19 de jun. de 2020

o homem que cantava parabéns

Contou os anos ali deitado, pareciam mais, sentia-os menos. 


Ainda deitado, olhou para a janela e invejou a garoa caindo lá fora, depois, com certo esforço, levantou e sentou-se na beirada da cama, os pés tocaram o chão frio e um tremor percorreu seu corpo como algum tipo de lembrança de que ainda seguia vivo ou talvez morto, a diferença deixara de existir há tempos já, quem sabe se estaria vivo, morto ou ambos?


Correu os olhos pelo quarto para ter certeza de que tudo estava em ordem, era uma data especial e tudo precisava estar arrumado e no lugar. Sentiu o pijama mais pesado, o ar mais frio e o tronco mais arcado que o normal. Sobre a mesa localizada no centro do quarto, uma bandeja com um prato de sopa da noite anterior que ele recusara mais por desgosto que por desfeita, um copo de suco cuja cor impossibilitava identificar o sabor, meio pão e uma maçã que lhe fez lembrar de tempos quase dourados. Seu apetite sempre definhava nessa época do ano.


Com um pouco mais de coragem, saiu da cama e foi ao banheiro. O peso dos anos lhe fazia difíceis tarefas simples como urinar ainda que fosse um dos poucos prazeres que ainda tivesse, talvez o único mas, o que eram prazeres? Ele tinha alguma lembrança vaga, como um tipo de película que ia aos poucos se descolando no fundo da mente. Banho rápido, preferia ter pouco contato com o próprio corpo. Pausa no espelho, conclusões incertas em cada marca constatada, um mar de sentimentos que ele gostaria de esquecer mas que insistiam em lhe dar lembranças, barba feita mais pela ocasião que por necessidade ou desejo.


De volta ao quarto, troca de roupa, veste o único terno que ainda tem e que só vê a luz do dia naquela data assim como os sapatos, engraxados à exaustão na noite anterior. Dá o nó na única gravata que possui deixando-a exatamente até a cintura, aperta bem o cinto e sente-se finalmente pronto, vestido para a ocasião, só lhe resta aguardar e isso ele sabe fazer bem.


Batidas à porta do quarto. Ele se levanta e abre a porta.


'Sua encomenda chegou...' diz a mulher do outro lado segurando uma caixa de tamanho médio. Ele recebe a caixa como se ali estivessem as cinzas de um santo e agradece à mulher em sua soleira, agora era entre ele e a caixa. Ele a coloca em cima da mesa, senta-se diante dela com reverência e começa a abri-la como se desembalasse um recém-nascido. Retira um bolo pequeno, coloca-o com precisão científica no centro da mesa.


O quadro não se completa e ele lembra repentinamente do detalhe faltante. Levanta-se, abre a gaveta da mesa de cabeceira, saca um par de velas e uma caixa de fósforos. Deposita as velas sobre o bolo de forma tão delicada que nem chega a rachar-lhe a fina cobertura de glacê. Risca o fósforo, acende as duas velas ritualisticamente e após uma pausa ínfima, começa:


'Parabéns prá você, nesta data querida.....'


Canta baixo a princípio. Aumenta a voz aos poucos, sempre repetindo a mesma melodia, sua voz vai crescendo, começa então a sair do quarto e ecoar pelos corredores. Acaba por atingir o quarto ao lado onde uma mulher, intrigada com a cantoria repentina, não resiste e pergunta à outra que se encontra ao seu lado.


'Desculpe’ diz ‘mas o que é isso? Quero dizer, essa cantoria? É normal?'


A outra olha com surpresa, assume um ar reprovador.


'A senhora não costuma vir aqui muito não é?'


Ela enrubesce, olha para os lados, para baixo e responde constrangida.


'Não tanto quanto gostaria, venho sempre que posso, sabe como é a vida da gente...minha mãe parece estar bem aqui, quero dizer, ela recebe todos os cuidados, é bem cuidada...' e aponta para a mulher deitada alheia na cama a receber cuidados da outra.


'Eu entendo’ responde a outra enquanto tira o termômetro da mãe com o olhar distante no leito ‘quase todos acham que aqui eles estão bem...' acrescenta fria.


'Mas, o que é isso enfim?' diz ela desconversando e deslocando o incômodo para a cantoria incessante que vem do quarto ao lado.


'É dia 26' responde a outra ‘Todo dia 26 ele faz a mesma coisa.'


'Canta parabéns?' retruca ela receando ser infectada por alguma doença senil.


'Faz isso há quatro anos, desde que sua mulher morreu’ diz olhando para o termômetro.


Segue um silêncio frio. Ambas ocupadas com seus remorsos. 



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