menos chances, menos reconhecimento, menos oportunidades e mais preconceito, mais discriminação, mais ódio, mais nojo, mais julgamento, mais exclusão, e mais de tudo que é ruim, nocivo e humilhante.

Pense no caso de Suzy - não desmerecendo a história das demais - há mais oito anos sem receber uma visita seja de amigos ou família, sequer uma carta, um postal, nada. Pare um momento e pense se de súbito, seus amigos e familiares deixassem de falar com você por apenas uma semana, isso, apenas uma semana, como você se sentiria? E se fossem anos? O que você faria?

Pois ela está lá, isolada, náufraga social há oito anos, OITO ANOS, sem ninguém, sem uma pessoa para conversar, tocar, trazer notícias de fora, sem ter alguém que venha lhe dizer que te ama e que está lá te esperando, que te dê forças, que te apoie, que seja amigo, família, parente.

Suzy sossobrou o navio da vida e acabou sozinha naquela ilha para onde mandamos quem não queremos mais ver, lembrar ou ter por perto. Suzy é mais uma entre as centenas de milhares de náufragos que enfiamos nas cadeias porque bandido bom é bandido morto seja real ou figurativamente. Não importa quem está lá desde que lá permaneça.

Suzy é a nova leprosa, ela e suas amigas são a nova epidemia não o coronavírus, uma epidemia que vem matando mais e mais a cada ano incentivada por autoridades que preferem fazer vista grossa e direta ou indiretamente incentivam esse massacre. Suzy e suas amigas são vítimas caladas de uma estatística que só aumenta e de uma sociedade que prefere vê-las mortas do que ajudando a fazer um país melhor mesmo que seja por apenas viverem suas vidas.

Eu te peço desculpas, Suzy. Por mim, por aqueles que eu conheço e por todos mais por esses oito anos de hiato social. Te peço desculpas por sermos tão cegos e hipócritas, por sermos tão escrotos e individualistas. Te peço desculpas por reclamar de banalidades, por me sentir um nada, por me sentir injustiçado ou preterido na vida. Te peço desculpas por reclamar daquela comida que não gostei, por fazer pouco daquela pessoa que vi na rua, por falar mal de quem não conheço, por julgar sem entender.

Eu te peço desculpas, Suzy. Por estar aqui fora achando que estou livre e ter pena de você que está aí presa e sozinha há oito anos. Quem está preso sou eu, Suzy. Quem está sozinho sou eu, Suzy. Quem está precisando aprender algo sou eu, Suzy.

Saia daí e venha nos ensinar, por favor!

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