9 de jun. de 2020

O Anão

UM

A senhora fique tranquila que aqui zelamos e muito pelo bem estar dos pequenos, temos câmeras em todos os ambientes, a entrada permanece fechada sempre, há seguranças monitorando os arredores e temos duas 'tias' por criança! As refeições são balanceadas, preparadas por uma equipe de nutricionistas e as áreas comuns, como pode ver aqui no playground, são cuidadas e os brinquedos promovem a interação e integração entre os pequenos além de resgatar o lúdico que, como sabe, hoje praticamente se perdeu e...


Mas e aquele anão ali? Rasgou a mãe já meio cansada da extensa lista de benesses que lhe custaria boa parte do orçamento mas, nos tempos modernos, há que se pagar desde de doce idade pelas vantagens que antes eram aleatórias e muitos infantes já saem dos berçários pelo preço de formandos. 


A diretora ajustou-se em seu terninho chumbo justo, aproximou ritmicamente os pés embalados em sapatos de marca, olhou ao redor como a procurar pelo item sem sabê-lo ali até que finalmente deparou-se com o artefato, largado num canto do playground, numa área onde pouca grama vingava jazia o anão; desses de jardim, resquício de outros tempos, herança de outras eras das quais ela mal se recordava. Já estava ali desde que assumira a direção da escola.


Coberto de terra, o anão parecia ter vivido tempos mais dignos. Hoje, mal se distinguiam sua calça vermelha e camisa azul permanecendo relativamente incólumes apenas a touca rubra e barba branca. Parecia coxo da perna direita talvez carcomida pelos anos e seu semblante, se um dia foi sinônimo de alegria ou bonachão, atualmente mais lembrava um pedinte imerso em sonhos etílicos.


Estamos revitalizando aquela parte. Respondeu a diretora. É um anão de jardim comum, sempre esteve aqui, as crianças gostam, tentamos tirar uma vez mas elas sentiram falta, deixamos ele aí então. Terminou com certo desprezo, como se a relíquia fosse a única parte decadente de toda a instalação, um dente encavalado que não se podia extrair, habitua-se com a dor.


Mas não poderiam arrumar? Perguntou a mãe atendendo a um instinto decorador que subitamente lhe acometeu. A diretora a olhou comedidamente, de cima abaixo como a lhe inquirir se uma escola como aquela teria tempo de restaurar uma coisa estúpida e sem valor como um anão de jardim.


Bom. Continuou. Podemos entrar e assinar os papéis?


Entraram. A mãe fazendo contas, a diretora pensando no carro que desejava trocar ainda naquele ano.


DOIS

Já contei, mais de uma vez! Disse exasperada a monitora. Falta uma criança!


Impossível! Disse a diretora. Como? Saiu andando pela porta da frente? Vieram buscar mais cedo?


Não, nada disso, estava aqui hoje de manhã mas agora à tarde, não está mais. Concluiu desalentada a monitora, receosa de que fossem lhe descontar a criança do salário, seria um desconto imenso, talvez tivesse de trabalhar de graça o resto da vida.


Uma criança não some assim, minha filha. Sentenciou a diretora. Deve estar escondida, nos pregando uma peça, chame o zelador e as outras meninas que eu olho aqui as crianças no playground. Virem a escola do avesso mas achem essa criança, me entendeu? E acrescentou o dedo em riste para deixar bem claro que era imperativo que o fizessem.


A monitora embarafustou pela escola atrás dos demais deixando a diretora ali, olhando os pequenos, feito galinha com pintinhos emprestados. Já ia ensaiando como explicar aos pais, às autoridades, à imprensa, o prejuízo, o carro novo que ia lhe fechando as portas e saindo sem ela dentro e então, mirou o anão.


Estranho, já não coxeava da perna direita, ao contrário, agora estava na mesma altura da outra, ainda jazia coberto de terra e com o mesmo ar aparvalhado de antes mas que agora estava em pé, isso estava, os bracinhos levemente inclinados à frente mas as perninhas, deixando-o ereto. 


Quem o arrumara? Ela não havia autorizado nada, de certo que alguém da escola se apiedara do pobre e resolvera exercer seus dotes de restaurador nas horas vagas. Não que ela reclamasse, por ela teria se desfeito há muito do traste mas, as crianças gostavam mesmo dele e, de alguma forma que ela não conseguia precisar, lhe dava calafrios, talvez aquele olhar meio perdido, como saído de algum desenho mal acabado.


Desviou sua atenção quando ouviu lhe chamarem de dentro da escola, juntou os pintinhos sob sua asa de tecido importado e foi ver o que era mas antes de entrar, de soslaio, mirou uma última vez o anão.


Quando não se pode explicar algo, a explicação menos absurda e mais plausível é aceita como a verdade, é uma convenção social que ajuda muito quando não sabemos a quem ou que culpar. A criança sumida virou assim uma estatística e ainda que os pais acenassem com processos e ameaças, a escola sobreviveu praticamente incólume pois não se apurou qualquer irregularidade.


TRÊS


Já se iam alguns meses do ocorrido e tudo parecia voltar à normalidade mas, a fatalidade tem o péssimo hábito de, ao contrário dos raios, atingir mais de uma vez o mesmo ponto. Outra criança voltou a evaporar em fino ar colocando a diretora e a todos em polvorosa. O carro novo teria de ser um usado mesmo e por um bom tempo ainda, como iriam administrar essa nova tragédia?


Deram buscas em cada tijolo da escola, na vizinhança, nada. Nem um fio de cabelo. Novamente todo o périplo de explicações, ameaças, culpas e ante mais uma vez a impossibilidade de se poder comprovar qualquer má-fé por parte da instituição, atribuiu-se novamente ao acaso fortuito o estranho desaparecimento.


Mas, desta feita, a diretora sentiu não apenas pela criança sumida mas pela onda de cancelamentos e transferências que seguiram afinal, perder uma criança vá lá, mas duas? Era um pouco demais. Desolada, resolveram fechar a escola por alguns dias a partir do sumiço da última criança e agora, vistoriava se tudo estava efetivamente fechado e trancado antes de abandonar o lugar a sua própria sorte.


Antes de sair, resolveu dar uma última olhada no playground, ver se tudo estava bem preso e travado e então, olhou novamente o anão, havia se esquecido dele no torvelinho que seguira ao desaparecimento mas, ali estava ele e um arrepio frio subiu de seus sapatos chiques, subiu pelas meias de seda importada que usava, desestabilizou seus quadris e percorreu rapidamente sua espinha até atingir a base da nuca, espalhando-se em seguida para sua face e couro cabeludo.


O anão estava agora limpo, ereto e com seus bracinhos cheios de dobras rentes ao corpo, o ar antes aéreo fora substituído por um ar grave, os olhos semicerrados como a varrer o terreno ao seu redor e por entre a barba alva, ela podia divisar um sorriso leve, não natural, como a caçoar, pode jurar que olhava para ela.


Absurdo! Alguém certamente vinha restaurando e sem seu conhecimento, ia descobrir quem e teria uma conversa muito séria com essa pessoa, deveria mesmo ter posto no lixo aquela tranqueira sem utilidade. Bom, já se fazia fim do dia, o sol ia morrendo aos poucos roubando ainda alguns tons de laranja da noitinha que chegava e ela precisava fechar o lugar, esqueceu do anão e foi vendo se todos os brinquedos estavam em ordem para enfrentar o período de reclusão.


Prendia alguns balanços quando ouviu um farfalhar leve, como se o vento passasse as mãos na grama e virou-se de súbito imbuída de uma sensação ruim a qual associou diretamente ao anão. Não estava mais lá, em seu cantinho esquecido, sumira. Não bastasse as crianças, agora seria culpada pelo sumiço do maldito anão de jardim, uma das coisas de gosto mais duvidoso que já vagaram pela terra.


Firmou a vista para o canto do anão, podia ser um golpe da luz já minguando mas não, ele não estava mais lá, os pés tremeram dentro dos sapatos finos, o terninho ficou apertado demais e o peito mal continha o arfar de sua respiração. As mãos eram fontes de suor frio, espalmadas aos lado do corpo. Lembrou-se de quem era e do que fazia ali e, recomposta, enxugou as mãos na saia do terninho chique, aprumou-se e riu internamente por um arroubo tão infantil, justo ela, uma adulta consciente que lidava com as fantasias de crianças diariamente, das mais simplórias às mais estapafúrdias, algum funcionário rancoroso, claro, lhe pregava uma peça, ela procurava ser justa mas justiça nem sempre tem o mesmo significado entre quem a aplica e quem a recebe.


Voltou sua atenção aos balanços, tudo precisava ficar em ordem, até mesmo aquela mãozinha rechonchuda que agora pousava sobre a sua ao prender os balanços.


QUATRO

Veja bem a senhora, reformulamos tudo, a equipe toda é nova, os sistemas de segurança foram todos revistos e melhorados e agora os pais podem até mesmo monitorar a escola de casa pelo computador ou celular! Um avanço! Claro, não estou dizendo que a administração anterior fosse relapsa ou algo assim, eles fizeram o melhor que podiam mas, honestamente, nos dias de hoje é preciso investir pesado em tecnologia e melhorias constantes. Tome nossa equipe atual, são profissionais com formação no exterior, alguns falam até mais de dois idiomas. Sei que pode pensar que isso representa um custo extra mas, pense comigo, não é para seus filhos terem o melhor?


Mas, e aqueles desaparecimentos? E a diretora antiga que nunca mais foi vista? Indagou a mãe receosa de largar seus rebentos em algum lugar agourento.


A diretora retesou-se, passou a mão pelos cabelos longos e bem cuidados, girou os sapatos caros e mirou, condescendente, a mãe temerosa.


Entendo suas reservas e até mesmo compartilho delas Soltou. Mas veja bem, e não digo isso como crítica ou mesmo para denegrir ninguém, todos temos problemas e sabe Deus como é complicado e difícil lidar com eles, enfim, aquelas crianças, que Deus as tenha, provavelmente foram vítimas de violência doméstica, é o que penso e a administração à época pode ter sido, como direi, complacente, me entende?'


A mãe arregalou os olhos.


Oh, não! Disse a diretora levando a mão espalmada ao peito. Jamais em nossa administração, temos plena consciência da importância das vidas que colocam em nossas mãos mas, da mesma forma, zelamos para que essas crianças tenham um ambiente seguro tanto aqui como fora.


A mãe pareceu acalmar-se.


Já quanto à antiga diretora, e por favor não me interprete erroneamente, como disse, problemas os temos todos nós...Enfim, ela tinha lá os seus sabe? Bem, melhor não comentarmos mais, acho deselegante falarmos de pessoas que não estão mais aqui para defender-se.


Mas, ele faleceu? Perguntou a mãe curiosa.


Oh, não! Respondeu a outra. Sumiu no mundo sem deixar pistas, ninguém sabe seja amigo ou família. Sabe, como disse, todos temos problemas...


A mãe aquiesceu mecanicamente.


E aquele anão? Perguntou em seguida apontando para um canto do playground.


A diretora rodou novamente seus sapatos e mirou o canto para onde a mãe apontava. Um anão meio alquebrado, começando a coxear da perna direita, terra a lhe subir pelas pernas e de olhar perdido guardava um canto do playground.


Ah, aquilo? Disse como se olhasse para algo que pudesse dispensar. É uma herança antiga, está aqui há tempos, tentamos tirar mas as crianças parecem que se afeiçoaram a ele então deixamos ali, não é até meio simpático?'


A mãe, meio a contragosto, concordou. Parecia haver algo errado com aquele anão.


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