18 de jun. de 2020

Rapadura é doce mas não é mole não

Rapadura é doce mas não é mole não.


Lembrava da frase toda vez que chegava atrasado ao trabalho e tinha de enfrentar o chefe com cara de data de validade vencida e os colegas com aqueles sorrisinhos matreiros. Tomava um café breve na copa onde ouvia os mexericos da empresa, os de sempre, como fulano se vestia mal, como outro era o queridinho do chefe, qual seria o final da novela, o placar dos jogos e como os salários eram uma merda.


Ia para sua mesa com medo do telefone que lhe arreganhava os dentes a cada toque. Sentado, olhava para o computador com um misto de tédio e raiva o que lhe dava uma tremenda dor de cabeça e lá se ia goela abaixo a primeira das diversas aspirinas que tomaria durante o dia e que, junto com a comida do refeitório e o café requentado da garrafa térmica, lhe davam uma azia constante que nenhum antiácido conseguia por fim.


Do colega ao lado, nada ouvia de certo ou concreto, apenas as mesmas queixas sobre como o time andava mal e não chegaria na final do campeonato, como a secretária estava ficando um filé depois que entrara na academia, como o banheiro ficava fedendo depois que o office boy usava, como o vale não dava para nada e como aquele carinha da copiadora parecia meio viado.


Da secretária, ele só sabia o nome e uma foto onde os dois apareciam abraçados, ela com cara de coluna social e ele com cara de sala de espera de dentista. Detestava festas e confraternizações como as da foto, lembrava do colega do lado bêbado e lhe confessando pecados que ele não podia absolver. Do time de futebol ele não sabia nem qual era o campeonato, o time ou qual seria a final ou para que ela servia. Do office boy ele sabia só o nome e que ele sempre exalava um cheiro forte de cigarro, sabia também que ele tinha o péssimo hábito de urinar fora do mictório e que talvez se masturbasse no banheiro, uma vez achou tê-lo visto pelo reflexo no piso. Do rapaz da copiadora, ele não sabia nada, só que se fosse viado ou qualquer outra coisa de nada iria mudar sua situação ou na situação de todos ali.


E haviam reuniões intermináveis onde assuntos eram discutidos por horas a fio só para concluírem que precisariam agendar outra reunião para tentar descobrir porque precisavam de tantas reuniões. Durante essas reuniões, pensava em músicas, filmes, fazia listas mentais de compras e afazeres que nunca se concretizavam, imaginava as pessoas ali nas mais diversas e vexatórias situações, ficou surpreso consigo mesmo quando num desses ralos de tempo foi capaz de conceber uma situação complexa envolvendo todos os participantes ao mesmo tempo e riu, ninguém notou seu riso.


Às vezes pediam sua opinião sobre algo mas ele enganava bem. Era fácil, bastava usar uma daquelas frases prontas e comuns com a entonação correta e certo ar de superioridade ou então, aguardar algum comentário alheio e logo em cima dele reordenar as palavras do outro dando a todos a impressão de que entendera tudo e de tinha opiniões a respeito do que era tratado. Chamava isso de efeito papagaio, imaginava-se dando biscoitos na boca de cada um a cada palavra que proferia e vendo as expressões de aprovação que faziam.


Quase sempre ficava até mais tarde, depois que todos já haviam ido embora. Daí podia ver alguma putaria na internet ainda que dissessem que era monitorada o que ele achava pouco provável e mesmo que o fosse não dava mínima.


E podia então escrever seus pequenos contos, secretos numa pasta protegida por senha em seu computador. Ali esvaziava o dia de trabalho, esquecia as fofocas da copa, as lamúrias dos colegas e as divagações zen-budistas do chefe metido a esotérico.


Escrevia sobre coisas simples, que via na rua e no trabalho. Não mostrava a ninguém pois além de não acreditar que prestassem não queria ninguém lhe dando palpites ou sugestões ao menos das pessoas dali. Assim, escrevia seus pequenos mundos em segredo tendo por críticos apenas a máquina de xerox e a impressora.


Rapadura é doce mas não é mole não, lembrou da frase de assalto, atraso, novo e ainda assim o mesmo.


Ele não gostava de rapadura.


Definitivamente detestava rapadura.


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