24 de jun. de 2020

eu sinto que seu amor já foi algo melhor

pregava um prego, na parede que é onde se costuma pregar um prego mas, parecia que não era lá mas em mim, cada martelada não acertava a cabeça do prego mas a minha, na testa, e fazia o caminho até o coração, latejando pelas têmporas, olhos, nariz, boca, queixo, pescoço, garganta e chegando lá, onde tudo martela a cento e vinte marteladas por minuto.

eu dava marteladas lentas, precisas, mirava o prego mas tinha em mente outra coisa, foi somente quando, distraído, acertei o dedo e não o prego que notei não estar pensando em acertar o prego mas você. aquele prego era você, não era um prego, feito de metal, fino e de cabeça chata, feito para ser martelado, pregado, usado para fixar algo em paredes ou em qualquer outra superfície, os mesmos pregos que prenderam o messias na cruz, os mesmos pregos que pregaram eu e você.

com pequenas diferenças.

você não era feito de metal, era fino ou tinha a cabeça chata ainda que fosse obtusa e precisasse de umas boas marteladas para funcionar e dar conta das coisas. já eu, não era nenhum messias, não tinha cruz para ser pregado só se considerar a vida que levávamos como algum tipo de cruz, seria? acho que sim mas, se eu não era messias e você não era prego então não havia cruz e, se não havia cruz, quem nos martelava era a vida mas a gente achava que éramos nós mesmos, pregando, tentando pregar o amor em nossas paredes, fracas, rachadas, cheias de falhas, trincas e lascas.

levei o dedo martelado, latejando, latejar no coração, mais batimentos, à boca e o sorvi com gosto, feito criança, infante, eu era um, desfeito, sem doce, sem nada, aquele dedo na boca latejando era um pirulito de alguma espécie que eu chupava com ganas de que fosse você, aquele prego que eu deveria ter pregado mas nunca acertei fazer o furo na parede da gente.

chupei o dedo com mais afinco, fechei os olhos, ele era apenas um dedo, chupei então o martelo, ali em minhas mãos, assassino de pregos, de vidas, que valor pode ter uma coisa que passa a vida dando na cabeça dos outros? então, qual o valor do amor? ele fica dando na cabeça dos outros, martela também, pregos, fundo na gente até sangrar e quase sempre acerta e tirar os pregos que ele coloca é difícil, quase impossível e a remoção geralmente traz mais dor que alívio mas a gente tira assim mesmo.

o martelo não resolveu nada, de chupar eu digo, de pregar eu já tinha desistido mesmo. olhei para o prego na parede, no meio do caminho entre a parede e minha vida, mais uma martelada e estaria pregado, para sempre, não, para sempre não que não há prego que fique pregado para sempre, a gente sempre tira, arranca fora, o que se pendura pode até ser velho, ou novo, mas os pregos tem de ser sempre novos, como se ficassem cegos depois da primeira pregada, descarte, desuso, lixo, igual a gente pregado de amor, ou não.

peguei o prego e o puxei, não usei o martelo, queria sentir meus dedos em volta daquele pedaço fino e pequeno de metal frio. ele resistiu, acho que já estava meio que pregado já mas, não me dei por vencido, já arrancara muitos pregos muito mais difíceis que aquele, só uma questão de jeito e, finalmente, ele cedeu e saiu deixando um pequeno buraco na parede.

olhei para o buraco, pequeno, quase imperceptível, de longe nem se poderia dizer que a parede tinha um buraco onde antes havia um prego e até alguma coisa pendurada nela mas, ele estava lá, olhando para mim com seu olho único e eu para ele com meus dois olhos. fiquei pensando em quantos buracos não abrimos, quantos não fechamos, quantos deixamos com pregos sem nada pendurado, pensei nisso e pus o prego na boca, chupei devagar e com calma, comecei pela ponta e fui chupando devagar até chegar na cabeça chata do prego, deixei ela para fora enquanto chupava o resto do prego, o gosto de metal tomando a boca, a língua, o céu da boca e descendo pela garganta para martelar até o coração, aquele prego sendo martelado até o fim dos dias.

chupei a cabela do prego para dentro, deixei o prego dançar um pouco na boca, acho que machuquei alguma parte dela, deixei juntar bastante saliva, para enferrujar, derreter, decompor o prego e o engoli, senti passar pela garganta e tomar o caminho do coração, não do estômago e fiquei feliz, peguei o martelo e comecei a martelar meu peito.

de forma lenta, pausada, concisa, certeira, gentil até mas determinado a sentir que o amor ficaria dessa vez pregado para sempre ali.

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