10 de jun. de 2020

Todos os olhos são pardos ao entardecer

o sol caiu como se houvesse tropeçado nas nuvens que fugiam do entardecer. a noite já batera o ponto e aguardava impaciente seu turno, cansada velha de guerra e o sol, caído, sabia que mesmo dolorido, teria de levantar no dia seguinte para render a noite que há tempos não se usava para dormir, triste fim de quem trabalha à noite.

você viu ali? não vi, o que foi? olha ali aquela mancha e apontou na direção do sol caído, desmaiando tons de laranja. não vi nada e apertou os olhos buscando o que o outro lhe mostrava. mas está ali disse o outro mantendo o dedo em riste. ali o que? onde? não vejo nada! e colocou a mão sobre os olhos para tentar fazer sombra contra a claridade difusa do fim de dia.

aquela mancha, não estava ali quando viemos ontem. baixou o dedo que já estava cansado.

que macha, criatura? o outro forçava a vista quase fechando os olhos para tentar colocar em foco o que deveria estar lá.

aquela ali que você diz não ver mas que está lá para qualquer um ver. disse ensaiando um amargor.

não há mancha alguma, oras! e soltou o ar bufando.

ah, então são meus olhos, não é? eu que não vejo mais direito, ficando cego, é isso, vejo manchas em todo canto, já não sirvo mais nem para olhar um por do sol. e soltou um grunhido meio primal, meio de raiva, meio de rancor, meio de praxe.

não disse isso, pare de birra que estou olhando para o mesmo lugar e não vejo mancha alguma. sentenciou solene enfático.

então são os seus olhos. e olhou para ele feito oftalmologista.

meus olhos? perguntou.

sim, você deveria ver a mancha, seus olhos estão com problema, tem de ir ao médico. voltou a assumir ar medicinal.

sempre vi muito bem e você sabe. mancha, muito que bem, deve ser coisa da sua vista, isso sim! repeliu com um gesto de fastio.

sempre eu que tenho os defeitos, você fica com todas as qualidades, aposto que o sol está se pondo assim meio torto por minha causa. apontou para o sol caído que já ia se retirando calado.

torto? e essa agora? além de mancha tem sol torto? tu está e com os miolos fracos. e acenou a mão num gesto de descaso.

agora além de cego sou doido, é? e lhe deu um tapa leve no braço a título de repreensão.

não disse isso. passou a mão onde sofrear o golpe, de leve, manso, carinho.

disse sim mas tudo bem, eu sempre fui o cego e o doido mesmo. respondeu arisco.

e eu sempre fui só doido de ter ficado com você porque cego eu nunca fui, sabia como você era. afirmou com voz arrependida em tom tardio, há coisas que o arrependimento ocorre no ato mas só se manifesta muito tempo depois.

ninguém pediu nada aqui, só queria que pelo menos uma vez você visse o que eu vejo sem me questionar ou chamar de doente. disse quase num tom triste, meloso para mimado, como quem pede um doce que sabe que não vai ganhar.

e quando fiz isso? pergunta seca, direta, linha reta.

quer que eu conte por ordem alfabética ou cronológica? em ironia.

além de cego e doido é humorista agora. em ironia também.

eu tenho de ser, pra viver com você! não basta ser cego e doido, tem de ser palhaço. acabara a ironia, na falta se usava o sarcasmo.

faz favor, para com isso, não tem macha, não tem sol torto, não tem nada, será que podem os aproveitar um por do sol em paz? veredito, apaziguar, a defesacusação descansa.

se você visse com meus olhos entenderia. saiu com remorso, medo, cansaço mas quase como um pedido, pedir é amar.

e se você visse com o meus também. saiu com certa candura, acolhida, pedido de paz, cachimbo, armistício.

olharam-se por um átimo, um raio atingiu a ambos e dilatou suas pupilas e plantou em suas mentes uma ideia absurda mas que fazia sentido para resolver o dilema que se punha ali naquele entardecer. 

seguraram a cabeça um do outro, sentiram algo que estava cego há tempos partir em dois e então, arrancaram os olhos um do outro e os trocaram de órbitas. olharam para o sol já quase indo embora, morrendo devagar enquanto a noite o jantava.

sorriram e foram embora abraçados.

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