25 de mai. de 2020

O umbigo do mundo

Acordei. Pelo menos acho. Deve ser. Ouvi buzinas e não costumo sonhar com buzinas, já sonhei com cornetas, línguas de sogra que eram línguas mesmo mas, buzinas, nunca. Então estava acordado.

O quarto abafava o ar que entrava pelas frestas da veneziana. Eu olhava para o teto tentando sincronizar o som das buzinas com as sombras que eram refletidas. Nunca fui bom nisso, aliás, nunca fui bom em sincronizar nada, nado mas totalmente sem sincronia aliás, faz tempo que não nado, nada, meio que cansei, qual o propósito de ir de um lado para outro num mar de azulejos que não leva a lugar algum? Água não deveria levar a gente para algum lugar? Ar não que não se pode sentir, salvo o vento mas ar mesmo, não.

Levantei. E senti algo estranho escorrendo na barriga, como um vazamento, daqueles de pia, sabe? Fio de água que nunca se consegue descobrir de onde brota. Mas no meu caso sim, era do meu umbigo. Olhei para ele e corria um riozinho fino, passei o dedo e levei ao nariz. Umbigo tem cheiro, um aroma peculiar, característico, nenhuma outra parte do corpo cheira igual, talvez frieiras mas ainda assim não tem o mesmo buquê do umbigo. É um cheiro azedo que é rançoso que é doce que é patê que é queijo que é leite talhado que é algo sei lá. Pode ser algum cheiro que fica do cordão, cheiro uterino, de mãe, talvez as mães cheirem assim por dentro.

O meu não tinha esse cheiro.

Senti cheiro de água do mar, peixe vivo, aves marinhas, pescador, cidade de litoral, colônia de pescadores, velhas almiscaradas sentadas em varandas de jacarandá ao por do sol, cachaça correndo balcões de madeira, peixo frito e purê. Estranhei. Deve ser algum resquício de sonho, ainda devo estar no limiar, só pode, ontem dormi com fome, ainda devo estar sonhando com isso, comida, é isso.

Mas não.

Fui ao banheiro. Luz acesa, buzinas ainda lá fora e o teto fora de ritmo. Olhei bem, no espelho, e o fio de água ainda lá, corria reto do umbigo, passava pelo púbis e descia meio torto pelo pau até gotejar minúsculo no prepúcio. Olhei com mais atenção e assustei. Abri a gaveta e procurei uma lupa, quem tem lupa no banheiro? Eu. Às vezes preciso procurar algo que cai no chão e hoje em dia tudo é tão pequeno, cai e eu não consigo encontrar sem uma lupa então tenho uma, eu derrubo muitas coisas, menos a lupa.

Aproximei a lente do umbigo quase numa auto-felação. Meus olhos, melhor, um deles que fixava na lente, abriu feito um buraco. Ao redor do meu umbigo havia uma cidade. Sim. Uma cidade, dessas onde as pessoas vivem, nascem, dormem e morrem, não necessariamente nessa ordem. 

Pequenas casas ao redor do buraco do meu umbigo que lhes servia de baía. A água que escorria era seu rio, pequenos barcos subiam e desciam por ela, descendo iam até o final do curso na cabeça do pau, subindo, caiam dentro do umbigo para sempre. Engraçado. Eu nunca senti nada, tinha navios dentro de mim e nunca senti nada, nem uma âncora, nem um naufrágio, nada mesmo.

Havia também uma igreja, bem no meio se bem que é complicado determinar onde fica o meio de um círculo e o umbigo é um mas, ela estava lá, no meio. E havia um mercado e um bar eu acho. E pessoas circulando pela cidade, caminhando, empurrando carrinhos de compras, só não vi carros mas acho que ouvi vozes. Pelo menos acho que eram vozes. Tentei apurar o ouvido para captar o que diziam mas as buzinas lá fora não deixavam. 

Ouvi a igreja badalar os sinos, baixinho, como se fosse um ruído de algo muito distante que nem mesmo poderia lhe atestar a veracidade. Vi as pessoas indo para lá, missa provavelmente, os navios seguiam indo e vindo, entrando e saindo do meu umbigo, estariam levando ou trazendo coisas? Não sei qual dessas hipóteses me amedrontava mais, e se levavam para fora algo que me fizesse falta depois? E se estavam trazendo para dentro, não poderia ser algo que me fizesse mal?

Sonho, só pode. Fechei os olhos com força. Contei até dez e os abri. Olhei para baixo, pela lupa mas lá estava a cidade, deveria procurar um médico mas qual? Um clínico? Mais certo um psiquiatra, doutor, há uma cidade vivendo no meu umbigo. Curvei-me ainda mais em contorcionismo para tentar, através da lupa, divisar mais algum detalhe da cidade e seus habitantes, fiz tanto esforço que minhas costas estalaram e, repentinamente, senti como se fosse um tatu daqueles que viram uma bola.

Fui meio que desfalecendo caindo dentro de mim, no umbigo, sem lupa, já não a tinha nas mãos. Fui caindo assim no umbigo que era meu mas da cidade também até dar de cara com o chão de pele que tinha pelos por árvores. Levantei-me, limpei as mãos e meu corpo nu, estava nu, isso não são modos de se apresentar numa cidade que vivia no meu umbigo, tudo bem, o umbigo era meu mas modos são modos e eu os tenho.

As pessoas me cercaram, outras seguiam para igreja ignorantes de minha chegada. O fato de estar nu não parecia incomodar ninguém, as pessoas foram me acolhendo e me tocando, como se já soubessem quem eu era e esperassem minha chegada. Apavorado, nu e dentro de mim mesmo perguntei.

Onde estou? Que lugar é esse, por favor?

As pessoas que me cercavam olharam entre si meio que atônitas, como se a minha pergunta fosse descabida ou até mesmo absurda e então, uma delas olhou-me nos olhos e disse.

Bem-vindo! Aqui é o umbigo do mundo!

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