26 de mai. de 2020

Memórias elétricas

Não sei bem porque mas hoje, lembrei de algo que se passou comigo e meu pai.

Nada especial causou tal lembrança, ao menos não de forma consciente. Simplesmente a lembrança pipocou em minha mente. Deve ser efeito da quarentena, as pessoas andam sentindo, sonhando e pensando coisas bem estranhas esses dias.

A lembrança, a ela.

Meu pai trabalhou por grande parte de sua vida no Departamento Aeroviário do Estado de SP e parte de sua incumbência era, regularmente, viajar para inspecionar aeroportos pequenos e aeródromos no estado. Em tais viagens, a família quase sempre ia a tira colo pois a hospedagem era bancada pelo estado e, quando digo bancada pelo, estado leia-se que ficávamos em alguma casa ou apartamento fornecido pelo estado sendo todo o resto custeado pela família. Algumas vezes, na impossibilidade de acomodação de todos, meus pais pagavam o hotel de seus bolsos.

Fizemos muitas viagens assim. Lembro de uma feita de trem para alguma cidade do interior que me foge o nome, quando viagens de trem ainda existiam. As acomodações na cidade não eram das melhores mas lembro claramente da pista de pouso curta e levemente inclinada do aeroporto e de um dia em que um boeing 737 da VASP pousaria ali. Lembro de ter ficado ansioso, esperando o avião como se fosse o bom velhinho e, quando ele finalmente pousou, tenho clara lembrança dele percorrer toda pista e, ao final dela, manobrar para retornar e parar no local determinado.

Mas, essa não é a lembrança que me assaltou. 

Certa vez, passamos as férias em Ubatuba e meu pai aproveitou para inspecionar o aeroporto local que atendia, então, apenas aviões de pequeno porte. A pista era de grama e a o aeroporto em si consistia de uma casa de madeira que funcionava como balcão de atendimento, torre de controle e tudo mais. Ficamos alojados numa casa localizada dentro do terreno do aeroporto e no lado oposto ao da casa-torre de controle. A casa era bem simples, lembro vagamente minha mãe não muito satisfeita com as condições mas, tentando fazer de conta que não se importava.

Minha mãe nunca foi muito afeita a cozinhar, só quando realmente estava a fim de comer algo específico ou preparar um prato diferente principalmente doces. Acho que ela e meu pai tinham sérios problemas quanto a cozinha porque meu pai, vindo de uma família que se virava mais do que bem com as panelas, parecia sempre botar defeito nas aventuras culinárias de minha mãe até o ponto de ela dar um ultimato: se sua comida não lhe agradava ele que a fizesse a seu gosto e, depois disso, raras vezes minha mãe se aproximava da cozinha.

Em Ubatuba, a solução foi comprar as marmitas do Jorge, um senhor japonês que de segunda a sexta pontualmente ao meio-dia entregava o cardápio do dia naquelas marmitas de ferro encaixadas uma sobre a outra e presas por uma espécie de garfo de metal. As marmitas obedeciam uma ordem de cima para baixo: salada, arroz, feijão, mistura do dia. Aos finais de semana, comíamos fora, grande acontecimento.

Nos dias que passamos por lá lembro que meu pai meio que se tornou um tipo de caiçara. Andava praticamente o tempo todo sem camisa, trajando apenas uma bermuda surrada presa por uma corda na cintura - sim, uma corda - e chinelos. Minha mãe ficava horrorizada, talvez tivesse algum tipo de arrependimento do casamento se bem que eu já era meio grandinho e meu irmão já havia nascido então, qualquer tipo de arrependimento deve ter sido decorrente do tempo em si e tornou-se algum amargor tácito e controlado.

Nossos dias se resumiam a praia e ficar vendo os aviões saindo e chegando, os pilotos nos tratavam bem e eu sempre fui fascinado por aviões. Lembro que um deles, apelidado por meu pai de 'Zequinha Masca-fumo' pelo cacoete que lhe afligia e fazia parecer que estava eternamente mascando algo, nos convidou para ir até São José dos Campos fazer um bate e volta. Minha mãe não quis ir e achou meu irmão novo demais para tamanha empreitada então, embarcamos eu, meu pai e Zequinha no monomotor e partimos.

Quem nunca voou em aviões pequenos não sabe a experiência que perde. Se em grandes jatos a sensação de movimento é quase nula e não se tem noção de espaço já que estamos confinados, em um avião pequeno parece que flutuamos no céu, as nuvens estão ao lado e o avião parece sumir, você está voando sozinho, sem nada para lhe proteger ou auxiliar, foi uma das experiências mais belas que passei.

Mas, o cerne dessa minha lembrança não são esses eventos que relatei ainda que eles sejam parte da mesma narrativa memorial.

Um dia, em Ubatuba, fomos a um parquinho. Desses de cidade pequena, digno de filme de terror B e onde a segurança é um nome tão ou mais vago que um assobio que se perde no vento mas, quando se é pequeno numa época em que os perigos nunca foram mapeados ou pensados, tudo é mistério e aventura.

Quis ir no trem fantasma ainda que esse brinquedo me aterrorizasse, coisa de criança que tem medo mas não tem vergonha. Insisti e meu pai, quase sempre indulgente com minhas vontades, cedeu e decidiu me acompanhar.

Compramos o ingresso e fomos para a fila. Não lembro como eu estava vestido mas meu pai estava no seu uniforme caiçara: chinelos, bermuda cáqui segurada na cintura pela indefectível cordinha e sem camisa. Minha mãe ficou com meu irmão, seus instintos maternos proibiam que ele fosse naquele brinquedo, mães sendo mães.

Sentamos no carrinho e ele começou seu trajeto. Eu sinceramente não tenho lembranças do que vimos lá dentro mas, deve ter sido o padrão para trens fantasmas desse tipo de parque, alguns esqueletos, gritos, uivos, luz negra, teias de aranha, vampiros e múmias; portas batendo e abrindo do nada e por aí vai, sem surpresas.

Mas, em alguns momentos, sentia que meu pai dava uns sacolejares, como se realmente assustado ou tendo algum tipo de tremor. Não sabia do que se tratava, não lembro de fiquei com medo por ele poder estar passando mal ou, pior, estar com medo de algo que me apavorava afinal, se ele, adulto, estava com medo, o que eu, criança, poderia fazer?

Ao final do percurso, saímos do carrinho e lembro dele me perguntar.

Você não sentiu um choque?

Choque?

Sim, choque, bem leve, choque elétrico mesmo, não sentiu nada?

Não, não senti nada.

Acho que deve ser parte do show porque eu senti várias vezes.

Não lembro bem como desvendamos o mistério dos choques fantasmas mas, a causa deles era bem mais terrena do que pudéssemos conceber: meu pai estava com os pés e chinelos molhados, não sei porque enquanto eu estava devidamente calçado. Aparentemente, havia algum fio desencapado no carrinho que, em contato com os pés molhados de meu pai, fechou o circuito e deixou a corrente passar causando os choques.

Pode parecer uma lembrança besta mas, sei que rimos muito disso naquele dia e mesmo anos depois ainda lembrávamos desse incidente. Porque ele me pegou assim do nada? Não sei dizer, talvez algum evento randômico da mente, algo inconsciente, vai saber.

Sei que me lembrei e um pequeno sorriso brotou no meu rosto.

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