17 de jun. de 2020

Simpatia

essa comida está sem sal...

olhei para ele, inócuo, incapaz de expressar qualquer resposta ou sentimento. sal. estava sem sal? pois. lhe passei o saleiro de alguma forma entre gentil e decidido, quase afronta.

quis dizer que está sem gosto, não sem sal.

sem gosto? Entendi. Talvez não fosse a comida, eu acho. A essa altura, poderíamos suspeitar de qualquer coisa, uma frente fria vinda de algum lugar, uma chuva repentina, a alta do dólar, o estouro de alguma bolha econômica em algum país distante, o farfalhar das asas de um urubu atento. se houvesse de identificar a causa de sabor das coisas, deveríamos tê-lo feito há anos, quando ainda tínhamos algum gosto ou algo que o valha, quando as papilas gustativas ainda não tinham sumido, quando ainda sabíamos distinguir os gostos um do outro de nós.

faço com mais tempero na próxima. e olhei para o prato mudo, com ar de sobra deixada sobre a mesa, vestígio de alguma refeição ingrata, restos quase mortais de uma vida já não vida mas incapaz de morrer, zumbi, sonâmbula, vagando pela casa na busca de algum tempero, especiaria, condimento.

dia seguinte a mesma coisa mas dessa vez, não houve reclamação do sal ou gosto. apenas um esgar súbito do outro lado da mesa denotando que a comida falhava em cair da boca no esôfago de lá para o estômago, intestinos e excreção, antes fosse excretada ali mesmo, pela cara que fez, esse era o gosto. não houve palavras, não se passou o sal, não se pediu pimenta, não se falou de comprar nenhum condimento, apenas comemos aquela pasta insonsa de vida.

e cansei, resolvi mudar. se ele queria gosto, teria gosto. usei a mesma cueca por dias, semanas acho, quase mês. durante esse tempo, ele seguiu calado, reclamando mudo da falta de sal, de gosto, de gostar, cada refeição um banquete de nada, sem sabor, apenas maxilares subindo e descendo, num mastigar lento e resignado, bovino, nada mais.

achei que reclamaria do cheiro da cueca fétida, exalando urina, porra e suor mas disso ele não reclamou, talvez gostasse mas nunca expressou nada, nem sim, nem não, nem nojo, nem prazer, algum tipo de tesão causado pelo cheiro, nada, só reclamava pelos olhos quando comíamos, refeição diária, sina, pecado da gula faminta que nunca fora saciada.

quando senti que não havia mais como seguir vestindo aquela peça de roupa nojenta, tirei-a, quase vomitei, o cheiro que emanava deixaria até um coveiro experiente com engulhos. levei-a até a cozinha, quase vomitando a cortei e piquei em ínfimos pedaços, quase microscópicos e misturei na comida.

naquele dia, ele elogiou meu tempero, a comida, não reclamou do sal, nem de nada, repetiu e lambeu o prato.

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